Precisamos sair logo da Conciergerie para uma das centrais onde se formam os comboios para a Guiana, porque, se a gente perde o primeiro navio, tem que esperar mais dois anos na reclusao ate que tenha outro. Depois de ver meu amigo, senhor padre, precisa voltar aqui.

– Que motivo vou dar?

– Diga, por exemplo, que esqueceu o breviario. Eu espero a resposta.

– E por que esta com tanta pressa de ir para aquela coisa horrivel que e a colonia penal?

Olho para esse padre, verdadeiro caixeiro-viajante do bom Deus, e digo, certo de que nao me vai trair:

– Para escapar mais depressa, padre.

– Deus ha de ajuda-lo, meu filho, tenho certeza e sinto que voce podera reconstruir a sua vida. Vejo nos seus olhos que voce e um bom rapaz e que a sua alma e nobre. Vou ao numero 37. Espere a resposta.

Voltou bem depressa. Dega esta de acordo. O padre me deixou o seu breviario ate o dia seguinte.

Foi como se eu recebesse hoje um raio de sol, minha cela ficou toda iluminada. Gracas aquele santo homem.

Por que, se Deus existe, ele permite que haja sobre a Terra seres humanos tao diferentes? O promotor, os policiais, os Polein e depois o padre, o padre da Conciergerie?

A visita desse santo homem me fez muito bem e tambem me prestou um bom servico.

O resultado dos pedidos nao demorou. Uma semana depois, la estavamos, sete homens, as 4 da manha, alinhados no corredor da Conciergerie. Os guardas estao todos presentes.

– Todos em pelo!

Tiramos a roupa lentamente. Faz frio, estou arrepiado.

– Deixem suas roupas em frente de voces. Meia volta, um passo para tras!

E cada um encontra um pacote.

– Vistam-se!

A camisa de linho que eu estava usando ha poucos instantes e substituida por uma grossa camisa de pano cru, rijo, e meu belo terno por um blusao e uma calca de baeta. Meus sapatos desaparecem e enfio os pes num par de tamancos. Ate hoje, tinhamos aspecto de homens normais. Olho para os meus seis companheiros: que horror! Acabou-se a personalidade de cada um: em dois minutos, nos transformamos em forcados.

“A direita, em fila! Avante, marche!” Escoltados por uns vinte guardas, chegamos ao patio onde, um por um, somos introduzidos ‘numa especie de armario estreito dentro de um carro celular. Estamos a caminho de Beaulieu, nome da Central de Caen.

A CENTRAL DE CAEN

Mal chegamos, somos introduzidos no escritorio do diretor. Ele esta sentado como num trono, atras de uma mesa estilo imperio, sobre um estrado de 1 metro de altura.

– Sentido! O diretor vai-lhes falar.

– Condenados, voces estao aqui em custodia, aguardando transporte para a colonia penal. Isto e uma casa de forca. Silencio obrigatorio a todo momento, nenhuma visita a esperar ou cartas de qualquer pessoa. Aqui, ou voces dobram, ou quebram. Ha duas portas a sua disposicao: uma para a colonia penal, se voces se comportam bem, outra para o cemiterio. Em caso de ma conduta, eis o que os espera: a menor falta sera punida com sessenta dias de solitaria, a pao e agua. Ninguem resistiu a duas penas consecutivas de solitaria. A bom entendedor, meia palavra basta.

Dirige-se entao a Pierrot le Fou, extraditado da Espanha:

– Qual era sua profissao na vida?

– Toureiro, senhor diretor.

Enfurecido pela resposta, o diretor grita:

– Carreguem este homem, militarmente!

Em menos de dois segundos, o toureiro e espancado a porretadas por quatro ou cinco guardas, arrastado as pressas para longe de nos. “Cambada de frescos, voces sao cinco contra um e ainda por cima com cacetes, seus bastardos!” Ouve-se um “ah!”, como de um animal ferido de morte, e mais nada. Apenas o rocar de alguma coisa arrastada sobre o chao de cimento.

