Apesar do medo que me inspirava, desejava dizer-lhe a verdade toda:
— Porque amo outro e nao o quero enganar.
— Quem? O que estava contigo no “electrico”?
— Nao… outro… tu nao o conheces. Mas agora faz-me o favor de me deixares e de te ires embora.
— E se eu nao quiser?
— Tu nao compreendes que ha coisas que nao se podem obter pela forca? — comecei a dizer. Mas nao pude acabar. Nao sei como, sem que a escuridao me deixasse ve-lo e ao seu gesto, recebi na cara uma tremenda bofetada.
— Anda! — disse-me.
De cabeca baixa dirigi-me rapidamente para a escada. Segurava-me outra vez pelo braco; parecia que me sustinha e me fazia voar. A cara ardia-me, mas sobretudo eu tinha um horrivel pressentimento. Esta bofetada cortava o ritmo feliz deste ultimo periodo da minha vida; as dificuldades e os terrores recomecavam.
Tomou-me um tal desespero que decidi escapar-me de qualquer maneira. Sairia de casa nesse mesmo dia; iria refugiar-me em qualquer parte. Em casa de Gisela ou num quarto alugado.
Pensava nisto com tanta intensidade que nem reparei que entrava no meu quarto. Encontrei-me — quase diria acordei — sentada na beira da cama, enquanto Sonzogne, com os seus gestos meticulosos, tirava as pecas de roupa uma por uma e as punha em cima da cadeira com metodo. A colera passara-lhe.
— Quis vir mais cedo — disse-me tranquilamente —, mas nao pude. No entanto pensei sempre em ti.
— E que pensaste? — perguntei-lhe maquinalmente.
— Que somos feitos um para o outro — disse-me num tom estranho, parando de se despir e ficando com o colete na mao. — Vim mesmo para te fazer uma proposta.
— Qual?
— Tenho dinheiro. Vamos os dois para Milao, onde tenho muitos amigos. Vou la montar uma garagem. E em Milao podemo-nos casar.
Fui tomada de uma tal fraqueza que fechei os olhos. Era a primeira vez, depois de Gino, que me propunham casamento; e quem me fazia esta proposta era Sonzogne! Desejara tanto uma vida normal, com um marido e filhos, e eis que ma ofereciam. Mas era uma normalidade reduzida a uma especie de concha no interior da qual tudo era anormal e aterrador. Disse-lhe molemente:
— Porque? Mal nos conhecemos; so me viste uma vez…
Respondeu-me sentando-se ao meu lado e segurando-me pela cintura:
— Ninguem me conhece melhor do que tu… sabes tudo a meu respeito.
Atravessou-me o espirito a ideia de que ele estivesse comovido e quisesse mostrar que me amava e que eu devia ama-lo. Mas em nada me baseava, porque nada na sua atitude me revelava semelhante sentimento.
— Pouco sei de ti — disse-lhe em voz baixa. — So sei que mataste aquele homem!
— E depois — continuou como se falasse consigo — estou cansado de estar so… Quando se vive so acaba-se sempre por fazer alguma asneira.
Disse-lhe passado um momento:
— Assim de repente nao te posso responder nem sim nem nao… Da-me algum tempo para reflectir.
Com grande admiracao minha, respondeu-me, de dentes cerrados:
— Reflecte, reflecte, nao ha pressa.
Depois continuou a despir-se.
O que me ferira fora sobretudo a frase: “Somos feitos um para o outro.” Agora perguntava a mim mesma se ele nao teria razao apesar de tudo. A quem poderia eu aspirar de futuro senao a um homem como ele? Por outro lado, nao era verdade que um laco obscuro que eu reconhecia e temia me ligava a ele? Surpreendi-me repetindo em voz baixa: “Acabou! Acabou!” e sacudindo desesperadamente a cabeca disse-lhe em voz clara:
— Para Milao? Mas tu nao tens medo que te procurem?
— Disse isso por dizer… Na realidade eles nem sabem que eu existo!
De repente a lassidao que me tomara os membros desapareceu: senti-me muito forte e muito decidida. Levantei-me, tirei o casaco e fui pendura-lo no bengaleiro. Como habitualmente, fechei a porta a chave, depois fui a janela e puxei as cortinas. De pe em frente do espelho, comecei a desabotoar o vestido. Mas interrompi-me e voltei-me para Sonzogne. Estava sentado na beira da cama a tirar os sapatos.
— Espera um momento… — disse-lhe afectando um tom despreocupado — estou a espera de uma pessoa, e melhor eu prevenir minha mae para que a mande embora.
Nao respondeu nem eu lhe dei tempo. Sai do quarto fechando a porta atras de mim. Fui a sala grande.
Minha mae estava a coser a maquina ao pe da janela; havia ja algum tempo que, para se distrair, tinha recomecado a trabalhar um pouco. Disse-lhe depressa em voz baixa: — Telefona-me amanha de manha para casa da Gisela ou da Zelinda.
Zelinda era dona de uma hospedaria para onde eu levara algumas vezes os meus amantes: minha mae conhecia-a.
— Mas porque?
— Vou-me embora para la — disse-lhe. — Quando aquele homem perguntar onde estou, diz-lhe que nada sabes.
Minha mae olhava-me de boca aberta, enquanto eu tirava do bengaleiro o casaco curto de peles, meio pelado, que lhe pertencia depois de ter sido meu.
— Sobretudo — acrescentei — nao lhe digas onde estou, era capaz de me matar!
— Mas…
— O dinheiro esta no sitio do costume… suplico-te que nada digas e telefona-me amanha de manha.
Sai a pressa, na ponta dos pes, e desci a escada. Uma vez na rua comecei a correr. Sabia que Jaime a esta hora estava em casa e queria chegar antes que ele saisse com os amigos, como fazia sempre depois do jantar. Tomei um taxi e dei a direccao de Jaime. Compreendi bruscamente que nao fugia tanto de Sonzogne como de mim propria, obscuramente atraida por esta violencia e por este furor. Lembrei-me do grito dilacerante, misto de horror e de volupia, que soltara na primeira vez em que Sonzogne me tinha possuido; disse a mim mesma que nesse dia ele me havia subjugado como nunca nenhum homem o fizera ate entao, nem mesmo Jaime. “Sim, nao pude deixar de concluir, nos somos verdadeiramente feitos um para o outro, mas como o corpo e feito para o precipicio que faz virar a cabeca, turvar a vista e finalmente o atrai para um fundo vertiginoso.” Subi a escada a quatro e quatro, cheguei ofegante e perguntei por Jaime a velha criada que me veio abrir a porta.
Olhou-me com ar assustado, nao disse palavra e foi-se embora, deixando-me so.
Pensando que teria ido prevenir Jaime, entrei no vestibulo e fechei a porta. Ouvi entao um cochichar atras do reposteiro que separava o vestibulo do corredor. Depois o reposteiro levantou-se e vi aparecer a viuva Medolaghi. Esquecera-a depois da primeira e unica vez em que a vira. A sua macica silhueta negra, a face branca, os seus olhos circundados de negro surgindo bruscamente diante de mim inspiraram-me nesse momento, nao sei porque, um arrepio, como se tivesse visto uma aparicao aterradora. Disse-me rapidamente, falando-me de longe:
— Procura o Sr. Diodatti?
— Sim.
— Prenderam-no.
Nao percebi bem. Nao sei porque liguei esta prisao ao crime de Sonzogne. Balbuciei:
— Preso? Mas ele nada tem com isso…
— Nao sei nada — disse-me. — So sei que fizeram uma busca e prenderam-no.
Pela sua cara zangada compreendi que nao me diria nem mais uma palavra e no entanto ainda perguntei:
— Mas porque?
— Ja lhe disse, menina, que nada sei.
— Mas para onde o levaram?
— Nao sei.
— Mas diga-me ao menos se deixou algum recado?
Desta vez nem me respondeu; voltou-se e chamou com um ar ofensivo e majestoso: