Como as criancas a quem e facil distrair ou fazer mudar de disposicao, minha mae ja se tinha esquecido de mim e do meu injusto destino e esbugalhava os olhos perante a descricao de todo esse esplendor.

— Milhoes? — repetiu com avidez. — E e bonita? Gino, que estava a fumar, cuspiu com destreza um fio de tabaco.

— Bonita? Ela?! Credo! E horrorosa. Tao magra que parece uma bruxa!

Continuaram os dois a conversar acerca da fortuna da patroa do Gino, ou, para ser mais exacta, Gino continuou a exaltar a sua riqueza como se a ele proprio pertencesse. Mas, passado o primeiro impulso de curiosidade, minha mae tinha-se tornado novamente sombria e distraida. E nunca mais abriu boca em toda a noite. Talvez tivesse vergonha de se ter abandonado aquele acesso de colera; talvez toda aquela riqueza lhe inspirasse inveja e talvez pensasse com despeito na pobreza do homem que eu tinha escolhido para noivo.

No dia seguinte perguntei timidamente a Gino se ela lhe tinha desagradado muito; mas ele respondeu-me que, muito embora nao concordando, compreendia o seu ponto de vista cuja origem era uma vida infeliz e cheia de privacoes. Era digna de pena, concluiu. Alem disso via-se bem que se falava daquela maneira e porque gostava muito de mim. Era esta tambem a minha opiniao, e fiquei-lhe agradecida por se mostrar tao compreensivo. Na verdade eu tinha tido muito medo de que a cena que a minha mae fizera viesse esfriar as nossas relacoes.

A moderacao de Gino, alem de me encher de gratidao, reforcou em mim a ideia de que ele era perfeito. Se eu fosse menos cega e menos inexperiente teria compreendido que so a falsidade premeditada pode dar uma impressao de perfeicao e que a verdadeira sinceridade apresenta sempre, ao mesmo tempo, qualidades e defeitos.

Em resumo, dai para o futuro a minha posicao perante ele seria sempre de inferioridade, porque eu ficaria para sempre convencida de nada lhe ter dado em troca da sua generosidade e da sua compreensao. Talvez se deva atribuir ao estado de alma de uma pessoa que se via cumulada de favores e que deseja instintivamente pagar a sua divida o facto de, a partir desse momento, eu ter deixado por completo de resistir, como fizera ate ai, aos seus gestos amorosos cada vez mais audaciosos. Mas tambem e verdade — ja o disse a proposito do nosso primeiro beijo — que eu me sentia pronta a entrega total, levada ao mesmo tempo por uma forca suave e invencivel, como acontece com o sono que, para vencer a nossa vontade consciente de nao adormecer, nos obriga a dormir fazendo-nos sonhar que estamos acordados tao bem que, abandonando-nos a ele, estamos convencidos de que lhe resistimos.

Recordo-me com impressionante clareza de todas as fases da minha seducao, porque cada uma das conquistas de Gino foi ao mesmo tempo desejada e repelida por mim e porque cada uma delas me deu, ao mesmo tempo, prazer e remorsos. E tambem porque essas conquistas foram conseguidas com uma lentidao sabiamente premeditada, sem pressas nem impaciencias. Gino procedia como um general que ocupa metodicamente um pais e nao como um amante ardendo de desejos, e assim foi apossando-se do meu corpo passivo, da boca ate ao ventre. Tudo isto, porem, nao impediu que mais tarde Gino se apaixonasse violentamente por mim e que a premeditacao calculada desaparecesse para dar lugar, senao a um amor profundo, pelo menos a um poderoso desejo que nada saciava.

Durante os nossos passeios de carro ate ali ele tinha-se limitado a beijar-me a boca e o pescoco, mas uma certa manha enquanto me beijava, senti os seus dedos agarrarem nos botoes da minha blusa. Depois uma sensacao de frescura no peito fez com que eu erguesse os olhos por cima do seu ombro para o espelho do para- brisas. Reparei entao que um dos meus seios estava nu. Enchi-me de vergonha, mas nao tive coragem para me tapar. Foi o proprio Gino, num gesto rapido, que parecia secundar a minha atrapalhacao, quem abotoou novamente a minha blusa. Esta delicadeza da sua parte comoveu-me profundamente, deixando-me ao mesmo tempo encantada e perturbada. No dia seguinte Gino repetiu o seu gesto. Desta vez o meu prazer aumentou e a minha vergonha diminuiu. A partir de entao habituei-me aquela manifestacao do seu desejo e parece-me que se ele deixasse de a repetir pensaria que tinha deixado de gostar de mim.

