— Como quer que saiba?

— Entao, sabe muito bem!

— Palavra de honra! — disse-lhe pondo a mao no peito. Abeirou-se de mim no Corso. Tive, de facto, a impressao de qualquer coisa estranha na sua atitude, mas nao lhe prestei grande atencao.

— Como se compreende que nao estivesse em casa e ele tivesse la ficado so?

— Tinha-o deixado porque tinha um encontro urgente.

— Mas ele julgou que tivesse saido para ir procurar a policia. Sabia? Julgou que o tinha vendido.

— Ja sei.

— E que lhe faria pagar isso.

— Tanto pior.

— Mas nao percebe — acrescentou olhando-me de lado — que e um homem perigoso e que amanha, para se vingar da sua suposta denuncia, pode muito bem atirar-lhe, como disparou sobre os policias?

— Com certeza que ja percebi!

— Entao porque nao diz o seu nome? Seria preso e deixaria de a preocupar.

— Pois se eu lhe digo que nao sei! Nao e por mal! So me faltava saber o nome de todos os homens que levo para casa!

— Esta bem! Nos, pelo contrario — afirmou de repente com voz forte e teatral, curvando-se para a frente —, nos sabemos o nome dele!

Percebi que era uma cilada e respondi tranquilamente:

— Se o sabe, porque me atormenta tanto? Prendam-no e nao se fala mais nisso.

Olhou-me um momento em silencio; notei que os seus olhos, incertos e perturbados, fixavam mais o meu corpo do que a minha cara e compreendi subitamente que, contra a sua vontade, o seu velho desejo substituira o fervor profissional.

— Sabemos ainda outra coisa — continuou — e que se ele disparou e se safou e porque tinha boas razoes para o fazer!

— Ah! Quanto a isso nao tenho duvidas!

— Mas conhece essas razoes?

— Nao sei coisa alguma. Pois se eu nem lhe conheco o nome, com quer que saiba o resto?

— Nos sabemos muito bem o resto.

Falava mecanicamente, como se pensasse noutra coisa: tinha a certeza de que nao tardaria a levantar-se e a vir ao pe de mim.

— Nos sabemos muito bem e havemos de o apanhar… e uma questao de dias, talvez de horas.

— Ainda bem para voces.

Levantou-se, como eu tinha previsto, chegou-se a mim e agarrou-me o queixo com a mao:

— Vamos! Vamos! — disse-me. — Sabe tudo e nao quer dizer. De que tem medo?

— De nada tenho medo e nada sei — respondi. — Mas trate de tirar as maos…

— Vamos! Vamos! — repetiu.

Mas voltou a sentar-se a secretaria.

— Tem sorte em eu simpatizar consigo e saber que e boa rapariga — disse-me. — Sabe o que qualquer outro faria para a obrigar a falar? Te-la-ia engaiolado durante um bom bocado. Ou entao mandava-a para S. Galicano.

Levantei-me declarando:

— Bem! Tenho que fazer! Se nada mais tem para me dizer…

— Pode retirar-se — concordou — mas tenha cuidado com a frequencia… politicos e outros!

Fingi nao perceber as ultimas palavras, pronunciadas num tom cheio de alusoes, e sai rapidamente das salas sordidas do comissariado.

Enquanto andava pensava em Sonzogne. O comissario nao tinha feito mais que confirmar o que eu ja tinha pensado: Sonzogne estava convencido de que eu o denunciara e queria vingar-se. Fui tomada de pavor, nao por mim, mas por Jaime. Sonzogne estava furioso; se ele encontrasse Jaime comigo nao hesitaria em mata-lo tambem. Devo dizer que a ideia de morrer com Jaime me sorria estranhamente. Parecia-me ver a cena: Sonzogne disparava; eu punha-me a frente de Jaime para o proteger e recebia a bala em seu lugar. Mas nao me desagradava imaginar Jaime tambem ferido e a nossa morte comum, com os nossos sangues misturados. No entanto reflectia que ser morto ao mesmo tempo pelo mesmo assassino nao era tao belo como um suicidio duplo, o qual me parecia um fim digno de um grande amor. Era como matar uma flor antes de ela comecar a fenecer, fechar-se no silencio depois de ter ouvido uma musica sublime. Tinha algumas vezes pensado nesta forma de suicidio que para o tempo antes que ele corrompa e avilte o amor e que se leva a efeito mais por excesso de alegria que pela intolerancia da dor. Momentos havia em que me parecia amar Jaime com demasiada intensidade ao ponto de recear a impossibilidade de, no futuro, o amar tanto; tive a ideia deste suicidio duplo com a mesma naturalidade e a mesma espontaneidade como o beijava e o acariciava. Mas nunca lhe falara nisso porque sabia que para nos matarmos juntos era condicao essencial que o nosso amor tivesse a mesma intensidade. E Jaime nao me tinha amor ou se o tinha nao me queria o suficiente para desejar deixar de viver.

