horas da noite eu tornei-me um traidor.

Estas palavras gelaram-me horrivelmente, nao tanto por elas, como pela maneira como foram ditas.

— Um traidor? — balbuciei. — Porque?

Respondeu-me no seu tom frio e lugubre:

— Entre os seus companheiros de ideal politico, o Sr. Diodatti era conhecido pela sua intransigencia de opinioes e pela violencia dos seus odios. Consideravam muito simplesmente o Sr. Diodatti como um futuro chefe e ele estava de tal maneira certo de que faria boa figura em qualquer circunstancia que quase desejava ser preso e posto a prova. Sim, porque o Sr. Diodatti pensava que a captura, a prisao e os outros sofrimentos sao necessarios na vida de um homem politico como sao necessarios os longos cruzeiros, as tempestades e os naufragios na vida de um homem do mar!… Mas a primeira onda, o marinheiro sentiu-se mal como qualquer criaturinha sem importancia… Assim que se viu em frente de um policia, sem mesmo esperar que o ameacassem ou o espancassem, o Sr. Diodatti abandonou a carreira politica e entrou na que podia chamar-se da denuncia.

— Tiveste medo! — gritei.

Respondeu-me com calma:

— Nao. Nem sequer tive medo. Somente sucedeu-me aquilo que me aconteceu naquela famosa noite, contigo, quando querias que te explicasse as minhas ideias… bruscamente aquilo deixou de me interessar por completo. O que me interrogou pareceu-me quase simpatico. Tinha interesse em saber certas coisas… e eu, nesse momento, nao tinha interesse em esconder-lhas… entao disse-lhas… simplesmente. Ou talvez — acrescentou depois de uns minutos de reflexao — nao tao simplesmente como isso, mas logo, apressadamente, poderia dizer que quase com zelo. Mais um pouco e seria ele quem moderaria o meu entusiasmo!

Pensei em Astarito e pareceu-me estranho que Jaime o tivesse achado simpatico.

— Mas quem te interrogou? — perguntei.

— Nao o conheco. Um homem novo, com uma cara amarelada, olhos pretos, muito bem vestido. Devia ser um alto funcionario.

— E achaste-o simpatico! — nao me pude impedir de gritar, reconhecendo nesta descricao o proprio Astarito.

No escuro, disse-me ao ouvido:

— Devagarinho… nao ele pessoalmente, mas a sua funcao. Mas sim, quando se renuncia a si mesmo, ou quando nao somos aquilo que deviamos ser, o que conta e o que se e. Nao sou eu o filho de um rico proprietario? E este homem, dentro das suas funcoes, nao defende os meus interesses? Reconhecemos que eramos da mesma raca… solidarios da mesma causa… Que imaginas? Que simpatizei com ele pessoalmente? Nao, nao… senti simpatia pela sua funcao… Senti que era eu quem lhe pagava, que era a mim que ele defendia; comparecendo perante a sua pessoa como acusado estava por detras como patrao.

Ria, ou, melhor, dava umas risadinhas que arranhavam os meus ouvidos. Eu nada percebia, senao que acontecera qualquer coisa muito triste e que a minha vida estava de novo em risco.

Acrescentou passado um momento:

— Talvez eu me calunie… talvez eu tenha falado assim, porque nenhuma importancia dava ao facto de nao falar… Porque bruscamente tudo me pareceu absurdo e sem importancia e porque nao compreendia coisas nas quais deveria ter acreditado.

— Nada mais compreendias? — perguntei maquinalmente.

— Nao… Quando muito compreendia as palavras como as compreendo agora, mas nao os factos que essas palavras traduziam… E entao… nao se pode sofrer pelas palavras. As palavras nao sao mais que sons… E ninguem vai para a cadeia porque um burro zurrou ou a roda de um carro guincha. As palavras ja nao tinham valor para mim, pareciam-me todas iguais e absurdas. Ele queria palavras, eu dei-lhe tantas quantas ele queria.

— Mas entao — objectei eu — se eram so palavras, que mal e que isso te pode fazer?

— Sim, mas, infelizmente, logo que foram pronunciadas essas palavras cessaram de ser simples palavras e passaram a ser factos.

— Porque?

— Porque eu comecei a sofrer. Porque devo ter tido remorsos de as ter dito. Porque, compreendi, senti que dizendo essas palavras me tornara naquilo que se chama um traidor.

— Mas entao porque as disseste?

Respondeu-me lentamente:

— Porque se fala quando se sonha? Dormia talvez… mas agora acordei.

Viravamos o assunto por todos os lados e voltavamos sempre ao mesmo ponto. Senti um desalento atroz e disse-lhe com esforco:

— Talvez te tenhas enganado; julgas ter dito sabe Deus o que e possivel que nao te tenhas comprometido.

— Nao, nao me engano — respondeu.

Calei-me um momento. Depois disse:

— E os teus amigos?

— Quais amigos?

— Tulio e Tomas.

— Nada sei a respeito deles — disse afectando indiferenca. — Vao prende-los.

— Nao — gritei. — Nao os prenderao.

Pensava que Astarito nao se tinha com certeza aproveitado deste momento de fraqueza de Jaime. Pela primeira vez, no entanto, a ideia da prisao dos dois amigos fez-me entrever a gravidade de toda esta historia.

— Porque nao os prenderao? — disse ele. — Dei os seus nomes. Nenhuma razao ha para que nao os prendam.

— Oh! Jaime! — gritei com angustia. — Porque fizeste isso?

— E o que pergunto a mim proprio.

— Mas se os prendem — disse eu, passado um momento, agarrando-me assim a unica esperanca que me restava — nada ha de irreparavel. Eles nunca saberao que foste tu…

— Nao — interrompeu-me. — Mas eu saberei… saberei sempre… saberei que nao mais serei como era, que sou outra personagem, a qual no momento em que falava dera a vida como a mae da ao filho deitando-o ao mundo. E, infelizmente, esta personagem nao me agrada… ai e que esta a desgraca… Ha maridos que matam as mulheres porque lhes e intoleravel continuarem a viver juntos. Imagina o que e ter dois seres no mesmo corpo quando ha um que odeia o outro ate a morte. Quanto aos meus amigos, vao com certeza prende-los.

Nao pude conter-me por mais tempo e disse-lhe:

— Mesmo que nao tivesses falado, terias sido posto em liberdade. E os teus amigos nao correm qualquer perigo.

Contei por alto e rapidamente a historia das minhas relacoes com Astarito, a minha intervencao a seu favor e a promessa que Astarito me havia feito. Ouviu-me sem dizer palavra, depois declarou:

— Sim, senhor! Com que entao devo a minha liberdade nao so a minha actividade de espiao, mas ainda as tuas relacoes amorosas com um policia.

— Jaime! Nao fales assim!

— De resto — continuou, passado um momento —, estou contente que os meus amigos se consigam livrar; pelo menos nao terei esses remorsos na consciencia.

— Ves? — disse-lhe vivamente. — Que diferenca ha entre ti e os teus amigos? Eles tambem devem a sua liberdade, assim como tu, a mim e ao facto de Astarito estar apaixonado.

— Perdao, ai ha uma diferenca! Eles nao falaram.

— Quem to disse?

— Espero bem que nao o tenham feito, fossem eles o que fossem: de resto isso nao seria uma consolacao para mim.

— Mas tu nao tens mais que passar a comportar-te como se nada se tivesse passado! — insisti de novo. — Volta para o pe deles sem fazer nenhuma alusao ao assunto… Que pode acontecer? Acontece a toda a gente ter um momento de fraqueza.

— Sim — respondeu-me —, mas nao acontece a toda a gente morrer e continuar vivo. Sabes o que me

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