Depois dessa cena, quem nao entendeu nunca mais entendera. Dega esta a meu lado. Ele mexe um dedo, um so, para tocar a minha calca. Compreendi o que ele quer me dizer: “Aguente firme se quer chegar vivo a colonia penal”. Dez minutos depois, cada um de nos se acha numa cela do setor disciplinar da Central, exceto Pierrot le Fou, que foi descido para o porao e metido num infame calabouco.

A sorte quis que Dega ficasse na cela pegada a minha. Antes fomos apresentados a uma especie de monstro ruivo de 1 metro e 90 ou mais, caolho, com um nervo de boi novinho na mao direita. E um vigilante, um prisioneiro com funcao de torturador, as ordens dos guardas. E o terror dos condenados. Os guardas tem, com ele, a vantagem de poder espancar os homens sem se cansar; alem disso, em caso de morte, nao havera responsabilidade para a administracao do presidio.

Mais tarde, por ocasiao de uma curta passagem pela enfermaria, vim a conhecer a historia dessa besta humana. Merece felicitacoes o diretor da Central por ter sabido escolher tao bem esse carrasco. O gajo em questao era canteiro de profissao. Um belo dia, na pequena cidade do norte onde morava, resolveu suicidar-se, liquidando ao mesmo tempo sua mulher. Para isso utilizou uma banana de dinamite bastante grossa. Deitou-se ao lado da mulher, que repousava no segundo andar de um predio de seis. A mulher estava dormindo. Ele acendeu um cigarro e usou-o para por fogo no pavio do cartucho de dinamite que segurava com a mao esquerda, entre a sua cabeca e a da mulher. Deu-se uma explosao espantosa. Resultado: foi preciso recolher o corpo da mulher as colheradas, pois estava totalmente reduzido a migalhas. O predio desmoronou em parte, tres criancas morreram esmagadas nos escombros, bem como uma velha de setenta anos. Os outros moradores receberam ferimentos de maior ou menor gravidade.

Ele, Tribouillard, perdeu uma parte da mao esquerda, da qual sobraram apenas o dedinho e a metade do polegar, perdeu a orelha e o olho esquerdos. Tem na cabeca uma ferida grave, que exigiu uma trepanacao. Depois de condenado, tornou-se vigilante das celulas disciplinares da Central. Esse semilouco pode dispor como quer dos desgracados que caem sob seu dominio.

Um, dois, tres, quatro, cinco, meia volta… um, dois, tres, quatro, cinco, meia volta… comeca o vaivem interminavel do muro a porta da cela.

Nao temos o direito de nos deitar durante o dia. As 5 horas da manha, um apito estridente acorda todo mundo. E preciso levantar, arrumar a cama, lavar a cara e andar, ou sentar num tamborete preso a parede. Ja disseram, nao podemos usar a cama durante o dia. Cumulo do refinamento do sistema penitenciario, a cama tem que ser dobrada contra o muro e ficar enganchada o dia todo. Assim, o prisioneiro nao pode esticar-se e e mais facil vigia-lo.

Um, dois, tres, quatro, cinco… catorze horas de marcha. Para bem adquirir o automatismo desse movimento continuo, e preciso aprender a baixar a cabeca, as maos atras das costas, nao andar nem muito depressa nem muito devagar, dar passos do mesmo tamanho e virar automaticamente numa ponta da cela, sobre o pe esquerdo, e na outra ponta, sobre o direito.

Um, dois, tres, quatro, cinco… As celas sao mais bem iluminadas que na Conciergerie e se podem ouvir os ruidos exteriores, os do setor disciplinar e tambem alguns que chegam do campo. A noite ouvem-se os assobios ou as cancoes dos camponeses que voltam para casa, satisfeitos por terem bebido um bom copo de cidra.

