desesperado, nem que fosse pela ultima vez. Nao saberei repetir as coisas que ele me disse, porque, misturadas com as suas suplicas, proferia enormidades que eu nao desejaria escrever, das que se dizem as mulheres como eu e que as mulheres como eu dizem aos seus amantes. Ele dizia-as com uma precisao meticulosa, mas sem a alegria maliciosa que acompanha habitualmente estas efusoes; antes com uma sombra de prazer obcecado. Vi uma vez, num asilo, um doido descrever ao enfermeiro as torturas que lhe infligiria se lhe caisse nas maos no mesmo tom fanfarrao, mas grave e escrupuloso que tinha Astarito para me sussurrar estas obscenidades. Na realidade o que ele me descrevia desta maneira era o seu amor, ao mesmo tempo sombrio e luminoso, que poderia parecer simples deboche, mas que eu sabia profundo, completo, e a sua maneira tao puro como qualquer outro. Como sempre, inspirava-me sobretudo pena, por causa da solidao que eu sentia no fundo de todas estas enormidades. Deixei-o acabar as suas efusoes; depois declarei-lhe:

— Nao te queria dizer, mas tu obrigas-me a isso… Faz como quiseres, mas eu nao quero voltar a ser o que era dantes… Estou gravida.

Nao ficou admirado e nao abandonou a ideia fixa:

— Bem? — disse. — E depois?

Revelara-lhe o meu estado primeiro que tudo para o consolar da minha recusa. Mas enquanto lho dizia apercebi-me de que dissera realmente o que pensava e que as minhas palavras vinham do coracao. Acrescentei com um suspiro:

— Ja, antes de te conhecer, eu queria casar… nao foi por culpa minha que o nao fiz.

Ele conservara o braco a roda da minha cintura, mas ja nao me apertava. Afastou-se de mim e gritou:

— Maldito seja o dia em que te encontrei!

— Porque, se me amaste?

Cuspiu de lado e disse ainda:

— Maldito o dia em que te encontrei e maldito o dia em que nasci!

Nao gritava agora, nem parecia traduzir um sentimento violento; falava com calma e com conviccao.

— O teu amigo nada tem a recear — acrescentou. — Nenhum interrogatorio foi escrito. Nao anotaram qualquer das suas informacoes… Continua a figurar como um politico perigoso. Adeus, Adriana.

Tinha ficado ao pe da janela: disse-lhe adeus vendo-o afastar-se. Pegou no chapeu e afastou-se sem olhar para tras.

Logo a porta de comunicacao do meu quarto com a cozinha se abriu e Jaime entrou com o revolver na mao. Olhava-o espantada, vazia, sem forcas, muda.

— Tinha decidido matar Astarito — disse-me com um sorriso. — Julgas que realmente me interessava que o meu processo desaparecesse?

— E porque nao o fizeste? — perguntei como num sonho.

Ele abanou a cabeca.

— Ele amaldicoou tanto o dia em que nasceu! Deixemo-lo amaldicoa-lo ainda durante mais alguns anos.

Sentia qualquer coisa que me angustiava, mas nao conseguia compreender o que era.

— Em todo o caso, consegui aquilo que queria. Nao ha nenhum processo.

— Ouvi, ouvi — interrompeu-me. — Ouvi tudo; estava atras da porta e a porta estava aberta… Tambem vi que e corajoso o teu Astarito — acrescentou negligentemente. — Pan! Pan! Que duas estaladas magistrais aplicou no Sonzogne! Mesmo para dar bofetadas e preciso categoria. Estas eram verdadeiramente de um superior para um inferior, de um patrao; de alguem que se julga patrao, a um servidor. E como Sonzogne as recebeu! Nem piou!

Jaime ria enquanto guardava o revolver na algibeira.

Fiquei um pouco desconcertada com o elogio que ele fazia a Astarito. Perguntei-lhe com uma certa hesitacao:

— Que julgas que Sonzogne vai fazer?

— Como queres que saiba?

