— Nao preciso de ir para o mar. Tambem aqui podia, como tu dizes, ver as coisas de outra maneira… Seria suficiente aceitar o que fiz, como me aconselhas; gozaria logo a existencia do ceu, da terra, de ti, de tudo… Julgas que nao sei que o mundo e belo?

— Entao aceita — disse eu com voz ansiosa… — Que te pode isso fazer?

Comecou a rir.

— Seria preciso pensar nisso antes — respondeu-me. — Aceitar desde o inicio. Mesmo os mendigos que se aquecem ao sol aceitaram-no desde o principio. Para mim e demasiado tarde.

— Mas porque?

— Ha os que aceitam e os que nao aceitam. E evidente que eu pertenco a segunda categoria.

Calei-me sem saber que dizer. Acrescentou, passado um momento:

— Agora apaga a luz; dispo-me as escuras… Creio que sao horas de dormir.

Obedeci. Despiu-se as escuras e deitou-se ao meu lado. Voltei-me para ele e tentei beija-lo. Repeliu-me sem uma palavra, enrolou-se e voltou-me as costas. Este gesto encheu-me de amargura e aconcheguei-me, por minha vez, a alma viuva, esperando o sono. Tornei a pensar no mar: desejei ardentemente morrer afogada. Pensava que nao sofreria mais do que um momento. Depois o meu corpo inanimado flutuaria muito tempo sob o ceu, de vaga em vaga. Os passaros marinhos debicariam os meus olhos, o sol queimar-me-ia o peito e o ventre; os peixes morder-me-iam as costas. Por fim mergulharia puxada por alguma corrente azul e fria que me faria viajar no fundo do mar durante meses e anos, pelo meio de recifes submarinos, peixes e algas; e muita, muita agua limpida e salgada, passaria sobre a minha testa, o meu peito, o meu ventre, as minhas pernas, levando lentamente a minha carne, polindo-me, gastando-me cada vez mais. Por fim qualquer vaga, num dia qualquer, me atiraria com fragor para uma praia distante, reduzida a alguns ossos frageis e brancos. Gostava da ideia de ser arrastada pelos cabelos para o fundo do mar; gostava da ideia de um dia ou outro ser reduzida a uma ossada sem identificacao, no meio dos brancos calhaus de uma praia. Talvez alguem, sem que o sentisse, caminhasse sobre os meus ossos e os reduzisse a poeira branca. Acabei por adormecer com estes pensamentos voluptuosos e tristes.

11

No dia seguinte verifiquei que o sono e o repouso nao haviam modificado de forma alguma os sentimentos de Jaime. Pelo contrario, julguei notar que se tinham agravado. Como na vespera, passava muito tempo em longos silencios obstinados e lugubres ou falava com sarcasmo sobre coisas indiferentes, mas nas quais, no entanto, transparecia sempre o mesmo pensamento dominante. O agravamento que julguei observar consistia numa inercia, numa apatia e numa negligencia quase voluntarias que nele, sempre tao activo e energico, era qualquer coisa nova e parecia indicar um desprendimento progressivo de tudo o que fizera ate entao. Abri-lhe as malas e arrumei-lhe as roupas e os fatos. Mas quando se tratou dos livros dos seus estudos, e que eu sugeri os alinhasse provisoriamente sobre o marmore da comoda, em frente do espelho, respondeu-me:

— Podes deixa-los na mala… ja nao servirao mais.

— Porque? — perguntei-lhe. — Tu nao tens que fazer o teu doutoramento?

— Nao farei o doutoramento.

— Nao queres continuar a estudar?

— Nao.

Nao insisti, receosa que voltasse a falar da sua habitual angustia e deixei os livros na mala. Tambem nao se lavava nem pensava em fazer a barba, ele que fora sempre asseado e muito cuidadoso com a sua pessoa. Este segundo dia passou-o no quarto fumando, estendido na cama, ou passeando para tras e para diante, com ar pensativo e as maos nos bolsos. Mas ao almoco, como me prometera, nao falou com minha mae. Veio a noite, declarou-me que jantaria fora e saiu sozinho; nao ousei propor-lhe a minha companhia. Nao sei onde foi; estava ja para ir deitar-me quando entrou; era patente que tinha bebido. Beijou-me com grandes e comicos gestos e quis possuir-me. Anui, embora notasse que amar era para ele, de fato, como beber, um acto desagradavel, cumprido por forca, com o unico fim de se fatigar e aturdir.

