— Lamento-o por ti — disse pousando o auscultador —, mas a primeira comunicacao referente a prisao desse estudante era errada. Para maior seguranca a policia tinha mandado agentes nao so a casa dele mas tambem a tua… assim estavam mais certos de o apanharem. Com efeito prenderam-no em casa da viuva que lhe alugava o quarto. Na tua casa, pelo contrario, os guardas encontraram um homem baixo, louro, com pronuncia do Norte, que logo que os viu, em vez de lhes mostrar os seus papeis, como eles lhe pediram, disparou e fugiu. De momento julgaram que era ele. Tratava-se evidentemente de alguem que tinha contas a ajustar com a policia.

Senti-me desfalecer. Nesse caso Jaime estava preso e Sonzogne convencido de que o denunciara. Qualquer pessoa que me tivesse visto desaparecer e os agentes virem logo depois da minha saida, teria pensado a mesma coisa. Jaime estava na prisao e Sonzogne procurava-me para se vingar! Fiquei tao aturdida com este golpe que so pude murmurar: “Pobre de mim”, dando uns passos para a porta.

Devia ter ficado muito palida porque Astarito perdeu o ar triunfante e satisfeito e aproximou-se de mim dizendo-me com ansiedade:

— Senta-te um instante. Conversemos! Nada ha irreparavel!

Abanei a cabeca e agarrei o puxador da porta. Astarito deteve-me e balbuciou:

— Ouve, prometo-te que farei o impossivel; eu mesmo o interrogarei e se ele nada praticou de grave darei ordem para o libertarem o mais depressa possivel; esta bem assim?

— Sim, esta bem — respondi com voz apagada. — E acrescentei com esforco: — Por tudo o que fizeres ja sabes que te ficarei reconhecida.

Agora sabia que Astarito faria, como tinha dito, tudo o que lhe fosse possivel para libertar Jaime e eu nao desejava outra coisa que ir-me embora, sair o mais depressa possivel daquele horrivel Ministerio. Mas Astarito perguntou-me com um escrupulo policial:

— A proposito… se tens alguma razao para recear o homem que encontraram na tua casa diz-me o seu nome e isso facilitara a prisao.

— Nao sei como se chama — respondi. E comecei a andar.

— Seja como for — insistiu — seria melhor que te apresentasses espontaneamente no comissariado para dizeres o que sabes. Eles vao pedir-te para ficares a sua disposicao e depois deixam-te ir embora. Mas se nao fores la… Pior para ti!

Respondi-lhe que o faria e disse-lhe adeus. Ele nao fechou logo a porta e ficou a ver-me afastar ao longo do corredor.

9

Uma vez na rua comecei a andar depressa, como se fugisse, ate uma praca que havia proxima. Quando cheguei ao meio da praca fiquei sem saber para onde ir e pensei onde me iria refugiar. De momento tinha pensado em Gisela; mas a casa dela era longe e sentia-me tao fraca que as pernas se me vergavam. Por outro lado nao estava certa de que Gisela me recebesse de boa vontade. Restava Zelinda, a dona da hospedaria de quem falara a minha mae quando sai de casa. Zelinda era uma amiga; para mais a sua casa era ali perto: decidi-me por ela.

Zelinda morava num predio amarelo igual a outros que dominavam a Praca da Gare. Esta casa de Zelinda distinguia-se das outras pela escada mergulhada numa quase total escuridao, mesmo as primeiras horas da manha. Nao havia elevadores nem janelas: subia-se as escuras, acotovelando de vez em quando as pessoas que desciam e se agarravam ao mesmo corrimao. Um cheiro a cozinha empestava eternamente o ar; mas era o de uma cozinha apagada ha muitos anos e onde os aromas tinham tido tempo para se decomporem neste ar gelado e tenebroso. Subia, com as pernas moles e o coracao partido, esta escada que tantas vezes trepara, abracada a algum amante impaciente. Zelinda abriu-me a porta e eu disse-lhe:

— Preciso de um quarto para esta noite.

