Deus?

— Acredito.

— Entao voce vai jurar, pelo Deus que voce acredita, que ira me pintar.

— Eu juro.

— E que, depois de me pintar, ira continuar pintando.

— Nao sei se posso jurar isso.

— Pode. E vou lhe dizer mais: obrigado por ter dado um sentido a minha vida. Eu vim a este mundo para passar por tudo que passei, tentar suicidio, destruir meu coracao, encontrar voce, subir a este castelo, e deixar que voce gravasse meu rosto em sua alma. Esta e a unica razao pela qual eu vim ao mundo; fazer com que voce retornasse ao caminho que interrompeu. Nao faca com que eu sinta que minha vida foi inutil.

— Talvez seja cedo demais ou tarde demais, mas, da mesma maneira que voce fez comigo, eu quero dizer: te amo. Nao precisa acreditar, talvez seja uma bobagem, uma fantasia minha.

Veronika abracou-se a Eduard, e pediu ao Deus, que ela nao acreditava, que a levasse naquele momento.

Fechou os olhos, sentiu que ele tambem fazia o mesmo. E o sono veio, profundo, sem sonhos. A morte era doce, cheirava a vinho, e acariciava seus cabelos.

Eduard sentiu que alguem lhe cutucava no ombro. Quando abriu os olhos, o dia comecava a amanhecer.

— Voces podem ir para o abrigo da prefeitura — disse o guarda. — Vao congelar, se continuarem aqui.

Em uma fracao de segundo, ele lembrou-se de tudo que tinha se passado na noite anterior. Nos seus bracos estava uma mulher encolhida.

— Ela...ela esta morta.

Mas a mulher se mexeu, e abriu os olhos.

— O que esta havendo? — perguntou Veronika.

— Nada — respondeu Eduard, levantando-a. — Ou melhor, um milagre: mais um dia de vida.

Assim que o Dr. Igor entrou no consultorio e acendeu a luz — o dia continuava a amanhecer tarde, aquele inverno estava durando alem do necessario — um enfermeiro bateu a sua porta.

«Comecou cedo hoje», disse ele.

Ia ser um dia complicado, por causa da conversa com a garota. Preparara-se para isso durante toda a semana, e na noite anterior mal conseguira dormir.

— Tenho noticias alarmantes — disse o enfermeiro. — Dois dos internos desapareceram: o filho do embaixador, e a menina com problemas do coracao.

— Voces sao uns incompetentes. A seguranca deste hospital sempre deixou muito a desejar.

— E que ninguem tentou fugir antes -respondeu o enfermeiro, assustado. — Nao sabiamos que era possivel.

— Saia daqui! Tenho que preparar um relatorio para os donos, notificar a policia, tomar uma serie de providencias. E diga que nao posso mais ser interrompido, porque estas coisas levam horas!

O enfermeiro saiu, palido, sabendo que parte daquele grande problema terminaria caindo nos seus ombros, porque e assim que os poderosos agem com os mais fracos. Com toda certeza, estaria despedido antes que o dia terminasse.

O Dr. Igor pegou um bloco, colocou em cima da mesa, e ia comecar suas anotacoes, quando resolveu mudar de ideia.

Apagou a luz, deixou-se ficar no escritorio

precariamente iluminado pelo sol que ainda estava nascendo, e sorriu. Tinha conseguido.

Daqui a pouco tomaria as notas necessarias, relatando a unica cura conhecida para o Vitriolo: a consciencia da vida. E dizendo qual o medicamento que empregara em seu primeiro grande teste com os pacientes: a consciencia da morte.

Talvez existissem outros medicamentos, mas o Dr. Igor decidira concentrar sua tese no unico que tivera oportunidade de experimentar cientificamente, gracas a uma menina que entrara — sem querer — em seu destino. Viera num estado gravissimo, com intoxicacao seria, e inicio de coma. Ficara entre a vida e a morte por quase uma semana, tempo necessario para que ele tivesse a brilhante ideia do seu experimento.

Tudo dependia de apenas uma coisa: da capacidade da menina sobreviver.

E ela conseguira.

Sem nenhuma consequencia seria, ou problema irreversivel; se cuidasse de sua saude, poderia viver tanto ou mais que ele.

Mas Dr. Igor era o unico que sabia disso, como sabia tambem que os suicidas frustrados tendem a repetir seu gesto mais cedo ou mais tarde. Por que nao utiliza-la como cobaia, para ver se conseguia eliminar o Vitriolo — ou amargura — do seu organismo?

E o Dr. Igor concebera seu plano.

Aplicando um remedio conhecido como Fenotal, conseguira simular os efeitos dos ataques de coracao. Durante uma semana, ela recebera injecoes da droga, e devia ter ficado muito assustada -porque tinha tempo de pensar na morte, e de rever sua propria vida. Desta maneira, conforme a tese do Dr. Igor («A consciencia da morte nos anima a viver mais», seria o titulo do capitulo final do seu trabalho), a menina passou a eliminar o Vitriolo de seu organismo, e possivelmente nao repetiria seu ato.

Hoje iria encontrar-se com ela, e dizer que, gracas as injecoes, tinha conseguido reverter totalmente o quadro dos ataques cardiacos. A fuga de Veronika lhe poupara a desagradavel experiencia de mentir mais uma vez.

O que Dr. Igor nao contava era com o efeito contagiante de uma cura por envenenamento de Vitriolo. Muita gente em Villete ficara assustada com a consciencia da morte lenta e irreparavel. Todos deviam estar pensando no que estavam perdendo, sendo forcados a reavaliar suas proprias vidas.

Mari viera pedir alta. Outros doentes estavam pedindo a revisao dos seus casos. O caso do filho do embaixador era mais preocupante, porque ele simplesmente desaparecera — na certa tentando ajudar Veronika a fugir.

«Talvez ainda estejam juntos», pensou.

De qualquer maneira, o filho do embaixador sabia o endereco de Villete, se quisesse voltar. Dr. Igor estava entusiasmado demais com os resultados, para ficar prestando atencao a coisas pequenas.

Por alguns instantes, teve outra duvida: cedo ou tarde, Veronika se daria conta de que nao ia morrer do coracao. Na certa, procuraria um especialista, e este lhe diria que tudo em seu organismo estava perfeitamente normal. Neste momento, ela acharia que o medico que cuidou dela em Villete era um incompetente total. Mas todos os homens que ousam pesquisar assuntos proibidos precisam de uma certa coragem, e uma dose de incompreensao.

Mas, e durante os muitos dias que ela teria que viver com o medo da morte iminente?

Dr. Igor ponderou longamente os argumentos, e decidiu: nao era nada grave. Ela ia considerar cada dia um milagre — o que nao deixa de ser, em se considerando todas as probabilidades de que ocorram coisas inesperadas em cada segundo de nossa fragil existencia.

Reparou que os raios de sol ja estavam se tornando mais fortes, o que significava que os internos, a esta hora, deviam estar tomando cafe da manha. Em breve sua ante-sala estaria cheia, os problemas rotineiros voltariam, e era melhor comecar a tomar logo as notas de sua tese.

Meticulosamente, comecou a escrever o experimento de Veronika; deixaria para preencher mais tarde os relatorios sobre a falta de condicoes de seguranca do predio.

Dia de Santa Bernadette, 1998

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