visto que nada de extraordinario me acontecia.
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Foi assim que continuei a ser modelo, apesar de minha mae resmungar constantemente que por esse processo eu nunca chegaria a ganhar coisa que se visse. No decurso deste periodo da minha vida minha mae esteve constantemente de mau humor, e, apesar de ela o nao dizer claramente, eu bem compreendia que a causa da sua ma disposicao era eu. Nao e esta a primeira vez que o digo: minha mae contava com a minha beleza como se conta com um capital seguro. Para ela o oficio de modelo nao passava de um ponto de partida; depois disto, segundo a sua expressao habitual, “uma coisa traria outra”. A continuacao deste trabalho humilde e mal remunerado, ao mesmo tempo que a enchia de amargura, tornava-a rancorosa contra mim, como se o facto de eu nao ser ambiciosa a privasse de lucros seguros.
Evidentemente que nao me dizia isto. Mas dava-mo constantemente a perceber pelos seus modos desagradaveis, as suas alusoes, os seus suspiros, os seus olhares melancolicos e outros meios de expressao igualmente significativos. Era uma especie de chantagem constante, a razao pela qual muitas raparigas, fundamentalmente honestas, martirizadas sem piedade nem treguas por maes ambiciosas e desiludidas, acabam por fugir de casa e entregar-se ao primeiro homem que encontaram, unicamente para se libertarem desse tormento. Eu bem sei que minha mae fazia isto por amor de mim. Mas esse amor era como os dos aldeoes para com as galinhas: no dia em que elas deixam de por ovos comecam imediatamente a perguntar a si proprios se nao tera chegado o momento de lhes torcer o pescoco e as meter na panela.
Como se e paciente e credulo quando se e jovem! A minha vida nesse tempo era horrivel e eu nem sequer tinha consciencia disso. O dinheiro que me rendiam as minhas longas, enfadonhas e fatigantes sessoes de pose nos ateliers era por mim integralmente entregue em casa, e o tempo que nao passava nua, entorpecida e dolorida pela imobilidade, para que me pintassem e desenhassem, passava-o em casa a coser a maquina, de costas dobradas e com os olhos fitos na agulha ajudando minha mae no seu trabalho. A noite continuava a costurar ate tarde, para me levantar mal comecava a amanhecer, pois os ateliers ficavam longe e as sessoes comecavam cedo. Mas antes de partir para o trabalho fazia a minha cama e ajudava minha mae a arrumar a casa. Eu era realmente infatigavel, submissa, paciente e ao mesmo tempo sempre calma, alegre e tranquila, a alma isenta de inveja, de rancor ou de ciume, cheia dessa docura e dessa gratidao sem motivo que sao a florescencia espontanea da juventude. Nao me apercebia da desoladora fealdade da minha casa. Uma enorme sala servia de atelier, com uma grande mesa ao centro, coberta de trapos. Havia mais trapos pendurados nos pregos colocados nas paredes sombrias e desbotadas e algumas cadeiras desmanteladas. Um quarto onde eu dormia com minha mae numa cama de casal; mesmo por cima da minha cabeca, quando estava deitada, o tecto tinha uma grande mancha de humidade; quando estava mau tempo chovia-nos em cima. Tinhamos uma pequena cozinha escura recheada de pratos e panelas, que minha mae por desmazelo nunca chegava a lavar completamente. Nao me apercebia da vida de sacrificio que levava, sem divertimentos, sem amor, sem amizade. Quando penso na rapariga que eu era, na minha inocencia e na minha bondade, sinto uma grande compaixao por mim mesma, impotente e entristecida, a mesma que se sente quando, ao ler-se um romance, desejamos evitar a uma personagem simpatica as desgracas que lhe vao acontecer, sabendo ao mesmo tempo que as nao poderemos impedir. A vida e assim: a bondade, a inocencia, nada valem para os homens. E nao sera talvez um dos seus menos dolorosos misterios que as melhores qualidades que a natureza nos deu — e todos entusiasticamente louvam — nao sirvam senao para nos tornar mais desgracados ainda.
