— Diomira!
A criada de idade reapareceu com a sua cara assustada. A patroa indicou-lhe a porta e disse:
— Acompanhe essa menina. O reposteiro tornou a cair.
So depois de me encontrar outra vez na rua e que compreendi que a prisao de Jaime e o crime de Sonzogne eram dois factos distintos e independentes um do outro. O unico traco a liga-los era o meu pavor. Discernia sobre o conjunto destes acontecimentos imprevistos e desgracados as amplitudes de um destino que me cumulava de um so golpe de todos os dons funestos, como a Primavera faz amadurecer ao mesmo tempo os frutos mais diversos. E bem verdade que, segundo o proverbio, uma desgraca nunca vem so. Sentia-o mais do que o pensava enquanto caminhava, de rua em rua, de cabeca baixa e curvando as costas sob um peso imaginario.
Naturalmente a primeira pessoa a qual me lembrei de recorrer foi a Astarito. Sabia de cor o numero do telefone da reparticao; entrei no primeiro cafe. O telefone estava livre mas ninguem me respondeu. Liguei varias vezes e acabei por me convencer de que Astarito nao estava la. Devia ter ido jantar: voltaria mais tarde. Estas coisas sao assim; mas, como acontece sempre, esperava que justamente desta vez, por excepcao, o encontraria na reparticao.
Olhei para o relogio. Eram oito horas da noite; Astarito nao voltaria antes das dez. Fiquei de pe, a um canto da rua; a minha frente estava uma ponte, percorrida por transeuntes que surgiam em silencio, escuros e rapidos, como folhas mortas agitadas por uma incessante tempestade. Mas para la da ponte as casas alinhadas davam uma impressao de tranquilidade, com as janelas todas iluminadas e as pessoas que iam e vinham por entre as mesas e os outros moveis. Lembrei-me de que nao estava muito longe do Comissariado Central, para onde supunha terem levado Jaime. E, se bem que compreendesse ser essa uma tentativa desesperada, decidi ir la directamente para pedir informacoes. Sabia de antemao que nao mas dariam; mas pouco importava, queria sobretudo fazer alguma coisa por Jaime. Segui por uma rua transversal, caminhei rapidamente rente as paredes, cheguei ao Comissariado, subi alguns degraus e entrei. Diante da porta do porteiro, um policia que lia o jornal, refastelado numa cadeira, com os pes noutra e o bone em cima da mesa, perguntou-se aonde e que eu ia. “A Seccao dos Estrangeiros”, disse-lhe. Era uma das numerosas seccoes do Comissariado; ouvira falar nela uma vez a Astarito, ja nao sei a que proposito.
Nao sabendo para que lado ir, subi ao acaso os degraus de uma escada suja e mal iluminada. Encontrava continuamente empregados e policias com as maos cheias de papeis e colava-me a parede o mais possivel, baixando a cabeca. Em todos os andares encontrava corredores sujos e escuros com gente que ia e vinha, depois portas abertas e salas e salas. O Comissariado parecia um enxame atarefado; mas as abelhas que o habitavam nao pousavam decerto sobre flores; o seu mel, que eu saboreava pela primeira vez, era fetido, escuro e bem amargo. No terceiro andar, desesperada, enfiei ao acaso por um dos corredores. Ninguem olhava para mim, ninguem me ligava importancia. A direita e a esquerda do corredor alinhavam-se portas quase todas abertas; a entrada, agentes sentados em cadeiras de palha falavam e fumavam. No interior das salas vi quase sempre o mesmo espectaculo: rimas e rimas de papeis, um agente sentado a uma mesa, com a caneta na mao. O corredor nao era direito: era obliquo e dai a pouco ja nao sabia onde estava. De vez em quando enfiava-me por uma passagem mais baixa e entao era preciso subir ou descer tres ou quatro degraus; cruzava outros corredores parecidos, com outros agentes, portas abertas e mal iluminadas. A certa altura pareceu-me andar num corredor que ja tinha percorrido. Como passasse um guarda perguntei-lhe ao acaso: “Onde e o vice-comissario?” Indicou-me com um gesto uma passagem entre duas portas. Desci quatro degraus e enfiei por um corredorzinho direito. Nesse momento, ao fundo, onde esta especie de lombriga fazia um angulo recto, abriu-se uma porta e apareceram dois homens; estavam de costas e caminhavam na direccao do canto. Um deles segurava o outro pelo pulso e por um instante tive a impressao de que era Jaime.
— Jaime! — gritei, correndo para os alcancar. Mas alguem me segurou pelo braco. Era um policia muito novo, de cara afilada, moreno, com o quepi enfiado numa massa de cabelos pretos encaracolados.
— Que quer? Quem procura? — perguntou-me. Ao meu grito, os outros dois tinham-se voltado para mim e verifiquei ter cometido erro.
Expliquei com voz ofegante:
— Prenderam um dos meus amigos e queria saber se o tinham trazido para aqui.
— Como se chama ele? — perguntou o agente, sem me largar, com um ar peremptorio.
— Jaime Diodatti.
— Que faz ele?
— E estudante.
— Quando o prenderam?
Compreendi que me fazia estas perguntas todas para se dar importancia e que nada sabia. Disse-lhe com irritacao:
— Em vez de me fazer tantas perguntas era melhor que me dissesse onde e que ele esta.
Estavamos sos no corredor. Olhou a volta, depois apertou-me e disse-me num tom claramente cumplice:
— Pensaremos no estudante mais tarde. Por agora vais dar-me um beijo.
— Nao! Nao me faca perder tempo! Deixe-me ir embora! — gritei cheia de raiva.
Dei-lhe um encontrao, desatei a correr, penetrei noutro corredor, vi uma porta aberta e para la dessa porta uma sala maior do que as outras com uma secretaria ao fundo, atras da qual estava sentado um homem de meia idade.
Entrei e perguntei-lhe de um folego:
— Queria saber para onde levaram o estudante Diodatti… o que prenderam esta tarde.
O homem levantou os olhos da secretaria, onde estava um jornal desdobrado, e perguntou-me, estupefacto:
— Queria saber…
— Sim… para onde levaram o estudante Diodatti, preso esta tarde.
— Mas quem e a menina? Como se atreveu a entrar aqui?
— Isso agora nao interessa… diga-me so onde e que ele esta.
— Mas quem e a menina? — repetiu berrando e dando socos na mesa. — Como se atreveu? Sabe onde esta?
Compreendi que nao conseguiria saber coisa alguma e que em compensacao corria o risco de ficar presa tambem. E entao nao poderia ja falar a Astarito e Jaime ficaria na prisao.
— Nao tem importancia. Enganei-me. Desculpe — disse retirando-me.
As minhas desculpas ainda o enfureceram mais que as minhas perguntas anteriores. Mas agora eu ja estava ao pe da porta.
— Entra-se e sai-se fazendo a saudacao fascista! — gritou mostrando-me um cartaz suspenso sobre a sua cabeca.
Disse que sim com a cabeca, para confirmar que ele tinha razao, que era verdade, que se devia entrar e sair fazendo a saudacao fascista e sai da sala recuando. Percorri o corredor todo, acabei por encontrar a escada depois de vaguear um pouco ao acaso e desci a pressa. Tornei a passar em frente do porteiro e sai para o ar livre.
O unico resultado desta ida a policia fora o ter-me feito passar um pouco de tempo. Calculei que se fosse devagarinho ate ao Ministerio de Astarito demoraria talvez tres quartos de hora, ate mesmo uma hora. Uma vez la proximo sentar-me-ia num cafe e telefonaria a Astarito dai a vinte minutos.
Enquanto andava veio-me a ideia a possibilidade de esta prisao de Jaime ser uma vinganca de Astarito. Astarito tinha uma posicao importante, justamente na policia politica; com certeza que havia muito tempo que eles vigiavam Jaime e que sabiam da nossa ligacao; nada havia de improvavel que o seu cadastro tivesse passado pelas maos de Astarito e que fosse ele, levado pelos ciumes, que tivesse dado a ordem para prenderem o estudante. A esta ideia senti uma especie de furor contra Astarito. Sabia que ele continuava sempre apaixonado por mim; sentia-me capaz, se as minhas suspeitas tivessem fundamento, de o fazer expiar amargamente a sua ma accao, nao sem pensar tambem com pavor que as coisas talvez nao se tivessem passado dessa maneira e que com as minhas frageis armas me preparava para combater um adversario obscuro e sem rosto, mais parecido com uma maquina bem afinada do que com um homem sensivel e acessivel a paixoes.
Quando cheguei em frente do Ministerio renunciei a ideia de me sentar num cafe e fui directamente