— Eu teria ido contigo. Nao teria passado por este susto!
— Mas eu nao sai para ir chamar a policia! — disse-lhe, irritada. — Sai por sair. Os agentes procuravam outro. Quer dizer que este tambem tinha alguma coisa na consciencia.
— Nao queres dizer-me, nem mesmo a mim? — respondeu-me com um olhar de reprovacao maternal.
— Mas o que?
— Nao serei eu quem ira contar. Mas tu nao quereras que eu acredite que saiste so por sair. Alias, os policias vieram justamente alguns minutos depois de teres saido.
— Mas nao e verdade. Eu…
— De resto, fizeste bem. Ha por ai muitos espioes. Sabes o que um dos guardas me disse?
— “Esta cara nao me e estranha”.
Compreendi que nao havia maneira de a persuadir de que eu nao saira para denunciar Sonzogne. Nada havia a fazer.
— Esta bem. Esta bem — interrompi-a bruscamente. — E o ferido… como e que o levaram?
— Qual ferido?
— Disseram-me que havia um moribundo.
— Informaram-te mal… Um dos policias teve um raspao num braco com um tiro… fui eu quem lhe ligou a ferida… foi-se embora pelo seu pe. Mas se tu tivesses ouvido aqueles tiros! Foi na escada que eles dispararam. Toda a casa estremeceu de alto a baixo. Depois interrogaram-me. Mas eu disse que nada sabia.
— Onde esta Diodatti?
— No teu quarto.
Se eu tive esta pequena conversa com minha mae fora porque agora experimentava uma especie de repugnancia em ir ter com Jaime, como se pressentisse uma ma noticia. Sai da sala e dirigi-me para o quarto. Estava mergulhado numa escuridao completa; mas mesmo antes de eu ter posto a mao no interruptor, ouvi a voz de Jaime que me dizia:
— Por favor, nao acendas a luz.
Feriu-me o tom da sua voz, muito pouco alegre de verdade! Fechei a porta, aproximei-me da cama as apalpadelas e sentei-me aos seus pes:
— Sentes-te bem? — perguntei.
— Sinto-me muito bem.
— Nao estas cansado?
— Nao, nao estou.
Previra um encontro diferente. Mas a verdade e que a alegria nao se pode separar da luz. Nesta escuridao parecia-me que os meus olhos nao podiam brilhar, a minha voz nao podia soltar exclamacoes alegres, as minhas maos nao se podiam estender para reconhecer as formas queridas. Esperei um momento; depois inclinando-me sobre ele, murmurei-lhe:
— Que queres fazer? Queres dormir?
— Nao.
— Queres que me va embora?
— Nao.
— Que fique ao pe de ti?
— Sim.
— Queres que me deite em cima da cama?
— Sim.
— Queres que nos amemos? — perguntei por perguntar.
— Sim.
Esta resposta surpreendeu-me porque, como ja disse, ele nunca estava realmente disposto a fazer amor. Senti-me de repente perturbada e acrescentei com voz acariciadora:
— Gostas de fazer amor comigo?
— Sim.
— Vais amar-me sempre daqui em diante?
— Sim.
— E ficaremos juntos para sempre?
— Sim.
— Mas nao queres mesmo que eu acenda a luz?
— Nao.
— Nao tem importancia… Dispo-me as escuras.
Comecei a despir-me com o embriagador sentimento da vitoria completa. Pensava que a noite passada na prisao lhe revelara bruscamente que me amava e que precisava de mim. Enganava-me, como se vera em seguida; se bem que pensasse que houvera uma ligacao entre esta brusca condescendencia e a prisao, nao compreendia que esta mudanca de atitude nada tinha que me pudesse envaidecer, ou simplesmente alegrar. O meu corpo, como um cavalo ha muito tempo refreado, impelia-me impetuosamente para ele; estava impaciente por lhe fazer o alegre, o ardente acolhimento que um momento antes a obscuridade e a sua atitude me nao tinham permitido.
Mas quando me aproximei e me inclinei sobre a cama para me estender ao seu lado, senti-o de repente tomar-me os joelhos com os bracos e morder-me a anca esquerda ate fazer sangue. Senti ao mesmo tempo uma dor aguda e uma sensacao de desespero que se exprimia por esta dentada, como se nao fossemos dois amantes preparando-se para se amarem, mas dois danados que o odio, o furor e a tristeza impelissem, no fundo de um inferno de um novo genero, a morder-se um ao outro. A dentada foi tao grande que quase se podia dizer que ele me queria arrancar um bocado de carne. Enfim, se bem que eu quase gostasse que ele me mordesse e, a despeito do pouco amor que eu sentia nesta mordedura, me desse prazer, nao pude suportar a dor e empurrei-o dizendo em voz baixa e magoada:
— Mas nao… que fazes? Magoas-me.
Foi assim que acabou o meu ilusorio sentimento de vitoria. Em seguida, durante todo o tempo em que nos amamos, nao dissemos uma palavra; mas a sua atitude nao deixava por isso de me revelar obscuramente o verdadeiro porque do seu abandono, que ele me explicaria mais tarde pormenorizadamente. Compreendi que ate entao o que ele nao aceitava nao era tanto a minha pessoa como uma parte dele proprio levada a desejar-me; agora, pelo contrario, por um motivo que so ele sabia, deixava esta parte dele proprio, refreada ate entao, saciar-se livremente. Eu em nada contribuira. Da mesma maneira que ele nao me amava antes, tambem nao me amava agora. Eu ou outra era a mesma coisa para ele. Agora como dantes eu nao era mais do que um meio do qual ele fazia uso para se punir ou para se recompensar. Todas estas coisas, enquanto estivemos deitados no escuro, nao as pensara; sentia-as na, minha carne e no meu sangue, da mesma maneira que algum tempo antes sentira que Sonzogne era um monstro, sem saber ainda nada do seu crime. Mas amava Jaime, e o meu amor era mais forte do que este sentimento. Admirou-me a violencia e insaciabilidade do seu desejo, anteriormente tao avaro. Sempre pensara que ele se moderava um pouco por razoes de saude, porque era de compleicao fraca. Por isso, depois de me ter possuido duas vezes, ao ve-lo recomecar pela terceira vez, nao pude deixar de lhe sussurrar ao ouvido:
— Por mim, podes… mas ve la nao te faca mal.
Tive a impressao de que se riu e ouvi a sua voz murmurar-me:
— De futuro nada me pode fazer mal.
Este de “futuro” deu-me uma impressao funebre, se bem que ate mesmo o prazer que eu encontrava nestes beijos foi quase suprimido e eu esperava com impaciencia o momento em que lhe pudesse falar e saber enfim o que lhe acontecera. Depois do amor pareceu dormitar: mas talvez nao dormisse. Esperei um tempo razoavel e, fazendo um esforco tal que o coracao quase me saltava do peito, perguntei-lhe em voz alta:
— Agora vais dizer-me o que te aconteceu.
— Nada me aconteceu.
— No entanto deve ter sucedido qualquer coisa.
Calou-se um momento, depois disse-me como se falasse consigo proprio:
— Depois disto tudo, suponho que tu tambem o deves saber. Pois bem! Aconteceu que depois das onze