Era uma mulher corpulenta, que a gordura envelhecera precocemente, dando-lhe aparencia de mais idade. Tropega, com manchas vermelhas nas faces doentias, olhos azuis lacrimejantes e um cabelo ralo e alourado, sempre despenteado e esfarripado, subsistia nela, no entanto, nao sei que graciosidade afectuosa, que lhe iluminava o rosto como um reflexo de luz em agua estagnada ao por do Sol.

— Tenho um quarto — disse-me. — Estas so?

— Estou.

Entrei. Ela fechou a porta e acompanhou-me tropecando, baixa e larga, com um velho penteador, o carrapito meio despenteado caido pelas costas e cheio de ganchos mal espetados. O apartamento era tao gelado como a escada. Mas o cheiro a cozinha era autentico: era o de guisado saboroso. Zelinda, que alugava quartos a hora, gostava muito de mim, nao sei porque. Frequentemente depois das minhas habituais visitas ela retinha-me para conversar e dava-me bolos e licor. Era uma rapariga envelhecida e ninguem a deve ter amado nunca porque desde muito nova a gordura a deformara. Adivinhava-se a sua virgindade pela timidez, a curiosidade e a maneira desajeitada como me perguntava pelos meus amores. Creio que ela, embora sem malicia nem inveja, lamentava secretamente nunca ter feito o que se fazia nos seus quartos e que adoptava o oficio de alugar quartos para pouca permanencia menos pela sofreguidao do lucro do que para assim satisfazer um desejo, talvez inconsciente, de nao ser inteiramente excluida do paraiso, perdido para ela, das relacoes amorosas.

Ao fundo do corredor havia duas portas que eu conhecia bem. Zelinda abriu a da esquerda. Acendeu o lustre de tres bracos terminado por tulipas de vidro branco e foi fechar a janela. O quarto era grande e asseado. Mas a limpeza acusava impiedosamente o uso e a pobreza dos moveis, os rasgoes do tapete, os remendos da colcha de algodao, os “gatos” do espelho, as falhas do lavatorio. Ela olhou-me e perguntou-me:

— Nao te sentes bem?

— Sinto-me bastante bem.

— Mas porque nao dormes na tua casa?

— Nao me apetece.

— Vamos a ver se adivinho — disse-me ela com ar amigo e malicioso: — Tens um desgosto. Esperavas alguem que nao veio.

— E possivel.

— Vamos a ver ainda se tenho razao ou nao. Este alguem e o oficial moreno com quem ca vieste a ultima vez.

Nao era a primeira pergunta deste genero que Zelinda me fazia. Com a garganta apertada pela angustia, respondi-lhe ao acaso:

— Tens razao… E entao?

— Entao nada, mas, como ves, compreendi depressa… Assim que te vi, adivinhei logo o que te tinha acontecido. Nao te rales. Se nao veio deve ter as suas razoes. Os militares, ja sabes, nem sempre estao livres.

Eu nao respondi. Ela olhou-me durante um momento, depois, com ar hesitante e afectuoso, disse-me:

— Queres fazer-me companhia e jantar comigo? Tenho um bom jantar.

— Nao, obrigada — respondi. — Ja jantei.

Olhou-me e fez-me uma festa na cara. Depois, com a expressao prometedora e misteriosa de certas tias velhas falando com um sobrinho miudo, disse-me:

— Vou dar-te uma coisa que com certeza nao recusaras. Tirou da algibeira um molho de chaves, foi a comoda e abriu a gaveta, voltando-me as costas.

Eu entreabrira o casaco, e com a mao na anca, apoiando-me a mesa, olhava Zelinda, encafuada na sua gaveta. Lembrei-me de que Gisela vinha frequentemente a este quarto com os seus amantes e tambem de que Zelinda nao gostava dela. Gostava de mim por ser eu; mas nao gostava de toda a gente. Senti-me reconfortada. “Apesar de tudo”, pensava, “nao ha so neste mundo policias e ministerios, prisoes e outras coisas parecidas inanimadas e crueis.” Entretanto Zelinda fechara a gaveta com cuidado e vinha para junto de mim dizendo:

— Toma. Isto nao recusas com certeza.

Pousou qualquer coisa em cima da mesa. Olhei e vi cinco cigarros — cigarros bons com filtro —, um punhado de bombons embrulhados em papel de cor e quatro bolinhos de amendoa em forma de frutas.

Вы читаете A Romana
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату