eu ja era uma mulherzinha e o meu caracter ja se encontrava formado. Provavelmente a isso que devo ter guardado em toda a minha vida esta conviccao da existencia de um mundo de alegria e de felicidade vedado para mim por um destino ao qual ja pertencia ainda antes de ter nascido. E esta sensacao radicou-se tao profundamente dentro de mim que nao consigo libertar-me dela nem quando tenho a certeza de que sou feliz.

Ja disse que nesse tempo a minha grande aspiracao era o casamento. Agora posso ver qual era o verdadeiro aspecto que essa ideia tomava dentro de mim. A rua em que moravamos atravessava, quase no seu termo, um bairro menos pobre do que o nosso. Em lugar das nossas casas baixas e iguais, semelhantes a carruagens de caminho de ferro, empoeiradas e velhas, podiam ver-se ai pequenos pavilhoes rodeados de jardins. Nao eram luxuosos. Os que la viviam nao passavam de modestos empregados ou remediados comerciantes, mas, em comparacao com a miseria da nossa casa, esses pavilhoes eram infinitamente confortaveis e alegres. Alem disso eram todos diferentes uns dos outros e nao mostravam o aspecto de decadencia que dao as paredes sem cal e cheias de gretas, caracteristica dominante da nossa casa e das dos nossos vizinhos. Tambem os jardins que os rodeavam, apesar de pequenos, estavam cheios de plantas e davam-me uma doce sensacao de intimidade, em contraste com a desagradavel promiscuidade da rua. Na minha casa era isso o que se encontrava a todos os momentos e em toda a parte, a rua: no vasto vestibulo, que tinha o ar de um armazem abandonado, na larga escada nua e suja, e ate nas salas, cujos moveis desirmanados e a cair aos pedacos me faziam pensar nos ferros-velhos que os compravam e vendiam ao longo dos passeios.

Uma noite de Verao em que passeava na rua com minha mae, pela janela de um desses pavilhoes vi uma cena familiar que se gravou para sempre no meu espirito e me pareceu corresponder ponto por ponto a ideia que tinha do que deve ser uma vida normal e decente. Uma sala pequena, mas arrumada e limpa, com as paredes forradas de um papel pintado as florinhas, uma credencia e um candeeiro de tecto suspenso ao centro da sala por cima da mesa posta. A roda desta mesa sentavam-se cinco ou seis pessoas, entre as quais tres criancas dos oito aos doze anos. No meio da mesa havia uma terrina, e a mae, de pe, servia a sopa. Por muito estranho que isto possa parecer, de todas estas coisas a que mais profundamente se gravou na minha memoria foi a luz da suspensao, ou, melhor, o aspecto extraordinariamente sereno e normal que todas as coisas tomavam vistas sob esta luz. Mais tarde, sempre que voltei a pensar nesta cena, tive a conviccao absoluta de que o meu fito na vida devia ter sido viver numa casa identica, ter uma familia como esta e passar os meus dias ao clarao de uma luz assim, que parecia revelar a presenca de tantas afeicoes seguras e tranquilas. Muita gente ha-de sorrir da modestia das minhas aspiracoes. Mas e preciso nao esquecer o que eu era nesse tempo. Para mim, nascida num autentico tugurio, aquele pavilhao modestissimo surgia aos meus olhos como surgiria aos olhos dos seus habitantes, que eu tanto invejava, um dos maiores e mais sumptuosos palacios dos bairros aristocraticos, tao certo e ser o paraiso de uns o que para outros nao passa do inferno.

Minha mae, ao contrario, acalentava grandes projectos para o meu futuro, e eu depressa compreendi que esses projectos excluiam por completo qualquer tipo de vida parecido com o que eu propria desejava. O que ela pensava, em resumo, era que a minha beleza me permitia aspirar a todos os generos de exitos, mas de nenhum modo a tornar-me, como as outras raparigas, uma mulher casada, vivendo para o marido e para os filhos. Sendo nos extremamente pobres, a minha beleza parecia-lhe o unico patrimonio de que dispunhamos, e pertencia, portanto, tanto a mim como a ela, visto ter sido dela que eu a recebera ao deitar-me ao mundo. E esta riqueza devia servir-me para melhoria da nossa situacao, sem ligar importancia ao que podiam ser as convencoes sociais. No fundo isto nao passava de uma completa falta de imaginacao. Numa situacao como a nossa, a ideia de por a minha beleza a render era perfeitamente intuitiva. Minha mae adoptou-a, agarrou-se a ela e nunca mais a abandonou.

A verdade e que eu so muito vagamente compreendia os projectos da minha mae. Mas mesmo mais tarde, quando adquiri experiencia da vida, nunca tive coragem para lhe perguntar como, incompreensivelmente, tendo ela essas ideias, tinha acedido a casar com um pobre-diabo e cair na miseria. Muitas das suas alusoes tinham-me feito compreender que a verdadeira culpada deste estado de coisas era eu, visto que o meu nascimento nao tinha sido previsto nem desejado. Por outras palavras, o meu nascimento fora ocasional, e minha mae, sem coragem de me impedir de nascer (como deveria ter feito, segundo dizia muitas vezes), nao tinha tido outro remedio senao casar-se com meu pai e aceitar todas as consequencias desastrosas de um casamento semelhante. Por isso, com frequencia, referindo-se ao meu nascimento, afirmava: “Tu foste a minha ruina!”