Nesta altura acreditava que a minha aspiracao de casar e ter uma familia podia vir a ser satisfeita um dia. Todas as manhas tomava o electrico numa grande praca muito perto da minha casa, para a qual dava, entre outros predios, uma construcao baixa encostada as muralhas e que servia de garagem. A essa hora estava todos os dias a porta da oficina um rapaz que lavava e limpava o seu carro e me olhava com insistencia. Era moreno, com um ar finissimo: nariz pequeno e direito, olhos negros, uma boca maravilhosamente bem desenhada e os dentes muito brancos. Parecia-se muito com um actor americano de cinema muito em voga naquele tempo; foi isso que me chamou a atencao. Primeiro tomei-o por uma pessoa de condicao, porque estava bem vestido e tinha maneiras educadas e finas. Imaginei que o carro lhe pertencesse e ele fosse uma pessoa rica, um dos tais “cavalheiros respeitaveis” de que minha mae tanto me falava. Por um lado ele atraiu-me, mas pensava nele apenas quando o via; depois ia para o atelier e a sua lembranca saia-me do espirito. Mas nao e menos verdade que sem dar por isso e apenas por causa das suas olhadelas ele me tivesse seduzido, porque uma manha em que eu, no passeio, esperava o electrico, ouvi que me chamavam de uma maneira parecida com a que se usa para chamar os gatos; voltei-me e vi que ele me fazia sinais de dentro do carro. Com uma docilidade irreflectida da qual me admirava, nao hesitei um instante em aproximar-me. Ele abriu a porta. Ao entrar reparei que a mao que pousava sobre o vidro aberto era grossa e rude; as unhas estavam sujas e partidas e o indicador estava amarelecido pelo fumo do tabaco, como tem os homens que exercem profissoes manuais. Nada disse e mesmo assim subi.
— Onde quer que a deixe? — perguntou-me fechando a porta.
Notei que tinha a voz doce e tive a impressao de que ela me agradava, sem no entanto deixar de notar nela qualquer coisa de falso e de afectado. Acrescentou:
— Bem… para fazer horas vamos dar uma volta… Ainda e cedo! Depois leva-la-ei aonde voce quiser.
E o carro partiu.
Saimos do meu bairro e contornamos as muralhas ao longo da avenida exterior; em seguida entramos numa estrada larga e comprida, ladeada de casebres e de armazens; por fim chegamos ao campo. Entao desatou a correr como doido por uma estrada recta, entre aleas de platanos. De vez em quando dizia-me sem me olhar, mostrando o conta-quilometros:
— Agora vamos a oitenta… noventa… cem… cento e vinte… cento e trinta.
Queria impressionar-me com estas velocidades, mas eu estava sobretudo inquieta porque tinha de ir posar e receava que um incidente qualquer nos obrigasse a parar o carro em algum descampado. De repente travou. Bruscamente desligou o motor, voltou-se para mim e perguntou:
— Quantos anos tem?
— Dezoito anos — respondi.
— Dezoito anos… julguei que tivesse mais!
Tinha realmente uma maneira de falar afectada, e por vezes, para sublinhar uma palavra, baixava o tom como se falasse consigo proprio ou dissesse um segredo.
— Como se chama?
— Adriana. E voce?
— Gino.
— O que faz? — perguntei-lhe.
— Sou comerciante! — respondeu sem hesitar.
— E o carro e seu?
Olhou o carro com uma especie de desdem e declarou:
— E meu, sim.
— Nao acredito! — disse-lhe eu com toda a franqueza.
— Nao acredita? Estao nao e meu! — repetiu sem perder a linha. — Nao esta ma! E porque?
— Voce e o chauffeur?
Ele fingiu um espanto ironico cada vez maior.
— Mas, na verdade, voce diz-me coisas fantasticas! Vejam bem: chauffeur! Mas que a fez pensar isso?
— As suas maos.
Olhou as maos sem corar nem se desconcertar e confessou:
— Bom! Nada se pode esconder a esta menina. Mas que argucia! E verdade, sou chauffeur. E agora, esta contente?
— Nada mesmo! — respondi duramente. — Quero apenas pedir-lhe que me leve para a cidade o mais depressa possivel.