aconteceu no momento em que falei? Morri… estou morto… simplesmente morto… para sempre.

Incapaz de suportar por mais tempo a angustia que me apertava o coracao desfiz-me em lagrimas.

— Mas porque estas a chorar? — perguntou-me.

— Por causa das coisas que dizes — respondi solucando —, que estas morto. Isso assusta-me tanto!

— Desagrada-te estar ao lado de um morto? — perguntou-me brincando. — No entanto nao e tao horrivel como parece… Nao e mesmo nada horrivel… Estou morto mas de uma maneira particular… no que diz respeito ao corpo, estou bem vivo… apalpa aqui e ve la se nao estou vivo.

Agarrou-me a mao e fez-me tocar-lhe no corpo.

— Estou bem vivo como tu sentes…

Puxava-me a mao para obrigar-me a apalpa-lo.

— Estou portanto vivo… por aquilo que te diz respeito, como acabas de verificar, estou mais vivo do que nunca… nao tenhas medo; se nos, enquanto eu estava vivo, nao nos amamos muitas vezes, em compensacao vamos faze-lo agora, que estou morto, com muito mais frequencia.

Com uma especie de desprezo raivoso tirou de cima dele a minha mao inerte. Levei as duas ao rosto e dei largo curso a minha miseravel dor. Desejaria ter chorado sempre, nao parar de chorar, porque temia o momento em que o pranto cessa e se fica vazio e como que apatetado diante das coisas que o faziam sofrer. No entanto, esse momento chegou; limpei ao lencol a minha cara inundada e fixei os olhos dilatados no vacuo. Entao ouvi que ele me perguntava numa voz afectuosa e doce:

— Vejamos, na tua opiniao que devia eu fazer?

Voltei-me para ele com violencia, apertei-me contra o seu peito e disse-lhe:

— Nao pensar mais nisso… o que aconteceu, aconteceu… nao te preocupes… e o que deves fazer!

— E depois?

— Depois, retoma o trabalho… faz o teu doutoramento… depois volta para a tua terra… pouco me importa se nao te tornar a ver desde que te saiba feliz… arranja um emprego! Quando chegar o momento, casa com uma rapariga da tua regiao, da tua situacao social, que te ame sinceramente… A politica para que te serve? Tu nao foste feito para a politica… fizeste mal em te meter nela… foi um erro; acontece a toda a gente cometer erros… Um dia ha-de parecer-te estranho como chegaste a interessar-te por essas coisas. Eu amo-te sem egoismo. Jaime. Outra mulher nao quereria separar-se de ti… Pois bem!… se for preciso parte amanha… nao nos veremos mais, contanto que sejas feliz!

— Mas eu — disse ele em voz baixa e clara —, nunca mais serei feliz; sou um delator.

— Nao e verdade! — respondi, exasperada. — Nao es um delator! E mesmo que o tivesses sido podias ainda ser feliz. Ha pessoas que cometeram verdadeiros crimes, e no entanto sao felizes. Eu, por exemplo. Quando se diz uma mulher da rua, sabe Deus o que se imagina: ora eu sou uma rapariga como as outras. Muitas vezes sou ate feliz. Nestes ultimos dias — acrescentei com amargura — era tao feliz!

— Eras feliz?

— Sim, completamente! Mas sabia bem que nao podia durar muito, e naturalmente…

Ao dizer isto tive outra vez vontade de chorar, mas contive-me.

— Tu julgavas ser muito diferente do que es… E o que aconteceu, aconteceu. Agora aceita ser como es realmente… e veras como tudo se arranjara depressa. No fundo sofres pelo sucedido porque tens vergonha e receias o julgamento dos outros, dos teus amigos… Pronto! Deixa de andar com eles, procura outras pessoas, o mundo e tao grande… Se eles nao te querem o suficiente para compreenderem que isto nao foi mais que um momento de fraqueza, fica comigo, eu amo-te, compreendo-te e nao te julgo… Asseguro-te — gritei com forca —, quanto pior fosse a accao que tivesses cometido mais serias para sempre o meu Jaime!

Nada replicou e eu continuei:

— Nao sou mais que uma pobre rapariga ignorante, eu sei, mas ha coisas que compreendo melhor do que tu. Eu tambem ja passei pelo que tu sentes neste momento. A primeira vez que nos vimos, e em que tu nem sequer me tocaste, meteu-se-me na cabeca que era porque me desprezavas e de repente perdi ate mesmo o gosto de viver. Sentia-me tao desgracada! Gostaria de ser outra e ao mesmo tempo compreendia ser impossivel e que continuaria sempre a ser o que era; tinha uma vergonha que me queimava, um aborrecimento, um desespero… sentia-me gelada. paralisada… por instantes desejei morrer. Depois, um dia, sai com minha mae e entrei por acaso numa igreja, e ali, rezando. compreendi que no fundo nada havia de que corar… que se eu era feita desta maneira era porque Deus o tinha querido, que nao me devia revoltar contra a minha sorte, mas, pelo contrario, aceita-la com docilidade e confianca, e que se me desprezavas era por defeito teu e nao meu… Em suma, pensei muitas coisas, e por fim passou-me toda a mortificacao e senti-me de novo alegre.

Comecou a rir, com aquele riso que me gelava, e disse:

— Em resumo, devia aceitar o que fiz e nao me revoltar. Devia aceitar aquilo em que me tornei e nao me julgar. Talvez que na igreja se possam passar essas coisas, mas fora da igreja…

— Pois bem! Vai a igreja! — propus-lhe, agarrando-me a esta nova esperanca.

— Nao, nao irei. Nao sou crente e a igreja aborrece-me. E depois…

Recomecou a rir, depois, de repente, pos-se serio, agarrou-me pelos ombros e comecou a sacudir-me com violencia, gritando:

— Mas tu nao compreendes a minha accao? Nao compreendes? Nao compreendes?

Abanava-me com tal forca que me cortava a respiracao. Com uma ultima sacudidela atirou-me para tras e senti-o saltar da cama e comecar a vestir-se as escuras.

— Nao acendas a luz! — disse-me com ar ameacador. — E preciso que eu me habitue a que me olhem outra vez de frente… por agora e ainda cedo. Ai de ti se a acendes!

Nem ousava respirar, mas acabei por perguntar:

— Vais-te embora?

— Sim, mas voltarei — disse-me.

Pareceu-me que ria de novo:

— Nao tenhas medo, que voltarei… Devo mesmo dar-te uma boa noticia: tenciono viver contigo definitivamente.

— Aqui, em minha casa?

— Sim, mas nao te incomodarei… teras a liberdade necessaria para continuares com a tua vida habitual. De resto — acrescentou — poderemos viver os dois com o que me manda a minha familia… dava para pagar a pensao… mas aqui em casa chega bem para os dois.

Esta ideia de ele viver em minha casa parecia-me mais estranha do que agradavel. No entanto nada me atrevi a dizer. Acabou de vestir-se em silencio, as escuras.

— Voltarei esta noite — disse-me.

Ouvi-o abrir a porta, sair e tornar a fecha-la. Fiquei com os olhos abertos fixos na escuridao.

10

Nessa mesma tarde, como Astarito me aconselhara, fui ao comissariado do bairro fazer um depoimento sobre a historia de Sonzogne. Nao entrava ali sem repugnancia, porque depois do que acontecera a Jaime, tudo o que era policia ou policial inspirava-me um mal-estar de morte. Mas agora ja estava quase resignada. Compreendia que durante algum tempo a vida nao teria o menor atractivo para mim.

— Esperamo-la de manha — disse-me o comissario quando lhe disse o motivo da minha visita.

Era um excelente homem e ha muito tempo que o conhecia: se bem que fosse pai de familia e tivesse passado os cinquenta, ja ha muito tempo que eu compreendia que tinha por mim mais do que uma simples simpatia. Lembro-me, sobretudo do seu nariz: grosso, esponjoso e com um ar melancolico. Tinha sempre o cabelo despenteado e os olhos sonolentos, como se tivesse acabado de levantar-se. Esses olhos, de um azul intenso, olhavam como do interior de uma mascara num rosto espesso, rosado e gretado, lembrando a casca de certas laranjas enormes, mas ocas.

Disse-lhe que me fora impossivel vir mais cedo. Os seus olhos olharam-me um momento, depois perguntou-me com um ar cumplice:

— Entao como se chama ele?

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