Estas palavras, apesar da tristeza que me causavam, foram durante muito tempo perfeitamente obscuras para mim. So muito mais tarde lhes consegui apreender o sentido exacto. O que elas realmente significavam era: “Sem ti nunca me teria casado e a esta hora tinha automovel!” Era perfeitamente compreensivel que, nutrindo ideias destas acerca da sua propria vida, minha mae nao concebesse para mim, muito mais bonita do que ela fora, o caminho dos mesmos erros, e portanto um destino semelhante.

Hoje, que me e possivel ver as coisas em perspectiva, nao tenho coragem de a condenar. Para minha mae a palavra familia significava miseria, escravidao e algumas pequenas alegrias rapidamente terminadas com a morte do meu pai. Era natural, senao justo, que considerasse a vida honesta e familiar como um caminho seguro para a desgraca e estivesse alerta a nao me deixar tentar pelas miragens que a tinham atraido.

A sua maneira, minha mae gostava muito de mim. Por exemplo: logo que eu comecei a frequentar os ateliers, fez-me dois vestidos: um fato inteiro e outro de saia e casaco. Para falar verdade, eu teria preferido roupa interior, porque tinha vergonha, sempre que era forcada a despir-me, da minha roupa grosseira, usada, e ate muitas vezes pouco limpa. Mas minha mae declarava que o importante era o que estava a vista. Para os fatos escolheu dois tecidos baratos, de cor e padrao vistosos, e cortou-os e coseu-os ela propria. Mas, porque era camiseira e nao modista, apesar da sua boa vontade, os resultados foram desastrosos. Lembro-me de que o fato inteiro fazia pregas no peito, deixando-me de tal maneira os seios a descoberto que fui obrigada a usar constantemente um alfinete para fechar um pouco mais o decote, e que o fato de saia e casaco estava demasiadamente apertado e fazia rugas e pregas por todos os lados. Apesar disso, estas roupas pareceram-me verdadeiras maravilhas, em comparacao com as coisas que ate ali usara. Minha mae comprou-me tambem dois pares de meias de seda. Tudo isso me encheu de alegria e de orgulho. Pensava constantemente, com encanto, nas minhas novas coisas e nem por um momento abandonava a preocupacao de as nao sujar ou estragar, como se aqueles miseros trapos tivessem saido das maos de um grande costureiro.

Minha mae pensava muito no meu futuro e nao tardou a mostrar-se descontente com a minha actividade de modelo. Segundo ela, o que eu ganhava era uma verdadeira miseria. Alem disso, tanto os pintores como os seus amigos eram uns pobretoes, e nao seria com certeza nos seus ateliers que eu conseguiria algumas relacoes uteis. De repente meteu-se-lhe na cabeca fazer-me bailarina. A sua cabeca estava sempre cheia de ideias ambiciosas, ao passo que eu, como ja tive ocasiao de dizer, sonhava com um marido, filhos e uma vida simples e tranquila. A ideia da danca veio a minha mae num dia em que recebera uma encomenda de camisas para o director de uma companhia de variedades que se exibia num cinema entre dois filmes. Isto nao quer dizer que minha mae pensasse que a profissao de bailarina fosse por si propria muito lucrativa; mas, conforme afirmava constantemente, umas coisas levam as outras e quem se exibe num palco mais tarde ou mais cedo acaba por encontrar um homem decente.

Um dia declarou-me que falara com o director e que este me queria conhecer. Fomos, assim, uma manha ao hotel em que ele e os seus artistas estavam hospedados. O hotel — recordo-me perfeitamente — ficava num predio muito grande e muito velho perto da estacao. Era quase meio-dia quando la chegamos, mas os corredores ainda estavam em profunda obscuridade. O cheiro humano que saia de todos aqueles quartos era tao forte e tao denso que chegava a dificultar a respiracao. Percorremos varios desses corredores e acabamos por entrar numa especie de antecamara sombria, onde tres bailarinas se exercitavam ao som de um velho piano desafinado. Este piano estava arrumado num angulo da parede junto da porta de vidro fosco das retretes; no canto em frente havia um enorme montao de lencois sujos. O pianista, um velho palido, tocava de cor; deu-me a impressao de pensar noutra coisa e talvez ate de estar a dormir. As tres bailarinas eram jovens; tinham despido os corpetes, conservando as saias de baixo, e dancavam com o peito e os bracos nus. Seguravam-se umas as outras pela cintura, e quando o pianista atacava uma aria caminhavam na direccao do montao de roupa suja, levantando as pernas e passeando-as num movimento de conjunto, primeiro para a direita e depois para a esquerda; depois com uma atitude provocante, extremamente bizarra neste lugar sombrio e lugubre, imprimiam as nadegas uma oscilacao vigorosa. Quando olhei para elas e as vi bater com os pes no chao com um barulho ritmico, forte e surdo, senti que me faltava a coragem. Nao ignorava que, apesar das minhas pernas longas e robustas, eu nao possuia a menor queda para a danca. Tinha recebido licoes, juntamente com duas amigas, numa escola do

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