Era quase noite, a sala estava mergulhada na penumbra. Jaime inclinou-se sobre a mesa, acendeu o candeeiro de suspensao e tudo ficou escuro a volta da luz. Em cima da mesa estavam os oculos de minha mae e as cartas com as quais ela fazia paciencias. Jaime sentou-se, agarrou-as e baralhou-as. Depois disse-me:

— Queres jogar uma partida enquanto esperamos pelo jantar?

— Que ideia! — gritei. — Uma partida?

— Sim… uma partida de bisca… va, anda!

Obedeci, sentei-me ao seu lado e segurei maquinalmente nas cartas que ele me estendia. Tinha a cabeca atordoada e as maos tremiam-me, nao sei porque. Comecei a jogar. As figuras pareciam-me ter um caracter maldoso, pouco seguro: o valete de paus sombrio e sinistro com o olho negro e a flor negra na mao; a rainha de copas luxuriante; o rei de ouros frio, impassivel, inumano. Jogando, tinha a impressao de que jogavamos qualquer coisa importante, mas nao sabia o que. Sentia-me mortalmente triste. De quando em quando soltava um ligeiro suspiro, para ver se aliviava o peso que sentia no peito e que mo oprimia.

Ele ganhou o primeiro jogo, depois o segundo.

— Mas que tens? — perguntou-me baralhando as cartas. — Tu jogas francamente mal.

Larguei as cartas e disse-lhe:

— Nao me atormentes assim, Jaime! Nao tenho disposicao para jogar.

— Porque?

— Nao sei.

Levantei-me e dei alguns passos pela sala, torcendo as maos. Depois perguntei-lhe:

— Vamos para o quarto? Queres?

— Vamos.

Passamos para o vestibulo e ali no escuro agarrou-me pela cintura e beijou-me no pescoco. Entao, talvez pela primeira vez na vida, considerei o amor como ele o considerava: um meio de se aturdir e de nao pensar, nem mais agradavel nem mais importante que qualquer outro meio. Segurei-lhe a cabeca entre as maos e beijei-o furiosamente. Foi assim que entramos no quarto. Estava mergulhado na escuridao, mas eu nem dei por isso. Uma sombra vermelha empalidecia-me os olhos; cada um dos nossos gestos tinha o brilho de uma lingua de fogo, brusca e rapida, do incendio que nos devorava.

De repente encontrei-me estendida na cama, com a luz da lampada reflectindo-se sobre o meu ventre nu. Fechei as coxas, talvez por causa do frio, talvez por vergonha, e tapei-me com as duas maos. Jaime olhou e disse-me:

— Bem depressa a tua barriga inchara… inchara cada dia mais… um dia a dor obrigar-te-a a abrir essas pernas que tu fechas tao ciosamente e a cabeca da crianca, ja coberta de cabelos, saira, tu a empurraras para a luz, agarra-la-ao e depois irao po-la nos teus bracos… ficaras contente e havera mais um novo ser neste mundo… Esperemos que ele nao venha a falar vomo Astarito!

— Como?

— “Maldito seja o dia em que nasci!”

— Astarito e um desgracado — respondi —, mas eu tenho a conviccao plena de que o meu filho tera sorte e sera feliz.

Depois enrolei-me na roupa e julgo que dormi. Mas o nome de Astarito tinha reavivado o sentimento de angustia que eu ja sentira depois de o ver partir. De repente ouvi uma voz que eu nao conhecia gritar-me com forca aos ouvidos: “Pan! Pan!”, como quando se quer imitar dois tiros de revolver; e sem sair da cama dei um salto com um movimento de susto e de angustia. A lampada estava ainda acesa; desci da cama e fui a porta para me certificar de que estava bem fechada. Mas vi Jaime, que fumava, de pe, ao pe da porta. Confusa, voltei para a cama, sentei-me dentro da roupa e perguntei:

— Que diz que ira fazer o Sonzogne?

Olhou-me e respondeu:

— Como poderei saber?

— Eu conheco-o — disse eu exprimindo por fim, por palavras, a angustia que me oprimia. — Nao quer dizer o ter consentido que o pusessem fora da sala sem protestar. E capaz de o matar. Que julgas tu?

— E muito possivel.

Вы читаете A Romana
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату