Nao via outra maneira de mudar de existencia, nao sentia de momento qualquer desejo de aumentar nem de melhorar materialmente a minha condicao e nao tinha a impressao de que, transformando a minha vida, eu propria melhorasse qualquer coisa.

Um dia contei a Jaime estas minhas reflexoes. Ouviu-me atentamente, depois observou-me:

— Pareces contradizer-te. Nao dizes sempre que querias ser rica, ter uma bela casa, um marido e filhos? Sao coisas legitimas: ainda e possivel que as obtenhas, mas nunca as conseguiras se raciocinares dessa maneira.

— Nao digo que queria, digo que teria querido. — respondi-lhe. — Quer dizer que se tivesse podido optar antes de ter nascido, nao teria escolhido isto que sou. Mas nasci naquela casa, de uma mae como aquela, nesta situacao, e apesar de tudo, sou a que sou.

— O que?

— Parece-me absurdo querer ser outra. Desejaria ser outra unicamente se, tornando-me outra, pudesse continuar a ser eu propria… quer dizer, se pudesse realmente desfrutar da mudanca. Mas ser outra so para nao ser eu, nao vale a pena.

— Vale sempre a pena — murmurou. — Senao por ti, pelos outros.

— E depois — continuei sem responder a sua interrupcao — o que conta sao os factos. Imaginas que eu nao poderia ter encontrado um amante rico como a Gisela? Ou ate mesmo casar? Se nao o fiz, quer dizer que no fundo, apesar de todas as minhas tagarelices, nao o desejei verdadeiramente.

— Casarei eu contigo — disse a brincar beijando-me. Sou rico. A morte da minha avo, que nao pode demorar muito, tornar-me-a herdeiro de muitos hectares de terra, de uma casa no campo e de outra na cidade. Montaremos casa com todo o rigor, convidaras senhoras da vizinhanca em dias certos, teremos uma cozinheira, uma criada de quarto, um automovel, ate mesmo havemos de descobrir que somos nobres e far-nos-emos chamar marqueses ou condes.

— Contigo nunca se pode falar a serio; estas sempre a brincar! — disse-lhe repelindo-o.

Numa destas tardes fui ao cinema com Jaime. A volta subimos para um electrico muito cheio. Jaime vinha para casa comigo e iamos jantar ao restaurantezinho das fortificacoes. Tirou os bilhetes e furou por entre as pessoas que enchiam a coxia do electrico. Quis segui-lo, mas perdi-o de vista. Enquanto agarrada a um assento, o procurava com os olhos, senti tocarem-me na mao. Olhei e vi Sonzogne sentado ao pe de mim.

Fiquei sufocada. Senti-me empalidecer e mudar de expressao. Olhava-me com a sua intoleravel fixidez. Levantou-se e disse-me por entre os dentes:

— Queres sentar-te?

— Obrigada, desco ja — balbuciei.

— Senta-te, mesmo assim!

— Obrigada — repeti, sentando-me.

Se nao me tivesse sentado, julgo que teria desmaiado. Ficou de pe a minha frente como que a espiar-me, segurando-se com uma mao ao meu banco e com a outra ao que estava a minha frente. Nada tinha mudado; trazia a mesma gabardina de sempre, atada na cintura, e os seus maxilares tinham o mesmo estremecimento maquinal. Fechei os olhos — e durante um momento procurei ordenar os meus pensamentos. Lembrei-me da minha confissao e pensei se, como desconfiara, o padre tinha falado, a minha vida nao estava muito segura.

Esta ideia nao me assustou. Mas ele, de pe ao meu lado, assustava-me, ou, mais exactamente, fascinava-me, subjugava-me. Sentia que nada lhe podia recusar; que entre mim e ele havia um laco, nao de amor seguramente, mas talvez mais forte do que aquele que me unia a Jaime. Ele tambem o sabia por instinto: portava-se como um dono.

— Vamos para tua casa! — disse-me passado um instante.

— Como quiseres! — respondi docilmente, sem hesitar.

Jaime aproximou-se depois de se ter desembaracado com esforco das pessoas que o comprimiam. Sem dizer uma palavra veio colocar-se exactamente ao lado de Sonzogne, agarrando-se ao mesmo banco que ele; os seus dedos magros e longos quase afloravam os dedos curtos e grossos de Sonzogne. Uma sacudidela do electrico atirou-os um contra o outro e Jaime desculpou-se delicadamente. Comecei a sofrer por os ver assim lado a lado, tao perto e tao ignorantes um do outro; de repente disse a Jaime, voltando-me ostensivamente para ele, de maneira a que Sonzogne nao pudesse duvidar de que era com ele que eu falava:

— Olha! Lembro-me agora de que marquei encontro esta noite com uma pessoa; e melhor que nos separemos.

— Se quiseres acompanho-te a casa.

— Nao, esperam-me na paragem do electrico.

Nao era uma invencao. Continuava, como ja disse, a trazer homens para casa e Jaime sabia-o.

— Como quiseres — disse tranquilamente. — Entao ver-nos-emos amanha.

Disse-lhe que sim com os olhos e perdi-o de vista por entre os passageiros do electrico.

Por um momento, ao ve-lo afastar-se, fui tomada de um grande desespero. Pensava — sem saber porque — que era a ultima vez que o via.

“Adeus”, murmurei para mim mesma. “Adeus, meu amor.” Desejaria gritar-lhe que parasse, que voltasse, mas nenhum som saiu da minha boca. O carro parou e pareceu-me ve-lo descer. Nem Sonzogne nem eu abrimos a boca durante todo o trajecto. Acalmei-me e pensei que nao era possivel que o padre tivesse falado. Por outro lado, reflectindo nisso, nao lamentava muito ter encontrado Sonzogne. Este encontro permitia livrar-me de uma vez para sempre das suspeitas a respeito da minha confissao.

Quando descemos andei uns passos sem olhar para tras. Sonzogne vinha ao meu lado:

— Que me queres? Porque voltaste? — acabei por dizer.

— Foste tu quem me disse para voltar — disse-me com admiracao.

Era verdade; com o medo esquecera-o. Aproximou-se, pegou-me no braco e apertou-mo com forca. Contra vontade minha, comecei a tremer dos pes a cabeca.

— Quem e este homem? — perguntou-me.

— Um dos meus amigos.

— E o Gino? Tornaste a ve-lo?

— Nunca mais.

Olhou a sua volta, desconfiado.

— Nao sei porque — disse-me —, ha uns dias que tenho a impressao de ser seguido. So ha duas pessoas que me podem ter vendido: Gino e tu.

— Porque o Gino? — murmurei.

O meu coracao batia desordenado.

— Ele sabia que eu devia levar o objecto aquele ourives… disse-lhe ate mesmo o nome… Ele nao sabe ao certo que fui eu quem o matou, mas pode muito bem ter deduzido.

— Gino nao tem interesse em te denunciar; ficava tambem ele envolvido no caso.

— E o que eu penso — disse-me por entre dentes.

— Quanto a mim — continuei com a voz mais tranquila — podes ter a certeza de que nada disse… nao sou parva… prendiam-me a mim tambem.

— Espero por ti que nao o facas! — disse-me num tom ameacador. Depois acrescentou: — Tornei a ver Gino… ele disse-me, brincando, que sabia muitas coisas. Nao me sinto tranquilo… E um crapula.

— Naquela noite trataste-o muito mal; com certeza que te odeia agora — disse-lhe.

E sentia, enquanto falava, uma vaga esperanca de que Gino realmente o tivesse denunciado.

— Aquele foi um bom soco! — declarou com vaidade. — Doeu-me a mao durante dois dias!

— Gino nao te denunciara — disse eu como conclusao. — Nao lhe interessa, e alem disso tem muito medo de ti.

Falavamos em surdina, caminhando ao lado um do outro sem nos olharmos. Era ao entardecer; uma bruma azulada envolvia as muralhas enegrecidas, as ramadas brancas dos platanos, as casas amareladas, a longa perspectiva das avenidas. Quando chegamos a minha porta senti pela primeira vez a impressao de atraicoar Jaime. Desejaria dar-me a ilusao de que Sonzogne era um homem qualquer entre muitos; mas sabia nao ser verdade. Entrei no vestibulo, empurrei a porta e no escuro parei, voltei-me para Sonzogne e declarei-lhe :

— Olha… e melhor que te vas embora.

— Porque?

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