Continuando a andar de cabeca baixa na direccao de casa, reflectia intensamente em tudo isto. De repente senti uma especie de vertigem acompanhada de nauseas e de um mal-estar horrivel. Nem sei como consegui entrar numa leitaria. Estava a poucos passos da minha casa, mas nao tinha forcas para fazer aquele curto trajecto; teria caido no chao se o tentasse.

Sentei-me a uma mesa atras da porta envidracada e fechei os olhos. Continuava a sentir uma violenta sensacao de nausea e de vertigem e esta sensacao era agravada pelo arquejar da maquina do cafe, embora bastante afastada, que me produzia uma sensacao de angustia. Sentia na cara e nas maos a tepidez da sala fechada e aquecida e, no entanto tinha muito frio. O empregado conhecia-me e gritou-me por detras do balcao:

— Um cafe, menina Adriana?

Disse que sim com a cabeca, sem abrir os olhos. Por fim reanimei-me e tomei o cafe que o empregado colocara em cima da mesa. A bem dizer nao era a primeira vez que era tomada por esta ma disposicao; nos ultimos tempos sentira-a ja, mas nao tinha ligado importancia, devido aos acontecimentos insolitos e angustiantes. Mas agora, pensando nisso e estabelecendo uma relacao entre a indisposicao e uma irregularidade significativa verificada na minha vida fisica no decurso do mes, convenci-me de que certas suspeitas que ultimamente haviam atravessado o meu espirito e a que eu nao dera consistencia correspondiam a verdade.

“Nao ha duvida alguma”, pensei bruscamente. “Espero com certeza um filho.” Paguei o cafe e sai. O que nesse momento sentia era muito complicado: hoje ainda, passado tanto tempo, nao me e facil traduzi-lo. Por experiencia propria sabia que as desgracas nunca vem sos; a presente certeza que tempo atras e noutras circunstancias seria acolhida com alegria, neste momento nao podia deixar de considera-la uma desgraca. Mas, por outro lado, um movimento irresistivel e misterioso da minha alma leva-me sempre a descobrir o lado agradavel das coisas mais desconcertantes. Desta vez o lado agradavel nao era dificil de descobrir; era o mesmo que enchia de esperanca e de satisfacao o coracao de todas as mulheres logo que sentem que foram tomadas pela prenhez. Era um facto que o meu filho nasceria nas mais desfavoraveis condicoes; no entanto, nao seria menos meu filho: seria eu quem o amamentaria, o criaria e o educaria. “Um filho e um filho”, pensava eu; “nao ha pobreza, nem circunstancias adversas, nem futuro sombrio que possam impedir uma mulher, por mais miseravel e abandonada que seja, de se alegrar a ideia de ir ser mae.” Estas reflexoes acalmaram-me; depois de um minuto de apreensao e de desencorajamento senti-me tao tranquila e confiante como sempre. O jovem medico que me vira ha tanto tempo ja, quando minha mae me levara a farmacia de servico para saber se eu tinha ou nao pertencido a Gino. tinha o consultorio proximo da pastelaria. Resolvi ir la e consulta-lo. Era cedo: ninguem havia na sala de espera; o doutor, que me conhecia muito bem, acolheu-me com simpatia. Logo que fechei a porta, anunciei-lhe tranquilamente:

— Doutor, tenho quase a certeza de estar gravida.

Ele comecou a rir porque sabia qual era o meu oficio e perguntou-me:

— Estas contrariada por isso?

— De maneira nenhuma. Estou contente.

— Vejamos.

Depois de me ter feito algumas perguntas sobre a minha indisposicao, mandou-me estender na marquesa,

Вы читаете A Romana
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату