aquelas a que eu ate entao aspirara.

Depois da promessa de noivado de Gino senti-me segura de poder sem pecado nem remorsos daqui para o futuro saborear ao mesmo tempo umas e outras. Estava tao convencida da honestidade e da dignidade da minha conduta que nessa mesma noite, com um pouco de excitacao e satisfacao ao mesmo tempo, contei o caso a minha mae. Encontrei-a a coser a maquina junto da janela a luz crua de uma lampada sem abat-jour, e disse-lhe com a cara a arder:

— Mama, estou noiva!

Vi a sua face enrugar-se com uma contraccao como se tivesse sentido um fio de agua gelada correr-lhe pelas costas abaixo.

— E de quem? — perguntou.

— De um rapaz que conheci ha uns dias.

— Que faz ele?

— E chauffeur.

Gostaria de ter acrescentado mais alguma coisa, mas ela nao me deu tempo. Afastou-se da maquina e. saltando da cadeira, agarrou-me pelos cabelos:

— Ficaste noiva sem nada me dizeres! E com um chauffeur? Coitada de mim! Tu vais ser a minha morte.

Gritando, ela tentava esbofetear-me. Eu protegia a cara com as maos e acabei por me escapar, mas ela seguiu atras de mim. Corri a volta da mesa que ocupava o centro da sala, enquanto ela me perseguia com lamentacoes de desespero. Eu estava completamente apavorada ao ver o seu rosto magro virado para mim com uma especie de furia dolorosa.

— Eu mato-te! — gritava. — Desta vez mato-te! — Cada vez que ela dizia “mato-te” dir-se-ia que a sua raiva aumentava e que ela ia por em pratica as suas ameacas. Eu estava no topo da mesa e vigiava os seus gestos porque naquele momento ela era capaz senao de me matar, pelo menos de me ferir com a primeira coisa que apanhasse a mao. Com efeito a certa altura brandiu a grande tesoura de costura; so tive tempo de me virar e logo a tesoura voou pelo ar e foi bater na parede. O seu proprio gesto assustou-a. Bruscamente sentou-se junto da mesa, com o rosto entre as maos, e teve uma crise de lagrimas nervosas entrecortada por ataques de tosse, onde havia mais raiva que dor. Ouvia-a dizer por entre lagrimas:

— E eu que tinha tantos planos para ti!… Eu que te via rica… com a tua beleza… E logo te foste comprometer com um esfomeado!

— Mas ele nao e um esfomeado — interrompi timidamente.

— Um chauffeur! Um chauffeur! — repetia ela levantando os ombros. — Tu nao passas de uma desgracada e acabas por me desgracar a mim tambem!

Pronunciou lentamente estas palavras como para saborear a sua amargura.

— Vai casar contigo e tu seras a sua criada primeiro e depois a criada dos teus filhos… assim que tudo acabara!

— Casaremos logo que ele tenha dinheiro suficiente para comprar um carro! — declarei, anunciando um dos varios planos de Gino.

— Veremos!… Mas nao o quero ca metido! — gritou bruscamente, voltando para mim a cara coberta de lagrimas. — Nao o quero ver! Faz o que quiseres… encontra-te com ele la fora, as nao o metas aqui!

Nessa noite fui-me deitar sem jantar, muito triste e muito desencorajada. Mas percebi que se minha mae se portava comigo desta maneira era por gostar de mim e por ter feito para o meu futuro nao sei que planos que o meu noivado com Gino deitava por terra. Mais tarde, quando compreendi quais eram esses planos, nao senti coragem para a condenar. Ela nao tinha recebido da sua vida honesta e laboriosa outras recompensas que nao fossem amarguras, tormentos e miseria. Que admira que sonhasse para a sua filha uma sorte completamente diferente?

