— E possivel — repetiu minha mae. — Toma! — acrescentou pondo no meu prato o bocado maior da carne.

— Nao e possivel — disse Jaime — e certo!

Calou-se por um instante, depois repetiu:

— O governo sabe que ha mal-intencionados por toda a parte… Nao so nas classes pobres, mas tambem nas ricas… Para vigiar os ricos sao precisas pessoas bem educadas, que falem como eles, se vistam como eles, tenham os mesmos modos… que lhes inspirem confianca, em suma… E o que farei… frequentarei os hoteis de primeira categoria, viajarei no wagon-lit, comerei nos melhores restaurantes, vestirei dos melhores alfaiates, frequentarei as praias de luxo, os desportos de Inverno mais famosos… Que diabo! Por quem me tomam voces?

Minha mae agora olhava-o pasmada. Todos estes esplendores a maravilharam.

— Nesse caso — declarou — ja nada mais tenho a dizer.

E eu, tendo acabado de comer, de repente tornara-se-me impossivel continuar a assistir a esta lugubre troca de palavras.

— Estou cansada — disse bruscamente. — Vou para o meu quarto.

Levantei-me e sai da sala. Uma vez no quarto, sentei-me na cama, e toda enrolada comecei a chorar em silencio com o rosto entre as maos. Pensava no desgosto de Jaime e na crianca que ia nascer e tinha a impressao de que as duas coisas, a magoa e a crianca, aumentavam por uma forca estranha que nao dependia de mim e que eu nao podia dominar; elas estavam vivas, nada havia a fazer. Passado um momento ele entrou; levantei-me e errei um pouco pelo quarto para que ele nao visse os meus olhos com lagrimas e dar tempo a seca-los. Acendeu um cigarro, atirou-se para cima da cama e ficou deitado de costas. Sentei-me ao seu lado e pedi- lhe:

— Suplico-te, Jaime… nao fales assim a minha mae.

— Porque?

— Porque ela nao compreende; eu, pelo contrario, compreendo e cada uma das tuas palavras e como uma agulha que me enterrassem no coracao.

Nao respondeu e continuou a fumar em silencio. Tirei da gaveta uma das minhas camisas, agulha e linha, sentei-me na cama ao lado da lampada e, calada, comecei a coser. Nao queria falar porque tinha medo de que ele voltasse ao mesmo assunto; esperava, pelo contrario, que se guardassemos silencio ele acabaria por desanuviar o espirito e pensar noutra coisa. A costura requer muita atencao visual, mas deixa o espirito livre; as mulheres batidas nesse trabalho sabem-no bem. Enquanto cosia, os pensamentos fervilhavam e giravam-me na cabeca, ou, melhor, assim como o fio passava e repassava atraves do tecido, assim eles pareciam coser no meu espirito nao sei que bainha ou rasgao. Tambem eu tinha agora a mesma obsessao e nao conseguia deixar de pensar no que ele dissera a Astarito e nas consequencias que se seguiriam. Mas queria libertar o espirito destes pensamentos, ate porque receava que alguma misteriosa influencia o poderia obrigar a pensar a ele tambem, levando-o a aumentar a sua dor. Queria, pois, pensar nalguma coisa clara, alegre e leve, e com todas as forcas da minha alma concentrava toda a minha imaginacao sobre o filho que iria nascer; era, com efeito, o unico aspecto alegre da minha vida entre tantas coisas terrivelmente tristes. Imaginava-o tal como seria quando tivesse dois ou tres anos, a melhor idade, em que as criancas sao sempre mais bonitas e mais engracadas; e, cogitando em tudo o que ele faria e diria e na maneira como o criaria, senti voltar-me a alegria, como esperava; esqueci por momentos Jaime e a sua magoa. Acabara de coser a camisa; peguei noutra peca de roupa para passajar, e lembrei-me de que poderia aliviar a tensao das longas horas que passaria com Jaime fazendo o enxovalinho do meu filho. Somente, seria preciso faze-lo as escondidas ou arranjar um pretexto. Diria a Jaime que o destinava a uma das nossas vizinhas que tambem, por acaso, com efeito esperava um bebe; a ideia pareceu-me optima, ate porque ja falara nesta mulher a Jaime e aludira a sua pobreza. Estes pensamentos distrairam-me de tal maneira que comecei, quase sem dar por isso, a cantar em voz baixa. Tenho a voz fraca, mas afinada, com uma grande docura de timbre, que se nota mesmo quando falo. Comecei uma cancao muito em voga naquele tempo que se chamava Cidade Triste. Como levantasse os olhos para partir a linha com os dentes, vi que Jaime me olhava. Entao, pensando que me poderia censurar por cantar num momento tao grave, calei-me:

Olhou-me e disse:

— Continua a cantar.

— Gostas que eu cante?

— Sim.

— Mas nao canto bem.

— Nao faz mal.

Recomecei a coser e a cantar para ele. Como todas as raparigas, eu sabia um grande numero de cancoes; tinha boa memoria e lembrava-me do que aprendera em crianca. Cantei-lhe um pouco de tudo. A uma cancao seguia-se outra. Comecei por cantar em surdina, mas depois tomei-lhe o gosto e cantei em voz alta com o maior sentimento que podia. As cantigas sucediam-se; enquanto cantava uma pensava ja noutra. Ele ouviu-me com uma certa seriedade no rosto e eu sentia-me feliz por poder distrair o seu espirito. Mas ao mesmo tempo pensava que quando era pequena tinha perdido nao sei que brinquedo de que gostava muito; como nao deixasse de chorar a sua perda, minha mae, para me consolar, sentara-se na minha cama e comecara a cantar as tres unicas cancoes que sabia. Cantava mal, tinha voz de falsete, mas apesar de tudo acabara por me distrair: ouvia-a exactamente como Jaime me ouvia agora. Passado um momento. a ideia do brinquedo perdido comecou a infiltrar-se como gotas de amargura no breve esquecimento que minha mae me oferecera e acabou por apaga-lo totalmente e torna-lo, por contraste, insuportavel, tanto assim que eu tinha recomecado a chorar e que minha mae, impaciente, me tinha apagado a luz deixando-me a chorar as escuras. Tinha a certeza de que apenas tivesse passado a apaziguadora docura do meu canto, era impossivel que ele nao voltasse a sentir a sua magoa, mais forte e mais aguda ainda, pelo contraste do superficial sentimentalismo das minhas cancoes. Nao me enganava. Havia quase uma hora que eu cantava quando de repente me interrompeu:

— Agora chega! Aborreces-me com as tuas cancoes!

Enroscou-se como para dormir e voltou-me as costas. Esperava esta indelicadeza, por isso nao me afligiu. De resto agora so esperava coisas desagradaveis e so o contrario me faria admirar. Levantei-me e fui guardar a minha roupa ja passajada. Depois despi-me sem dizer palavra e enfiei-me na cama no lado que Jaime deixara livre. Ficamos assim muito tempo, em silencio, de costas um para o outro. Sabia que ele nao dormia e que continuava possuido da sua ideia dominante; esta certeza, aliada ao agudo sentido da minha impotencia, provocava no meu espirito um turbilhao de pensamentos confusos e desesperados. Estava deitada de lado e, reflectindo, fixava os olhos num canto do quarto. Via uma das duas malas que Jaime trouxera de casa da viuva Medolaghi; uma velha mala de couro amarelo, recamada de etiquetas de hoteis. Havia uma, com um rectangulo de mar azul, uma grande rocha vermelha e a inscricao: “Capri”. Na sombra, pelo meio do mobiliario palido e pobre do meu quarto, esta mancha azul parecia-me luminosa; dir-se-ia, mais que uma mancha, um buraco atraves do qual eu podia ver um bocado deste mar longinquo. Assaltou-me uma grande nostalgia do mar, tao alegre, tao vivo, onde todos os objectos, mesmo os mais corruptos e os mais disformes, se purificam, se alisam, se arredondam, ate se tornarem puros e belos. Sempre gostei do mar, ate do mar entulhado de ostia. Ao ver o mar sinto sempre uma impressao de liberdade que embriaga os meus ouvidos mais do que os meus olhos, como se as notas de uma musica magica eterna andassem sobre as vagas. Pus-me a pensar no mar com um desejo agudo da sua espuma transparente, que parece lavar ao mesmo tempo os corpos e as almas, tornando-as leves pelo seu liquido contacto. Disse a mim mesma que se pudesse levar Jaime para o mar talvez que esta imensidade, este marulhar perpetuo obtivessem o efeito que o meu amor so por si nao podia provocar. Perguntei-lhe de repente:

— Estiveste em Capri?

— Sim — respondeu sem se voltar.

— E bonito?

— Sim… muito bonito.

— Ouve — disse-lhe voltando-me e passando-lhe o braco pelo pescoco — porque nao vamos a Capri ou a qualquer outro sitio junto do mar? Ficando aqui, em Roma, nada mais faras do que pensar nessas coisas desagradaveis… Se mudares de ares e de meio, tenho a conviccao de que veras tudo por outro prisma. Ha tantas coisas que agora nao ves… Estou certa de que te faria bem!

Nao respondeu imediatamente e parecia reflectir. Depois disse-me:

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