Senti-me ferida e repliquei-lhe:

— A minha especialidade, como tu dizes, e amar-te. Mas se tu queres, nunca mais teremos relacoes e eu amar-te-ei da mesma maneira.

Riu-se e perguntou-me:

— Tens a certeza?

Nesse dia a discussao ficou por aqui, mas repetiu-se noutras ocasioes. Acabei por nao ligar importancia: aceitei a coisa como de resto os outros tracos do seu caracter tao cheio de contradicoes.

Pelo que dizia respeito a politica, pelo contrario, era assunto em que nao tocava. Ainda agora ignorava qual o seu fim, quais as suas ideias, a que partido pertencia. Esta ignorancia tinha origem no segredo em que ele envolvia este aspecto da sua vida, no facto de eu nada perceber de politica e de, quer por timidez quer por ignorancia, nao lhe pedir explicacoes que me poderiam esclarecer. Fazia mal; Deus sabe como me arrependi mais tarde! Mas parecia-me naquela altura extremamente comodo nao me misturar em coisas que supunha nao me dizerem respeito e nao pensar senao no amor. Em suma, portava-me como muitas outras mulheres, esposas ou amantes, que ignoram como o homem que lhes pertence arranja o dinheiro que lhes da. Acontecia-me muitas vezes encontrar os seus dois camaradas, que ele via quase todos os dias. Mas eles nao falavam de politica na minha presenca; gracejavam ou conversavam sobre coisas sem importancia.

No entanto nao conseguia banir da minha alma uma apreensao constante, porque compreendia que tramar conspiracoes contra o governo era perigoso. Receava, sobretudo, que Jaime se entregasse a qualquer acto de violencia; na minha ignorancia, nao conseguia separar o tema da conspiracao da ideia de armas e de sangue. A proposito disto, lembro-me bem de um facto que demonstra que, mesmo obscuramente, eu sentia o dever de intervir para desviar os perigos que o ameacavam. Sabia que e proibido usar armas e que a transgressao era o suficiente para o meter na cadeia. Por outro lado depressa se perde a cabeca em certos momentos; o emprego de armas tem muitas vezes comprometido pessoas que se teriam salvo sem elas. Por todos estes motivos pensava que o revolver de que Jaime se sentia tao orgulhoso, longe de lhe ser necessario, como ele pretendia, seria extremamente perigoso no caso de ele ser obrigado a fazer uso dele, ou ate se, mais simplesmente, lho encontrassem. Mas nao ousei falar-lhe nisso; de resto sabia que seria inutil. Resolvi por isso agir as escondidas. Ele uma vez tinha-me explicado como a arma funcionava. Um dia, enquanto dormia, tirei-lhe o revolver do bolso das calcas, abri-o e tirei-lhe as balas; depois tornei a po-lo no bolso. Escondi as balas numa gaveta, debaixo da roupa. Fiz tudo isto num abrir e fechar de olhos e voltei a deitar-me a seu lado. Dois dias mais tarde meti as balas na mala e fui atira-las ao Tibre.

No decurso de um destes dias Astarito procurou-me. Quase o esquecera; quanto ao caso da criada de quarto achava que tinha cumprido o meu dever e nao queria mais pensar nisso. Astarito informou-me de que o padre tinha devolvido a caixa, que, a conselho do proprio comissario, a patroa de Gino tinha retirado a queixa e que a criada de quarto, reconhecida inocente, fora libertada. Devo reconhecer que esta boa noticia me agradou sobretudo porque me dissipou a impressao de mau agouro que me tinha deixado a minha ultima confissao. Agora ja nao pensava na criada, ja em liberdade, mas em Jaime, e dizia a mim propria que, visto a denuncia que eu receava nao ter sido feita, nada mais tinha a temer, nem por ele nem por mim. Na minha alegria nao pude deixar de beijar Astarito.

— Tinhas assim tanto interesse em que esta mulher saisse da prisao? — observou ele com uma careta de desconfianca.

— Para ti — disse-lhe hipocritamente —, que mandas todos os dias inocentes para a cadeia, pode parecer-te estranho! Mas para mim era um verdadeiro tormento.

— Ninguem mando para a cadeia — tartamudeou ele. Cumpro apenas o meu dever.

— Mas tu viste o padre? — perguntei-lhe.

— Nao, nao o vi… telefonei… disseram-me que efectivamente a caixa de po de arroz tinha sido devolvida por um padre, que a recebera sob o segredo da confissao… Entao ordenei que libertassem a mulher.

Fiquei pensativa sem bem saber porque. Depois disse-lhe:

— Amas-me realmente?

A minha pergunta perturbou-o logo. Beijou-me com forca e respondeu-me balbuciante:

— Porque mo perguntas? Ja o deves ter percebido.

Queria beijar-me. Defendi-me e respondi-lhe:

— Pergunto-te porque queria saber se me amaras sempre… e se me ajudaras mais vezes, se te pedir.

— Sempre — disse-me tremendo dos pes a cabeca. Depois aproximou a cara da minha: — Tu seras gentil comigo?

Agora que Jaime voltara, eu estava firmemente decidida a nunca mais ter relacoes com Astarito. Era diferente dos meus amantes passageiros; se bem que nao o amasse, e por vezes mesmo sentisse por ele uma real aversao, justamente por isso talvez parecia-me que entregar-me a ele seria enganar Jaime. Estive tentada a revelar-lhe a verdade e a declarar-lhe: “Nao, nunca mais serei gentil para contigo!”, mas bruscamente retive-me e mudei de ideias. Pensava que ele era um trunfo importante, que a todo o momento Jaime podia ser preso e que se quisesse a intervencao de Astarito para o conseguir libertar nao o devia melindrar. Resignei-me e disse num sopro:

— Sim, serei amavel contigo.

— Diz-me — perguntou ja mais alegre. — Gostas de mim um bocadinho?

— Nao, amar-te nao te amo! — disse-lhe com decisao. Isso ja tu sabes; ja to disse muitas vezes.

— Nunca me amaras?

— Creio bem que nao.

— Mas porque?

— Nao ha porque.

— Tu gostas de outro.

— Isso a ti nao te pode interessar.

— Mas eu preciso do teu amor! — disse-me desesperado, olhando-me com os seus olhos biliosos. — Porque… porque nao queres gostar de mim um bocadinho?

Nesse dia permiti que ficasse comigo ate mais tarde. Nao podia conformar-se com a minha impossibilidade de o amar e nao parecia convencido de que lhe dizia a verdade.

— Mas eu nao sou pior do que os outros — repetia. Porque nao me podes amar tanto como a outro?

Fazia-me pena; como me interrogava com insistencia e se esforcava por encontrar nas minhas palavras um pretexto para qualquer esperanca, sentia quase a tentacao de lhe mentir para lhe deixar esta ilusao que ele tanto ambicionava. Reparei que nessa noite estava mais melancolico e mais desencorajado do que habitualmente. Parecia querer suscitar em mim, por gestos e por atitudes, o amor que o meu coracao lhe recusava. Lembro-me de que a certa altura mandou-me sentar, toda nua, num sofa. Ajoelhou-se na minha frente, meteu a cabeca entre os meus joelhos e apertou a cara contra a minha barriga, ficando muito tempo imovel, enquanto eu lhe devia repassar a mao pela cabeca numa caricia incessante e leve. Nao era a primeira vez que me obrigava a esta especie de pantomima de amor; mas nesse dia pareceu-me mais desesperado que de costume; apoiava com forca a cara no meu colo como se quisesse la entrar e gemia. Nestes momentos nao me fazia o efeito de um amante, mas de uma crianca procurando a escuridao e o calor das entranhas maternais. Pensava que muitos homens desejariam nao ter nascido, e que esse gesto, talvez inconsciente, exprimia o obscuro desejo de voltar ao ventre do qual tao dolorosamente tinham brotado para a luz.

Nessa noite essa sua atitude levou tanto tempo que adormeci, com a cabeca descaida para tras e a mao pousada na sua cabeca. Dormitei nao sei quanto tempo. A certa altura julguei acordar e vi Astarito sentado na minha frente todo vestido e olhando-me com os seus olhos biliosos e melancolicos. Mas talvez tivesse sido um sonho, porque depois acordei completamente e vi que Astarito ja la nao estava. Tinha deixado no sitio onde pousara a cabeca a sua soma habitual de dinheiro.

Em seguida passaram os quinze dias que eu considero os mais felizes da minha vida.

Via Jaime quase todos os dias e, se bem que as nossas relacoes nao tivessem mudado, contentava-me com esta especie de habito, na qual parecia termos encontrado um ponto de acordo. Tacitamente estava bem claro entre nos que ele nao me tinha amor, nunca me amaria e de qualquer maneira preferia sempre a castidade ao amor. Tambem estava tacitamente estabelecido que eu o amava, o amaria sempre a despeito da sua indiferenca e que de qualquer maneira preferia um amor incompleto e vacilante como aquele que ausencia de

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