— Mas porque? Esta zangada comigo por eu ter dito que era comerciante?

Estava realmente irritada com ele. Nem eu sabia bem porque:

— Nao falemos mais nisso. Leve-me!

— Mas era uma brincadeira! Entao ja nao se pode brincar?

— Nao gosto destas brincadeiras!

— Que mau genio! Eu pensei: e possivel que esta rapariga seja alguma princesa… se ela descobre que sou apenas um pobre chauffeur, nem se digna olhar-me… vou dizer-lhe que sou comerciante.

As suas palavras foram astuciosas, porque, lisonjeando-me, faziam-me compreender os seus sentimentos a meu respeito. Por outro lado ele pronunciava-as com uma mistura de graca e de enfatuamento que acabaram de me conquistar.

— Nao sou qualquer princesa — respondi. — Ganho a minha vida como modelo, como voce ganha a sua como chauffeur.

— Que quer dizer isso de modelo?

— Vou aos atelies dos pintores. Ponho-me nua e eles pintam-me ou desenham-me.

— Mas voce nao tem mae? — perguntou-me com enfase.

— Com certeza, porque?

— E a sua mae consente que se ponha toda nua diante dos homens?

Eu nem sequer tinha sonhado alguma vez que pudesse haver algum mal neste trabalho. Efectivamente, nao havia mal algum nisso, mas agradou-me ver tais sentimentos, que denotavam que ele era serio e tinha senso moral. Como ja disse, eu tinha sede de normalidade; e ele na sua falsidade tinha compreendido logo (mesmo agora eu nao sei como conseguiu adivinhar) as coisas que me devia dizer e as que nao devia. Outro qualquer — nao pude deixar de pensar — ou teria trocado de mim ou teria demonstrado qualquer indiscreta excitacao a ideia da minha nudez. E foi por isso que a primeira impressao que me ficara da sua mentira se modificou sem que eu desse por isso. Pensei que apesar de tudo devia ser um bom rapaz, honesto e serio, muito parecido com o homem que eu sonhava para marido.

Respondi-lhe portanto com simplicidade:

— Foi minha mae quem me arranjou este trabalho.

— Entao e sinal de que ela nao gosta de si.

— Nao — protestei —, a minha mae gosta ate muito de mim; mas ela tambem no seu tempo de rapariga foi modelo. E depois asseguro-lhe que nada tem de mal. Ha muitas raparigas como eu que fazem este trabalho e sao raparigas serias.

Ele abanou a cabeca em ar de desaprovacao e depois pousou a sua mao na minha.

— Sabe que estou bem contente por te-la conhecido… muito contente!

— Tambem eu — respondi ingenuamente. Neste momento sentia uma atraccao tao grande por ele que quase esperava que me beijasse. Com certeza que se me tivesse beijado eu nao teria protestado, mas em vez disso disse-me com voz grave e ar protector:

— Se isso dependesse de mim, voce nao seria modelo com certeza!

Senti-me imediatamente vitima e experimentei um sentimento de gratidao pela sua consideracao.

— Uma rapariga como voce — continuou ele — deve ficar na sua casa… precisando… pode trabalhar… Mas e preciso que seja um trabalho digno… um trabalho em que nao seja necessario sacrificar-se a por em perigo a sua honra. Voce e uma rapariga para casa, fundar um lar, ter filhos, fazer companhia ao seu marido.

Era exactamente o que eu pensava e nao sabia dizer ate que ponto me tornava feliz saber que ele pensava como eu, ou fingia pensar.

— Tem razao — disse-lhe. — Mas nao quero que faca uma ideia errada de minha mae. Foi justamente por ela gostar muito de mim que quis que eu fosse modelo.

— Ninguem o diria! — retorquiu com um ar seriamente comovido e indignado.

— Sim! Ela gosta de mim! Somente, ha certas coisas que ela nao compreende.

Continuamos a falar de tudo ou pouco, sentados, atras do para-brisas, dentro do carro parado. Lembro-me de que estavamos em Maio, que o ar era doce e que as sombras dos platanos pareciam brincar sobre a estrada ate perder de vista.

Ninguem passava, salvo raros automoveis a toda a velocidade. O campo em redor, cheio de sol e muito verde, estava tao deserto como a estrada. Por fim olhou o relogio e disse-me que iamos voltar para a cidade. Durante todo este tempo ele so me tinha pegado na mao, e mesmo isso apenas uma vez. E eu, que esperava que ele tentasse pelo menos beijar-me, estava ao mesmo tempo decepcionada e contente de tanta reserva. Decepcionada porque ele me agradava e nao podia deixar de sentir uma grande atraccao pela sua boca fina e vermelha quando a olhava. Contente porque a sua atitude confirmava a ideia que tinha a seu respeito, de que era um rapaz serio como eu desejava que ele fosse.

Conduziu-me ate ao atelier e disse-me que, a partir desse dia, se eu estivesse na paragem do electrico a uma certa hora, ele me traria no seu carro; a essa hora nada tinha que fazer.

Aceitei de boa vontade, e as minhas longas horas de pose pareceram-me mais curtas naquele dia. Parecia que a minha vida tinha tomado um rumo e sentia-me contente de poder pensar nele sem remorsos e sem ressentimentos, como se pensa num homem que nao so nos agrada fisicamente, mas tambem pelas qualidades de caracter que eu considerava essencial que ele fosse possuidor.

Nada disse a minha mae, porque pensava, muito acertadamente, que ela nunca aceitaria que eu me ligasse a um homem pobre e de futuro modesto. Na manha seguinte veio buscar-me como me prometera, e nesse dia limitou-se a levar-me directamente ao atelier. Nos dias seguintes, logo que o tempo comecou a ficar bom, levou-me por vezes para qualquer estrada dos arrabaldes, ou para qualquer rua pouco frequentada da periferia, a fim de conversarmos a vontade, mas sempre de maneira respeitosa e conversas honestas e serias que muito me agradavam. Eu era nesse tempo muito sentimental: tudo o que traduzisse bondade, virtude, moral e afeicao de familia tocava-me singularmente e comovia-me ate as lagrimas, lagrimas que me corriam livremente dando-me uma sensacao embriagadora e ardente de alivio, de simpatia e de confianca. Foi assim que pouco a pouco me convenci de que Gino era absolutamente perfeito.

“Realmente — pensava eu as vezes — … que defeitos tem ele? E novo, e belo, e inteligente, e honesto, e serio, nao se lhe pode apontar o mais pequeno defeito.” Isso admirava-me porque nao e facil encontrar a perfeicao, e o conhece-la quase me afligia. “Que homem e este que, depois de perscrutado, nao revela a menor macula, nem a menor falta?”

Na verdade, eu apaixonara-me sem dar por isso. E agora sei que o amor tem uns oculos atraves dos quais um monstro nos parece maravilhoso.

Estava de tal maneira apaixonada que a primeira vez que ele me beijou, na estrada onde tivera lugar a nossa primeira conversa, experimentei uma tal sensacao que se poderia traduzir como a satisfacao natural de um velho anseio, ha muito desejado. Contudo, a irresistivel espontaneidade com que as nossas bocas se uniram assustou-me um pouco, porque eu pensava que de futuro os meus actos ja nao dependiam de mim, mas da forca irresistivel que me atraia com tao doce violencia para os seus bracos. No entanto, fiquei plenamente descansada, porque logo que nos separamos ele disse-me que nos podiamos considerar dai em diante como noivos.

Ainda desta vez nao pude impedir-me de pensar que ele encontrara sem dificuldades as palavras que correspondiam aos meus anseios mais intimos. Assim, o receio que este beijo me despertara desvaneceu-se e todo o tempo em que estivemos parados na estrada fui eu quem o beijou, sem reserva, com um sentimento de inteiro, violento e legitimo abandono. Dei e recebi na minha vida muitos beijos. Sabe Deus quantos dei e recebi sem a menor reaccao, nao so afectiva mas tambem fisica, como se da ou se recebe uma moeda usada por mil maos. Mas nunca mais esquecerei aquele primeiro beijo, pela intensidade quase dolorosa com a qual satisfiz plenamente, nao apenas o meu amor por Gino, mas uma espera de toda a minha vida. Lembro-me de ter tido a sensacao de que a nossa volta o mundo girava, que eu tinha o ceu em baixo e a Terra em cima de mim.

Na realidade tinha-me apenas debrucado um pouco sobre a sua boca para prolongar o beijo. Qualquer coisa de fresco e de vivo tocava e forcava os meus dentes, e quando os descerrei senti que a sua lingua, que tanta vez me acariciara os ouvidos com as suas palavras, se me revelava agora mudamente, fazendo penetrar na minha boca uma outra docura desconhecida. Nao sabia que se podia beijar assim e por tanto tempo; bem depressa perdi a respiracao e senti-me tao vazia que quando nos separamos encostei-me as costas do banco com os olhos fechados e o espirito abstracto, como se fosse desmaiar. Nesse dia descobri que havia outras alegrias no mundo alem de uma vida tranquila no seio da familia. Mas nao pensava que essas alegrias pudessem impedir

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