Devo acrescentar que se tratava talvez nao tanto de planos, mas mais propriamente de sonhos vagos e cintilantes que podia acalentar sem muitos remorsos precisamente por serem vagos e cintilantes. Mas isto e uma suposicao. Pode muito bem ser que, pelo contrario, a minha mae, por um desvio inveterado de consciencia, tenha realmente decidido encaminhar-me um dia para o caminho que fatalmente eu iria tomar sozinha. Se digo estas coisas nao e por rancor contra minha mae, mas porque ainda hoje nao sei bem o que pensava ela entao e porque a experiencia me ensinou que se pode pensar e sentir ao mesmo tempo as coisas mais diferentes sem lhes notar a contradicao.

Minha mae jurara que em caso nenhum se encontraria com Gino e durante algum tempo respeitei o seu juramento. Mas depois dos primeiros beijos, Gino parecia extremamente desejoso de apor tudo em ordem, como ele dizia, e todos os dias insistia comigo para ser apresentado a minha mae. Nao tinha coragem para lhe dizer que ela nao o queria conhecer porque achava a sua profissao demasiado humilde e vi-me por isso forcada a encontrar constantemente pretextos para retardar essa ocasiao. Por fim Gino compreendeu que eu lhe escondia qualquer coisa e insistiu tanto que me vi forcada a revelar-lhe a verdade.

— Minha mae nao te quer conhecer. Acha que eu devia casar-me com um homem rico e nao com um chauffeur.

Esta conversa passava-se dentro do carro na ruazinha costumada do arrabalde. Gino olhou-me com tristeza, suspirando. Eu estava a tal ponto apaixonada por ele que nem me dei conta do que havia de fingido na sua maneira de falar.

— Eis o resultado de ser pobre! — exclamou.

Depois disso manteve-se num silencio longo e teimoso.

— Humilha-me — respondeu ele baixando a cabeca. Outro qualquer no meu lugar nem teria falado em noivado, nem teria pedido para ser apresentado a tua mae. E para que serve querer a gente portar-se bem!

— Que importancia tem isso se tens a certeza do meu amor?

— O que eu devia ter feito — continuou ele — era apresentar-me com a carteira bem recheada e sem falar de casamento. Se fizesse isso, tua mae abrir-me-ia os bracos…

Nao ousava contradize-lo porque bem sabia que tudo quanto ele dizia era verdade.

— Sabes o que vamos fazer? — propus dai a momentos. Um destes dias levo-te la a casa sem dizer nada. Desse modo minha mae nao tera outro remedio senao conhecer-te. Que demonio! Nao pode chegar ao exagero de fechar os olhos!

Na noite combinada para isso conduzi Gino a nossa casa. Minha mae tinha acabado a tarefa desse dia e estava a preparar uma ponta da mesa para jantarmos. Entrei a frente e disse simplesmente.

— Mama! Este e o Gino!

Esperava que houvesse uma cena desagradavel. Ate tinha prevenido Gino. Com grande surpresa minha ela disse secamente :

— Muito prazer…

E depois saiu da sala.

— Vais ver que tudo corre bem — disse Gino.

Aproximei-me dele, estendi-lhe a boca e acrescentei:

— Da-me um beijo…

— Nao, nao — murmurou ele em voz baixa afastando-me. — Se eu fizesse isso, tua mae teria muita razao em pensar mal de mim.

Gino sabia encontrar sempre as palavras exactas e perfeitas para cada momento. Tive de concordar para comigo que tinha razao. Minha mae entrou pouco depois e, evitando olhar para Gino, disse:

— O jantar nao chega porque eu nao sabia… Mas vou sair e…

Nao teve tempo de acabar porque Gino se aproximou imediatamente dela interrompendo-a:

— Por amor de Deus ! Eu nao vim ca para que me dessem de jantar. Pelo contrario! Peco licenca para as convidar a ambas…

Falava cerimoniosamente, como a pessoas da alta. Minha mae, que nao estava habituada a que lhe falassem assim, nem a receber convites, hesitou uns momentos olhando para mim.

Depois respondeu:

— Ca por mim, se a Adriana quiser…

— Podiamos comer na casa de pasto aqui ao lado… — propus eu.

— Onde quiserem — respondeu Gino.

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