— Esta bem? — perguntou-me com uma palmadinha na cara.
Embaracada, balbuciei:
— Esta bem, obrigada!
— De nada, de nada. E se precisares de alguma coisa nao tens mais do que chamar, sem cerimonia.
Uma vez so, senti-me gelada. Nao tinha sono e nao me queria ir deitar. Por outro lado, neste quarto glacial, onde o frio do Inverno parecia conservar-se durante anos, como nas igrejas e nas caves, nao havia outra coisa a fazer. Das outras vezes estes problemas nem se punham: o homem que me acompanhava e eu nao desejavamos outra coisa que enfiarmo-nos nos lencois e aquecermo-nos mutuamente; se bem que nao experimentasse qualquer sentimento por estes amantes de acaso. O acto do amor em si absorvia-me e mergulhava-me na sua magia. Agora parecia-me incrivel ter podido amar e ser amada no meio de um mobiliario tao lugubre, de aspecto tao sordido. Por certo que o ardor dos sentimentos nos enganara, aos meus companheiros e a mim, tornando estes objectos, tao paradoxalmente estranhos, agradaveis, familiares. Veio-me a ideia que se nao pudesse tornar a ver Jaime a minha vida seria como este quarto. Ao olha-la de uma forma objectiva, sem ilusoes, a minha vida nada tinha de belo nem de intimo; mais ate: como o quarto de Zelinda, ela compunha-se de coisas estragadas, desagradaveis e frias. Arrepiei-me e comecei lentamente a despir-me.
Os lencois estavam gelados e pareciam humidos. A tal ponto que quando me deitei tive a impressao de deixar o meu corpo marcado em argila molhada. Fiquei muito tempo absorta a reflectir, enquanto que, lentamente, a cama aquecia. O caso de Sonzogne veio desviar os meus pensamentos e tentei analisar os motivos e as consequencias desta tenebrosa historia. Agora Sonzogne estava persuadido de que eu o denunciara; nao havia duvida de que as aparencias estavam todas contra mim. Mas seriam so as aparencias? Lembrei-me da sua frase: “Tenho a impressao de que me seguem” e perguntei a mim propria se no fim de contas o padre nao teria falado. Nao me parecia; mas ate agora nao podia provar o contrario.
Continuando a pensar em Sonzogne pus-me a imaginar o que se teria passado na minha casa depois da minha saida: Sonzogne, que esperava, impacientava-se, vestia-se aquando da entrada dos dois agentes. Da mesma maneira que com o crime de Sonzogne, esta reconstituicao dava-me um prazer insaciavel e obscuro. A minha imaginacao apresentou-me os varios aspectos da cena de tiros, cujos pormenores me deliciavam. Sem duvida, na luta tomava o partido de Sonzogne. Fremia de alegria vendo o policia ferido cair, suspirei de alivio vendo Sonzogne fugir; seguia-o com ansiedade ao descer as escadas e nao me sentia tranquila enquanto o nao via desaparecer na distancia escura da avenida. Acabei por me cansar desta especie de filme que imaginei e apaguei a luz. Ja das outras vezes reparara que a cama estava encostada a uma porta de comunicacao que dava para um quarto contiguo. Logo que apaguei a luz vi filtrar-se um raio luminoso por entre os batentes mal fechados. Apoiei-me nos cotovelos sobre a almofada, passei a cabeca por entre as grades de ferro da cama e espreitei pela fresta. Nao o fazia por curiosidade, pois ja sabia de antemao o que poderia ver ou ouvir do outro lado; era mais para fugir aos meus pensamentos e a solidao, que procurava, mesmo so espreitando, uma companhia no quarto vizinho. Mas durante um bom bocado ninguem vi, em frente da fresta da porta havia uma mesa redonda: a luz do lustre caia sobre esta mesa atras da qual entrevi o reflexo de um espelho de guarda-fato. No entanto ouvia falar; eram as palavras habituais que eu tao bem conhecia, as perguntas sobre a terra natal, a idade e o sobrenome. A voz da mulher era tranquila e reticente; a do homem rapida e tremula. As vozes vinham de um canto do quarto: talvez estivessem ja deitados. A forca de olhar sem ver nada, pos-se-me uma dor na nuca e estava a ponto de abandonar aquela posicao quando a mulher apareceu e se foi por do outro lado da mesa em frente do espelho, que estava na sombra. Estava de pe, nua, de costas para mim, mas a mesa so me permitia ve-la da cintura para cima. Devia ser muito nova: via umas costas magras, duras, sem graca, de uma brancura anemica, encimadas por uma cabeleira crespa. Pensei que ela nao devia ter ainda vinte anos, mas tinha o seio caido e talvez ate ja tivesse sido mae. Devia ser urna das esfomeadas raparigas que rondavam os bosques das pracas municipais, ao longo da estacao, sem chapeu e frequentemente sem casaco, grosseiramente pintadas e esfarrapadas, com enormes sapatos de solas rotas. Pensava que, quando se ria, devia mostrar as gengivas. Vieram-me estas ideias todas sem que eu reflectisse, porque ao ver estas pobres costas nuas me sentia reconfortada e tive a impressao de que gostava desta rapariga e compreendia bem de mais os sentimentos dela ao olhar-se ao espelho do guarda-fato. Mas o homem disse com uma voz brutal:
— Pode saber-se o que estas ai a fazer?
Ela afastou-se. Vi-a um momento de perfil, as costas curvas, o peito chato, exactamente como eu a imaginara. Depois desapareceu e passado um momento a luz apagou-se.
Senti extinguir-se na minha alma o vago sentimento que a rapariga me suscitara e tornei a encontrar-me so na grande cama ainda gelada, no quarto escuro e cheio de objectos vulgares e feios. Pensei naqueles dois, do outro lado da parede, que adormeceriam juntos dai a momentos e ela debaixo do seu companheiro, o queixo sobre o seu ombro, as pernas entrelacadas nas suas, o braco a volta da cintura, a mao na virilha, os dedos anichados nas pregas do ventre, como raizes procurando a vida nas profundezas da terra. Senti-me de repente como uma planta desenraizada e atirada para um pavimento de pedra lisa onde ira estiolar e morrer. Jaime fazia-me falta. Estendia a mao e parecia sentir um grande espaco gelado, inabitado, que me rodeava por todos os lados e no meio do qual me encolhia, so e abandonada. Sentia um violento e doloroso desejo de me agarrar a ele, mas ele nao estava presente e tinha a impressao de estar viuva. Comecei a chorar estendendo os bracos debaixo dos lencois e imaginando abraca-lo. Acabei por adormecer nao sei como.
Tive sempre o sono pesado; por isso na manha seguinte, quase me admirei ao acordar na cama de Zelinda com um raio de sol sobre a almofada. Ainda estava meia atordoada quando ouvi tocar o telefone no corredor. Zelinda atendeu. Chamou-me e depois bateu a porta. Saltei da cama, e, em camisa e com os pes nus, corri para o corredor. Zelinda voltara para a cozinha. Peguei no auscultador e ouvi a voz da minha mae a perguntar:
— Es tu, Adriana?
— Sim.
— Mas porque te foste embora? Aqui aconteceram coisas!… Podias ao menos ter-me avisado! Tive tanto medo!
— Ja sei tudo — disse rapidamente. — E inutil falar agora nisso.
— Estava em cuidados contigo! — prosseguiu. — Esta ca o Sr. Diodatti?
— O Sr. Diodatti?
— Sim. Veio esta manha muito cedo e quer ver-te por forca. Diz que te espera.
— Diz-lhe que vou ja. Dentro de um minuto estou la. Repus o auscultador, corri para o quarto e vesti-me a pressa. Nao esperava que Jaime fosse posto em liberdade tao depressa e senti-me menos feliz do que se estivesse esperando alguns dias ou uma semana pela sua libertacao. Uma libertacao tao rapida inspirava-me desconfianca; nao podia deixar de sentir uma vaga apreensao. Mas acalmei a minha inquietacao pensando que, alem de tudo, podia ser que Astarito tivesse conseguido solta-lo imediatamente, como mo tinha prometido. De resto estava impaciente por ve-lo e esta impaciencia era feita de um sentimento de felicidade ligeiramente angustiante.
Acabei de me vestir, meti na mala os cigarros, os bombons e os bolinhos, para nao magoar Zelinda, depois entrei na cozinha para me despedir da dona de casa.
— Estas mais bem disposta agora? — disse-me. — Passou-te o mau humor?
— Estava cansada… Ate qualquer dia.
— Julgas que nao ouvi o que dizias ao telefone? O Sr. Diodatti… mas espera… toma uma chavena de cafe.
Ja estava fora de casa e ela ainda falava atras de mim. No taxi, toda curvada no banco com as maos em cima da mala, estava preparada para descer logo que o carro parasse, porque temia encontrar um ajuntamento em frente da minha porta, depois dos tiros de Sonzogne. Perguntava a mim propria se seria prudente entrar em casa; Sonzogne podia vir de um momento para o outro para se vingar… Senti que isso nao me importaria. Se Sonzogne se queria vingar, que o fizesse; eu queria ver Jaime e estava disposta a nao me esconder mais por actos que nao tinha praticado.
Ninguem encontrei em frente da casa, nem ninguem na escada. Impetuosamente irrompi pela sala e vi minha mae, que cosia a maquina, sentada ao pe da janela. O sol entrava a jorros pelos vidros da janela; o gato da casa, sentado em cima da mesa, alisava as patas. Minha mae parou logo de coser e disse-me:
— Ate que enfim… Nao podias ao menos ter-me dito que ias a policia?
— Que policia? Mas que estas a dizer?