tu nao conheces as armas, nao sabias que ha uma bala no cano! O facto de nao te teras apercebido disso reforcou a minha resolucao. Alias ha tantas maneiras de se matar! Como te disse nao posso aceitar o que fiz. Senti nestes ultimos dias que te amava; mas, se eu fosse logico, deveria odiar-te, porque tudo o que odeio em mim, e que o meu interrogatorio me revelou, existe em ti no mais alto grau.

Na realidade, naquele momento, foi a personagem que eu deveria ter sido quem baqueou; fui unicamente o homem que sou. Nao houve da minha parte nem cobardia, nem traicao, mas somente uma misteriosa interrupcao da vontade. Nao talvez completamente misteriosa, mas o bastante para vir a conduzir-me longe de mais. Basta-me dizer que matando-me, reponho as coisas no seu devido lugar. Nao tenhas medo, nao te odeio; pelo contrario, amo-te a tal ponto que o simples facto de pensar em ti chega para me reconciliar com a vida. Se isso fosse possivel, com certeza que viveria, casaria contigo e seriamos felizes, como tu o dizias tantas vezes. Mas realmente nao era possivel. Pensei na crianca que vai nascer e escrevi nesse sentido duas cartas: uma a minha familia e outra a um advogado meu amigo. Apesar de tudo, os meus sao boa gente e, se bem que nao se possa ter ilusoes sobre os sentimentos deles a teu respeito, estou convencido de que cumprirao o seu dever. No caso improvavel de se recusarem a faze-lo, nao deves hesitar em servir-te da lei. Este amigo advogado ira procurar-te e podes confiar nele. Pensa algumas vezes em mim.

Beija-te

Teu Jaime

P. S. — O nome do meu amigo advogado e Francisco Laureau. A sua direccao e Rua Cola Rienzo, 3.”

Quando acabei de ler esta carta enfiei-me debaixo da roupa, enrolei a cabeca nos lencois e chorei lagrimas ardentes. Nao saberei dizer por quanto tempo chorei. De cada vez que julgava ter acabado, uma especie de amarga e violenta derrocada se produzia no meu peito e rompia de novo em solucos. Nao gritava, como sentia desejos de o fazer, para nao chamar a atencao da minha mae. Chorava em silencio, sentindo que era a ultima vez na minha vida que chorava. Chorava por Jaime, por mim propria, pelo meu passado e pelo meu futuro.

Em seguida, sem deixar de chorar, levantei-me e, atordoada. com a vista nublada de lagrimas, vesti-me a pressa. Lavei os olhos com agua fria e pintei ao acaso a cara vermelha e inchada e sai sem que a minha mae me visse.

Corri ao comissariado do bairro e pedi para ser recebida pelo comissario. Ouviu a minha historia e disse- me com ar ceptico :

— Para dizer a verdade de nada temos conhecimento. Vai ver que ele deve ter-se arrependido.

Desejava que ele tivesse razao. Mas ao mesmo tempo, sem saber porque, senti uma grande irritacao:

— Se fala assim e porque nao o conhecia — disse-lhe com dureza. — Julga que toda a gente e como o senhor!

— Mas em suma — perguntou-me — pensa que ele esta vivo ou morto?

— Eu quero que ele viva! Quero que ele viva! Mas receio bem que esteja morto!

Reflectiu por um momento e depois disse-me:

— Acalme-se. No momento em que escreveu essa carta tinha toda a intencao de se matar… Depois e possivel que se tenha arrependido… E humano… pode acontecer a toda a gente.

— Sim, e humano — balbuciei.

Nao sabia o que dizia.

— Seja como for, volto esta noite — concluiu. — Esta noite ja lhe poderei dizer qualquer coisa.

Do comissariado fui direita a igreja. Era a igreja onde eu fora baptizada, onde tinha feito a primeira comunhao e onde fora crismada. Uma velha igreja, comprida e nua, com duas alas de colunas de pedra bruta e o chao de mosaicos poeirentos. Ao fundo abriam-se tres capelas muito ricas e muito douradas, como grutas profundas cheias de tesouros. Uma dessas capelas era consagrada a Virgem. Ajoelhei-me na penumbra, sobre o mosaico, em frente da grade de bronze que fechava a capela. A Virgem estava num grande altar, em frente do qual havia muitos vasos cheios de flores. Ela segurava o Menino nos bracos; a seus pes um santo com habito de monge adorava-O de joelhos, com as maos postas. Prostrei-me e bati com forca com a testa no solo de pedra. Cobrindo o chao de beijos em forma de cruz, invoquei a Virgem e pronunciei mentalmente um voto. Prometi que nunca mais na minha vida se aproximaria de mim nenhum homem, nem mesmo Jaime; o amor era a unica coisa no mundo que me fazia falta e de que eu gostava: parecia-me que nao poderia fazer pela salvacao de Jaime um sacrificio maior. Depois, sempre prostrada, a fronte contra a laje, rezei sem palavras, durante muito tempo, apenas com a grande forca do meu coracao dolorido. Mas quando me levantei tive como que um deslumbramento; pareceu-me que uma brusca claridade envolvia a capela e afastava a espessa sombra em que estava mergulhada; e, nessa claridade, indistintamente a Virgem olhar-me com docura e bondade, mas ao mesmo tempo fazer-me com a cabeca sinal que nao, como para me indicar que nao aceitava a minha promessa. Foi coisa de um instante; em seguida encontrei-me de pe junto da grade, em frente do altar. Mais morta que viva, fiz o sinal da cruz e voltei para casa.

Esperei o dia todo, contando os minutos e os segundos. A tardinha voltei ao comissariado. O comissario olhou-me de uma maneira estranha; meio desfalecida perguntei-lhe com um fio de voz:

— Entao? E verdade? Matou-se?

Ele agarrou uma fotografia que estava em cima da mesa, estendeu-ma e disse:

— Um individuo nao identificado matou-se de facto, num hotel, proximo da gare. Veja se e ele.

Peguei na fotografia e reconheci-o logo. Tinham-no fotografado da cintura para cima, estendido sobre a cama. segundo me pareceu. Da tempora, que a bala furara, numerosos fios de sangue negro ralavam-lhe a cara. Mas apesar disso o seu rosto tinha uma expressao de tao completa serenidade como nunca tivera em vida.

Disse com voz apagada que era ele e levantei-me. O comissario quis ainda falar, talvez para me consolar. Nem o ouvi e sai sem olhar para tras.

Fui para casa e desta vez atirei-me para os bracos de minha mae, mas sem chorar. Sabia que ela era estupida e nada compreendia; ela era a unica pessoa a quem eu podia confiar o meu desgosto. Contei-lhe tudo: o suicidio de Jaime, o nosso amor e que eu estava gravida. Mas nao lhe disse que o pai de meu filho era Sonzogne. Falei-lhe tambem da minha promessa e disse-lhe que tinha decidido mudar de vida, que voltaria a fazer camisas, com ela, ou que me empregaria como criada. Depois de tentar consolar-me por meio de uma quantidade de frases parvas mas sinceras, minha mae disse que nao valia a pena precipitar-me: por agora era necessario ver o que faria a familia de Jaime.

— Isso — respondi-lhe — e uma coisa que diz respeito ao meu filho e nao a mim.

No dia seguinte de manha os dois amigos de Jaime, Tulio e Tomas, apareceram-me de maneira inesperada. Tambem eles tinham recebido uma carta, na qual, depois de lhes anunciar que se matava, Jaime advertia-os daquilo a que chamava “a sua traicao” e punha-os em guarda contra as consequencias do seu acto.

— Nao tenham medo — disse-lhes eu duramente —, se estao com medo podem ficar descansados. Nada vos acontecera.

E contei-lhes a historia de Astarito, dizendo-lhes que Astarito, o unico que tomara conhecimento das declaracoes de Jaime, estava morto, que o interrogatorio nao fora transcrito e que nao tinham sido denunciados. Pareceu-me que Tomas estava sinceramente desgostoso com a morte de Jaime, mas que o outro ainda nao estava refeito do susto que apanhara. Passado um momento, Tulio declarou-me:

— De qualquer maneira ele meteu-nos num sarilho… quem pode confiar na policia? Nunca se sabe! E na verdade uma traicao!

E esfregava as maos emitindo uma das suas enormes gargalhadas habituais, como se a coisa fosse realmente comica.

Levantei-me indignada :

— Como uma traicao? Como? Ele matou-se; que mais querem? Nenhum de voces teria coragem para fazer o mesmo! E depois e preciso que vos diga uma coisa: a vossa traicao nao vos traria merito algum, porque voces nao passam de dois pobres-diabos, dois miseraveis, que nunca tiveram um tostao, filhos de desgracados, pobres camponeses, e se as coisas tivessem corrido bem acabariam por ter aquilo que nunca tiveram e conheceriam uma

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