Disse-lho e acrescentei:

— Tanto te fazia ir comigo como com qualquer outra.

Riu-se e respondeu:

— Com efeito, tanto fazia… mas como es tu quem esta aqui, e mais facil!…

Magoaram-me estas palavras e, mais ainda, afligiu-me a pouca afeicao, ou melhor, a falta absoluta de afeicao que as suas palavras demonstravam.

Mas bruscamente, como se alguma coisa me iluminasse, voltei-me para ele e disse-lhe:

— Olha… eu sei que nao sou mais do que uma rapariga qualquer… mas procura amar-me. E por ti que o peco. Se chegares a amar-me, estou certa de que acabaras por te amar a ti mesmo.

Olhou e repetiu com voz forte e trocista: “Amor! O amor!” e apagou a luz. Fiquei as escuras com os olhos dilatados, aflita, perplexa, nao sabendo o que pensar.

Os dias que se seguiram nao lhe trouxeram qualquer modificacao: tudo continuou na mesma. Parecia ter substituido os seus velhos habitos por outros novos, e era tudo. Primeiro trabalhava, ia a Universidade, conversava com os amigos no cafe e lia. Agora fumava, estendido na cama, passeava no quarto, tinha as suas conversas habituais alusivas e estranhas, embebedava-se e possuia-me. Ao quarto dia comecei a sentir-me desesperada. Sabia que a sua magoa nao diminuira e parecia-me impossivel continuar a viver assim. O meu quarto, constantemente cheio de fumo dos cigarros, parecia-me uma oficina de dor, trabalhando noite e dia sem descanso; o proprio ar tornara-se carregado de tristes e obcecantes pensamentos. Nesses momentos amaldicoava muitas vezes a minha insignificancia, a minha ignorancia e o facto de ter uma mae ainda mais insignificante e ignorante do que eu. Quando se tem graves problemas o nosso primeiro movimento e pedir conselhos a uma pessoa mais velha e mais experiente. Ora eu ninguem conhecia que estivesse nessas condicoes: pedir conselhos a minha mae era a mesma coisa que os pedir a uma das muitas criancas que brincavam no patio da casa. Por outro lado nao chegava a penetrar bem fundo na dor de Jaime: havia muitas coisas fora do alcance da minha inteligencia, e acabei por me persuadir de que o seu principal tormento era saber que as declaracoes que fizera perante Astarito constavam dos papeis da policia, que ficariam no arquivo como o eterno testemunho da sua fraqueza. Certas frases dele confirmaram-me esta ideia. Uma tarde disse-lhe:

— Se te tortura que se tenha escrito tudo o que disseste a Astarito… ele fara por mim seja o que for. Tenho a certeza de que se lho pedir ele fara desaparecer o interrogatorio.

Olhou-me e perguntou-me em tom singular:

— Que te faz pensar isso?

— Tu mesmo o declaraste no outro dia… Quando te disse que devias tentar esquecer tu respondeste-me: “Mesmo que eu o esquecesse, a policia lembrar-se-a”.

— E como lhe pediras?

— E muito simples. Telefono-lhe e vou ao Ministerio.

Nao disse nem sim nem nao. Insisti:

— Entao queres que lhe va pedir?

— Por mim, faz como entenderes.

Saimos juntos para irmos telefonar a leitaria. Encontrei logo Astarito e disse-lhe que precisava de falar com ele. Perguntei-lhe se podia ir ao Ministerio. Mas ele, gaguejando, respondeu-me de uma maneira estranha:

— Ou em tua casa, ou entao nao.

Compreendi que queria pagar-se do favor que eu lhe podia e procurei disfarcar:

— Num cafe? — perguntei.

— Ou em tua casa, ou entao nao.

— Esta bem! — disse. — Entao vem a minha casa!

E acrescentei que o esperava nesse mesmo dia ao fim da tarde.

— Sei o que ele quer — disse a Jaime quando voltavamos. — Mas ninguem pode obrigar uma mulher a fazer isso contra vontade. Chantagens… fez-mas enquanto eu era ainda uma inexperiente, mas agora nao mas

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