bairro. As minhas camaradas haviam conseguido em poucos dias apreender o ritmo e mexer as pernas e as ancas como duas bailarinas bem treinadas; eu, pelo contrario, parecia feita de chumbo. Isto dava-me a impressao de nao ser feita como as outras raparigas e julgava existir em mim qualquer coisa de macico e de pesado que a musica nao conseguia atingir. Alem disso, nas raras vezes em que tinha dancado, o facto de sentir um braco apertar-me a cintura dava-me uma tal sensacao de moleza e de abandono que eu arrastava as pernas em lugar de as mover. O pintor bem mo dissera: “Tu, Adriana, devias ter nascido tres ou quatro seculos mais cedo… Estava na moda as mulheres como tu. Hoje, que a moda e a magreza, tu es como um peixe fora de agua. Dentro de quatro ou cinco anos estaras bela e forte como Juno.” Nesta ultima parte nao acertou porque os cinco anos passaram e eu nao estou nem mais gorda nem mais forte que nesse tempo. Mas quando me dizia que estava deslocada nesta epoca de mulheres magras tinha razao, e eu sofria com a minha incapacidade. Bem gostaria de emagrecer e de dancar como as outras raparigas. Mas por menos que comesse e por mais esforcos que fizesse continuava macica e imponente como uma estatua, e quando dancava era-me impossivel obedecer ao ritmo rapido e saltitante da musica moderna.

Disse tudo isto a minha mae, porque tinha a certeza de que a nossa ida ao hotel seria um fiasco e queria evitar essa humilhacao. Mas minha mae desatou a gritar que eu era infinitamente mais bela do que todas as desgracadas que se mostravam nos palcos, que o director daria gracas a Deus pela sorte de poder incluir-me no seu grupo de artistas e outras coisas semelhantes. Minha mae nada compreendia da beleza moderna; acreditava com inteira boa fe que quanto mais opulentos forem os seios e as ancas de uma mulher mais bela essa mulher sera.

O director esperava-nos numa sala que dava para a antecamara de que ja falei; suponho que do sitio onde estava podia vigiar, pela porta aberta, o trabalho das bailarinas. Estava sentado numa poltrona ao lado da cama por fazer, e em cima desta tinha ainda a bandeja do pequeno-almoco, que acabara de tomar. Era velho e gordo, mas vestia-se com exagerado requinte e com uma elegancia vistosa, que naquele quarto pobre e desleixado, mal iluminado e com a cama desfeita, assumia um aspecto singular e anacronico. O seu rosto era corado, mas desconfiei que o pintava, porque debaixo do tom rosado das faces podiam ver-se como que placas irregulares de um moreno doentio. Usava monoculo, movia constantemente os labios assoprando e descobrindo os dentes de uma brancura tao excessiva que se via imediatamente serem posticos. Estava sentado com o enorme ventre caindo-lhe para o meio das pernas; quando acabou de comer disse-me numa voz contrariada e quase gemebunda:

— Vamos, mostra-me as pernas!

— Mostra as pernas ao senhor director — repetiu a minha mae com ansiedade.

Desde que trabalhava nos ateliers ja nao tinha vergonha… Mostrei as pernas conservando-me imovel, arregacando a saia com as duas maos. As minhas pernas sao verdadeiramente belas: longas, cheias e lisas, mas, um pouco acima dos joelhos, as coxas tomam um desenvolvimento insolito: sao redondas e fortes e nao cessam de alargar ate ao ponto mais saliente das ancas.

O director abanou a cabeca e perguntou:

— Que idade tens tu?

— Completou dezoito anos em Agosto — respondeu prontamente minha mae.

O director nao respondeu. Levantou-se e dirigiu-se para um fonografo que se encontrava em cima da mesa, no meio de papeis e pecas de roupa. Deu volta a manivela, escolheu um disco com cuidado e colocou-o no prato. Depois disse-me :

— Agora tenta dancar ao som desta musica, mas mantendo a saia levantada.

— Ela so teve duas ou tres licoes de danca — explicou minha mae.

Sabia perfeitamente que essa prova era decisiva, e conhecendo a minha falta de habilidade temia o resultado do exame.

Mas o director, depois de ter feito um gesto pedindo silencio, fez rodar o disco e, tambem por gestos, convidou-me a dancar.

Comecei mantendo a saia levantada, como me tinha dito para fazer. Na realidade, a unica coisa que fiz foi atirar as pernas para a direita e para a esquerda de um modo pesado e sem graca, dando-me perfeitamente conta de que nem sequer o fazia acompanhando o ritmo da musica. O director tinha-se deixado ficar de pe junto do fonografo com os cotovelos apoiados na mesa, olhando para mim. De repente parou o aparelho e fechou-o. Voltou a sentar-se na sua poltrona e com um gesto expressivo indicou-nos a porta.

— Que foi? Nao serve? — interrogou minha mae, entre ansiosa e agressiva.

Ele respondeu sem sequer olhar para ela, ao mesmo tempo que remexia nos bolsos em busca da cigarreira.

— Nao. Nao serve.

Eu bem sabia que quando minha mae falava com aquele tom de voz tentava provocar uma discussao. Para evitar isso puxei-a por um braco. Mas ela afastou-me com um safanao e, fixando no director um olhar chamejante, repetiu, ja em voz mais forte:

— Nao serve? Nao? E podera saber-se porque? Entretanto o director tinha encontrado os cigarros e procurava os fosforos.

Devido a sua gordura cada um dos seus gestos parecia custar-lhe um enorme esforco. Apesar de ofegante, foi com grande tranquilidade que respondeu:

— A tua filha nem tem fisico de bailarina nem tem a menor queda para a danca. Por isso que nao serve.

Como eu calculava, minha mae desatou nas suas habituais consideracoes. Que eu era uma autentica beleza, que tinha um rosto de Madona, que nao havia pernas, nem ancas, nem seios mais belos do que os meus. Calmamente, continuando a fumar o seu cigarro, o director observava-a e esperava que ela se calasse. Depois disse na sua voz contrariada e um pouco chorona:

— Dentro de dois anos a tua filha podera talvez dar uma boa ama de leite. Uma bailarina nunca!

O pobre homem nao sabia de que extremos de violencia minha mae era capaz. O seu pasmo foi tao grande que deixou cair o cigarro e ficou de boca aberta. Minha mae era magra e de aspecto fragil, de modo que ninguem compreendia onde ela ia buscar tanta colera e uma voz tao forte. Atirou-lhe a cara, dirigidas a ele e as bailarinas que tinhamos visto no corredor, quantas injurias sabia. Depois, agarrando nos cortes de seda que ele lhe confiara para ela fazer camisas, arremessou-os ao chao gritando:

— As suas bailarinas que lhe facam as camisas! Eu nao lhes tocarei nem que mas pagasse a peso de ouro.

Isto era tao inesperado para o director que ele nada respondeu e ficou a olhar para minha mae, estupefacto e congestionado.

Eu, entretanto, tentava arrasta-la dali para fora e quase chorava de vergonha e de humilhacao. Consegui-o finalmente, e saimos do quarto sem que o director pronunciasse uma unica palavra.

No dia seguinte contei esta aventura ao pintor, que se tinha tornado um pouco meu confidente. Ele riu com vontade do que o director dissera quanto as minhas aptidoes para ama de leite e disse-me:

— Minha pobre Adriana. Ja to disse varias vezes: o teu grande erro foi teres nascido no tempo presente; devias ter vindo ao mundo ha quatro seculos. O que hoje e considerado defeito era entao considerado qualidade e vice-versa. Do seu ponto de vista, o director tem razao. O publico actualmente exige mulheres magras, louras, de seio pequeno, ancas estreitas e um rosto malicioso e provocante; tu, pelo contrario, es forte, morena, com um seio e umas ancas opulentas e um rosto doce e tranquilo. Nao esta na tua mao modificares a situacao. Para mim tens precisamente o que necessito. Continua a ser modelo. Depois, um belo dia, casaras e teras muitos filhos parecidos contigo, morenos e gorduchos, com caras meigas e tranquilas.

— Sao essas precisamente as minhas ambicoes — respondi com energia.

— Muito bem — disse ele. — Agora inclina-te um bocadinho para o lado. Isso! Optimo.

Este pintor queria-me bem a sua maneira, e se tivesse continuado a viver em Roma e a servir-me de confidente tenho a certeza de que me daria bons conselhos e muitas coisas que me aconteceram poderiam ter sido evitadas. Mas ele queixava-se constantemente de que nao vendia os seus quadros e acabou por aproveitar a oportunidade de ter feito uma exposicao em Milao para fixar residencia naquela cidade.

Continuei a ser modelo como ele me aconselhara. Mas os outros pintores nao tinham por mim a mesma amizade e eu nao me sentia disposta a falar-lhes dos meus problemas nem da minha vida.

Nessa altura, alias, muito mais imaginaria do que real, feita de sonhos, de aspiracoes e de esperancas,

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