— Pensas que o vai matar?

— Se o fizesse nao me admiraria.

— E preciso avisa-lo! — gritei levantando-me e vestindo-me. — Tenho a certeza de que o vai matar! Ah! Mas porque nao pensei nisto mais cedo?

Vestia-me a pressa falando sempre do meu receio, do meu pressentimento. Jaime, calado, fumava. Disse- lhe:

— Vou a casa de Astarito… A esta hora esta em casa… Espera-me aqui.

— Vou contigo.

Nao insisti. No fundo agradava-me que me acompanhasse, porque estava tao agitada que receava sentir- me mal. Enfiei o casaco e declarei:

— E preciso apanhar um taxi.

Jaime vestiu o sobretudo e saimos.

Na rua comecei a andar rapidamente, quase a correr, enquanto Jaime, sem me largar o braco, me seguia. Encontramos logo um taxi; gritei a direccao de Astarito. Era uma rua no bairro Prati; nunca la tinha ido, mas sabia que nao era longe do Palacio da Justica. O taxi arrancou. Fora de mim, segui o percurso curvando-me, para observar as ruas, sobre o ombro do chauffeur. A certa altura ouvi Jaime rir baixinho, e, como se falasse consigo, pronunciar:

— E depois! Uma serpente engoliu outra serpente.

Nao lhe prestei atencao. Quando chegavamos em frente do Palacio da Justica mandei parar e Jaime pagou. Atravessamos as ruas por entre alas de saibro, entre os bancos e as arvores. A rua de Astarito surgiu na minha frente como uma espada: longa e direita, iluminada a todo o comprimento por uma longa fila de candeeiros brancos. Era uma rua ladeada de edificios regulares e macicos, sem lojas, e que parecia deserta. Astarito morava no fim da rua. Reinava uma tal tranquilidade que eu declarei:

— E possivel que eu nao tenha feito outra coisa que imaginar tudo isto… Fosse como fosse era meu dever vir.

Passamos tres ou quatro predios e varias ruas transversais. Entao Jaime disse-me com uma voz tranquila:

— Deve ter acontecido alguma coisa… olha.

Levantei os olhos e a pouca distancia vi um ajuntamento em frente de uma porta. Um cordao de gente alinhava-se no passeio fronteiro; olhavam para cima, na direccao do ceu sombrio. Senti logo a certeza de que estavam em frente da porta de Astarito. Comecei a correr; tive a impressao de que Jaime corria tambem.

— Que ha aqui? O que aconteceu? — perguntei, sem folego. aos primeiros que estavam no grupo que se comprimia diante da porta de Astarito.

— Nao se percebe bem — respondeu aquele a quem me dirigi, um homem louro, sem casaco, sem chapeu, que segurava a bicicleta pelo guiador —, foi alguem que se atirou para a caixa da escada… ou atiraram- no. A policia subiu ao telhado para investigar o caso.

Abri caminho por entre a multidao, e a forca de cotoveladas penetrei no hall da casa, que era espacoso, bem iluminado e estava cheio de gente. Uma escada branca com corrimao de ferro forjado subia formando uma larga curva por cima de todas essas cabecas. Quando consegui chegar a frente, vi por entre todos aqueles ombros uma parte do patamar inferior da escada. Um pilar redondo de marmore branco suportava uma estatua de bronze dourado, alada e nua, com um braco levantado segurando um facho que continha uma lampada. Mesmo debaixo do pilar estava um corpo humano coberto com um lencol. Toda a gente olhava para o mesmo lado; olhei tambem e vi um pe calcado de preto que saia do lencol. No mesmo instante uma voz comecou a gritar imperiosamente.

— Para tras! Vao-se embora!

Senti-me projectada com violencia para a rua, juntamente com os outros. Os altos batentes da porta fecharam-se logo em seguida. Disse com voz apagada a quem estava atras de mim:

— Jaime, vamos!

Vi entao uma pessoa desconhecida que, admirada, me olhava. Depois de terem em vao protestado em voz alta e batido com os punhos na porta fechada, as pessoas dispersaram-se pelas ruas fazendo comentarios: Outras chegavam de todos os lados correndo. Dois automoveis e um bom numero de bicicletas pararam para se informarem. Comecei a girar por entre esta multidao com ansiedade cruciante e a olhar todas estas caras sem ousar falar. Certas nucas, certos ombros, pareciam-me os de Jaime; enfiava-me impetuosamente pelo meio de grupos e via um grande numero de pessoas que me olhava com surpresa. Havia muita gente em frente da porta; eles sabiam que ela escondia um cadaver e tinham esperanca de o poder ver. La estavam, apertados, com uma expressao paciente e grave, como as bichas a porta dos teatros.