Tive meu presente de Natal: por uma fenda nas tabuas que vedam a janela, posso perceber o campo todo branco de neve e algumas arvores negras iluminadas pela lua cheia. Parece um daqueles cartoes-postais tipicos do Natal. Sacudidas pelo vento, as arvores despiram seu manto de neve e, por isso, podem ser vistas bem distintamente. Destacam-se como grandes manchas escuras sobre o fundo branco. E Natal para toda gente, ate mesmo para uma parte do presidio. Para os sentenciados em custodia, a administracao fez um esforco: tivemos o direito de comprar duas barras de chocolate. Digo bem, duas barras e nao dois tabletes. Esses dois pedacos de chocolate de Aiguebelle foram meu reveillon de 1931.

Um, dois, tres, quatro, cinco… A repressao judicial me transformou num pendulo, a ida e a vinda numa cela compoem todo o meu universo. E matematicamente calculado. Nada, absolutamente nada, deve ser deixado na cela. E preciso impedir a qualquer custo que o condenado possa ter uma distracao. Se eu for surpreendido olhando pela fenda da tabua da janela, sofrerei severo castigo. Alias, acho que eles tem razao, pois nao e verdade que sou para eles apenas um morto-vivo? Que direito me poderia arrogar para gozar de uma visao da natureza?

Voa uma borboleta azul-claro com uma pequena risca negra; zumbe uma abelha um pouco adiante, perto da janela. Que sera que esses bichos vem buscar neste lugar? Parecem estar enlouquecidos por este sol de inverno, ou estao com frio e querem abrigar-se na prisao. Uma borboleta, no inverno, e uma ressuscitada. Como nao morreu? E essa abelha, por que saiu da sua colmeia? Para se aproximar de uma prisao e preciso ser muito caradura. Felizmente, o vigilante nao tem asas, do contrario os bichinhos nao viveriam muito tempo.

Esse Tribouillard e um sadico horroroso e percebo que alguma coisa vai me acontecer com ele. Infelizmente nao me enganei. Um dia depois da visita daqueles encantadores insetos, dou parte de doente. Nao aguento mais, me abafo na minha solidao, preciso ver uma cara, ouvir uma voz, mesmo desagradavel, mas sempre uma voz, preciso ouvir alguma coisa.

Nu em pelo no frio glacial do corredor, frente ao muro, meu nariz a quatro dedos de distancia, eu era o penultimo de uma fila de oito, aguardando minha vez de ser atendido pelo medico. Eu queria ver gente… pois bem, consegui! Fomos surpreendidos pelo vigilante no momento em que murmurava algumas palavras ao ouvido de Julot, alcunhado “o homem do martelo”. A reacao do ruivo selvagem foi terrivel. Com um murro atras do pescoco, quase me matou e, como eu nao havia visto de onde vinha o golpe, bati o nariz contra o muro. O sangue jorra e, depois de me levantar, pois eu havia caido, me sacudo todo e procuro compreender o que me aconteceu. Esboco um gesto de protesto, mas o brutamontes, que so esperava isso, joga-me novamente ao chao com um pontape na barriga e comeca a me chicotear com seu nervo de boi. Julot nao pode suportar isso. Pula em cima do vigilante, inicia-se uma luta terrivel e, como Julot esta por baixo, os guardas assistem impassiveis a batalha. Acabo de me levantar e ninguem presta atencao em mim. Olho em volta, para ver se encontro algo utilizavel como arma. De repente, avisto o medico inclinado sobre a sua poltrona, procurando observar, da sala de consulta, o que se passa no corredor, e ao mesmo tempo vejo a tampa de uma marmita que se levanta sob a pressao do vapor. Essa grossa marmita esmaltada esta colocada sobre o fogareiro a carvao que aquece a sala do medico. O vapor deve servir certamente para purificar o ar.

Entao, num reflexo rapido, agarro a marmita pelas alcas, queimo as maos mas nao largo e, de uma so vez, atiro a agua fervente na cara do vigilante, que nao me havia visto, tao ocupado estava em espancar Julot. Um grito espantoso sai da garganta do puto. Foi atingido em cheio. Ele se rola no chao. Como esta vestido com tres puloveres de la, e obrigado a tira-los com dificuldade, um depois do outro. Quando arranca o terceiro, a pele vem junto. A gola da malha e estreita e, no esforco de

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