Conversavamos com frequencia do que seria a nossa vida depois de nos casarmos. Gino falava-me tambem muito da sua familia, que vivia na provincia, a qual nao podia com justica considerar-se pobre, pois possuia algumas feiras de terra.

Tenho a impressao de que — o que alias e vulgar nos autenticos mentirosos — em dado momento ele comecou a acreditar nas suas proprias mentiras. Certo que mostrava por mim uma forte atraccao, e, visto que a nossa intimidade se tornava dia a dia cada vez maior, esse sentimento devia ao mesmo tempo tornar-se mais sincero. Pela minha parte as suas palavras adormeciam os meus remorsos e davam-me uma impressao de felicidade ingenua e completa que nunca mais depois disso voltei a conhecer. Eu amava, era amada, pensava que me casaria muito breve e nada mais se poderia desejar neste mundo.

Minha mae compreendia perfeitamente que os nossos passeios matinais nao eram completamente inocentes e deu-mo a perceber muitas vezes por meio de frases como esta:

“Nao sei o que voces fazem quando passeiam de automovel, mas a verdade e que tambem o nao quero saber…” Ou entao: “Tu e o Gino andam a preparar uma grande tolice! Tanto pior para ti!”

Dizia-me com frequencia coisas no genero. Mas por vezes as suas recriminacoes pareceram-me estranhamente desinteressadas.

Dir-se-ia que nao so encarava com antecipada resignacao a ideia de que eu ia tornar-me amante do Gino como ate no fundo desejava que isso acontecesse. Agora sei que ela esperava sempre o momento proprio para impedir que o meu casamento se realizasse.

3

Uma manha, Gino disse-me que os patroes tinham partido para o campo, que as criadas estavam de ferias nas suas aldeias e que lhe tinham entregue a casa a ele e ao jardineiro. Nao gostaria eu de a visitar? Tinha-me falado dela tantas vezes e em termos tao admirativos que eu estava cheia de curiosidade: aceitei de boa vontade. Mas no preciso momento em que disse que sim, uma perturbacao profunda feita de desejo fez-me compreender que a minha curiosidade de ver a casa nao tinha passado de um pretexto, e que o verdadeiro motivo desta visita era bem outro. Entretanto, como sempre acontece quando se aspira a uma coisa que nao se quer desejar, fingi nao acreditar no pretexto, enganando-me a mim propria e a ele.

— Sei que nao devia ir — disse-lhe, subindo para o carro.

— Mas nao nos vamos demorar muito tempo, pois nao? Ouvia-me a mim propria pronunciar estas palavras numa voz ao mesmo tempo amedrontada e provocante. Gino respondeu-me muito serio:

— So o tempo de ver a casa. Depois vamos ao cinema.

A moradia elevava-se numa ruazinha que descia do novo bairro rico, no meio de outras lindas casas. Estava um dia calmo e todas essas casas estendendo-se pela colina debaixo de um ceu muito azul, com as suas fachadas de tijolos vermelhos ou de pedra branca, os seus alpendres ornados de estatuas, as suas pergulas envidracadas, os terracos e as varandas repletos de geranios, os jardins onde cresciam as suas arvores copadas entre uma moradia e outra — tudo isso me dava uma deliciosa sensacao de descoberta e de novidade. Era como se entrasse num mundo mais livre e mais belo, onde seria mais agradavel viver. Nao pude deixar de me lembrar do meu bairro, da grande estrada que corre junto das muralhas, das construcoes pobres, e declarei a Gino :

— Ja estou arrependida de ter vindo.

— Porque? — perguntou-me com ar desenvolto. — Nao nos demoraremos, esta descansada!

— Tu nao percebes! — respondi. — Estou arrependida porque agora vou corar com vergonha da minha casa e do meu bairro.

— Ah! Isso sim! — disse com um ar aliviado. — Mas que queres fazer? Era preciso ter-se nascido milionario… Neste bairro so moram milionarios.

Abriu o portao e levou-me por uma alea coberta de saibro, entre duas filas de arbustos tratados com inexcedivel esmero.

Entramos na moradia por uma porta de vidro espesso e encontramo-nos no vestibulo da entrada, vazio, pavimentado de placas de marmore brancas e negras, desenhando enormes quadrados encerados, brilhantes como espelhos. Do vestibulo passamos ao hall, espacoso e cheio de luz, para o qual davam as salas do res-do- chao. Ao fundo do hall via-se uma escadaria toda branca, que conduzia aos andares superiores.

Vendo este hall senti-me tao intimidada que comecei a andar nos bicos dos pes. Gino reparou e disse-me a

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