Continuava a errar ainda quando me apercebi que ja tinha examinado toda a gente e que tornava a ver sempre as mesmas pessoas. Pareceu-me ouvir, num destes grupos, o nome de Astarito e notei que nao me preocupava com ele, mas que toda a minha angustia se concentrava em Jaime. Acabei por me convencer de que ja la nao estava. Devia ter-se afastado no momento em que penetrei no hall. Pareceu-me, nao sei porque, que deveria ter esperado esta fuga; admirava-me de nao ter pensado nisto mais cedo. Apelando para todas as minhas forcas, arrastei-me ate praca, subi para um taxi e dei a direccao da minha casa. Pensava que Jaime me podia ter perdido de vista e ter voltado para casa. Mas tinha quase a certeza de que nada disso acontecera.

Nao estava em casa e nao voltou nem nessa noite nem no dia seguinte. Fiquei fechada no quarto, presa de um mal-estar tao angustiante que nao podia deixar de tremer da cabeca aos pes. Mas nao tinha febre. Parecia- me apenas que vivia fora de mim propria, num mundo anormal, excessivo, onde todo o espectaculo, todo o ruido, todo o contacto me feriam e me produziam desfalecimentos de coracao. Nada me podia impedir de pensar em Jaime, nem mesmo a descricao em pormenor do novo crime de Sonzogne, que os jornais que minha mae tinha comprado traziam em grandes letras. O crime tinha a assinatura de Sonzogne; parecia que os dois homens tinham lutado por momentos sobre o patamar em frente da porta de Astarito, depois Sonzogne tinha-o empurrado contra o corrimao, levantara-o e atirara-o pela caixa da escada. Esta crueldade era extraordinariamente expressiva; mais ninguem a nao ser Sonzogne poderia matar um homem desta maneira. Mas, como ja disse, tinha uma unica ideia e nem mesmo cheguei a interessar-me pelos artigos que contavam como mais tarde, durante a noite. Sonzogne fora morto a tiro enquanto fugia pelos telhados como um gato. Experimentava uma especie de nausea por tudo o que nao dissesse respeito a Jaime, e ao mesmo tempo pensar nele enchia-me de uma angustia insuportavel. Por duas ou tres vezes recordei Astarito; lembrava-me do seu amor por mim e da sua melancolia com um sentimento de piedade tao forte como impotente; se nao sentisse esta angustia por causa de Jaime teria com certeza chorado e rezado por esta alma, que nenhuma luz tinha alegrado e que fora separada do corpo de uma forma tao prematura e tao desumana. Foi assim que passei este primeiro dia, a noite, o dia seguinte e a outra noite. Estendida na cama ou sentada numa cadeira, apertava com forca entre as maos um casaco de Jaime, que encontrara pendurado no bengaleiro, e beijava-o de vez em quando com paixao, ou mordia-o para refrear a minha grande inquietacao. Mesmo quando minha mae me obrigava a tomar algum alimento, comia com uma das maos e com a outra apertava convulsivamente o casaco. A segunda noite minha mae quis deitar-me; deixei-me despir sem oferecer resistencia. Mas quando tentou tirar-me o casaco, dei um grito de tal maneira aflitivo que minha mae se assustou. Ela nada sabia, mas compreendeu vagamente que me desesperava com a ausencia de Jaime.

Ao terceiro dia tive uma ideia e toda a manha me agarrei a ela com obstinacao, se bem que compreendesse que nao tinha muito fundamento. Pensava que Jaime se assustara ao saber que eu estava gravida, que quisera fugir as obrigacoes que lhe impunham o meu estado e que se refugiara em sua casa, na provincia. Era uma vil suposicao: mas preferia imaginar uma cobardia sua a admitir outra hipoteses tao tristes, sugeridas pelas circunstancias que tinham acompanhado a sua desaparicao.

Nesse mesmo dia, a tarde, minha mae entrou no meu quarto e atirou-me para cima da cama uma carta. Reconheci a letra de Jaime e senti uma grande alegria. Esperei primeiro que minha mae saisse, depois que me passasse a perturbacao que me assaltara. Em seguida abri a carta. Ei-la completa :

“Querida Adriana:

No momento em que receberes esta carta estarei ja morto. Quando abri o meu revolver e nao encontrei as balas compreendi logo que tinhas sido tu quem o esvaziara e pensei em ti com grande amizade. Pobre Adriana,

Вы читаете A Romana
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату
×