amor. Mas eu nao era feita como Astarito; nao me resignando a nao ser amada, nao encontrava menos prazer em amar; juraria que no fundo do meu coracao nao perdera a esperanca de ser amada por Jaime a forca de submissao, de paciencia e de afeicao. Mas nao acalentava esta aspiracao; ela era, bem mais que outra coisa, o tempero levemente amargo de deliciosas incertezas duramente ganhas.
Entretanto, como quem nao quer a coisa, procurei penetrar na sua vida. Ja que nao podia entrar pela porta principal procurei esgueirar-me pela de servico. A despeito deste odio pelos homens que ele proclamava, e que creio que sentia, experimentava, por uma curiosa contradicao, um impulso indomavel para pregar e esforcar-se por fazer o que ele considerava o bem do povo. Quase sempre intercalado por bruscos acessos de sarcasmo e de aborrecimento nao era menos sincero quando o fazia.
Foi nesta altura que ele pareceu apaixonar-se pelo que ele chamava, nao sem ironia, a minha educacao. Como ja disse, eu procurava prende-lo a mim; assim, favoreci o seu entusiasmo. Esta experiencia, no entanto, acabou quase de repente de uma maneira que vale a pena relatar. Vinha ter comigo muitas noites a seguir, trazia-me livros seus e depois de me explicar abreviadamente o assunto de que tratavam lia-me um trecho ou outro. Lia bem, com grande variedade de inflexoes, segundo o assunto, e com um fervor que o tornava corado e lhe dava uma grande vivacidade ao rosto. Mas o que ele mais lia eram coisas que, a despeito dos meus esforcos, nao chegava a compreender. Bem depressa deixei de o ouvir, contentando-me em observar, com um entusiasmo que nunca fraquejava, as diversas expressoes que a sua cara tomava. Na realidade, no decurso dessas leituras libertava-se, sem ironia, nem receio, como alguem que esta no seu elemento e ja nao teme mostrar-se sincero. Aquilo magoava-me porque ate entao julgava que era o amor, e nao a leitura, a situacao mais favoravel a expansao da alma humana. Para Jaime, parecia bem ser o contrario. Nunca lhe vi no rosto uma expressao de tanto entusiasmo e ao mesmo tempo de candura, mesmo nos raros momentos de sincero afecto por mim, como logo que elevava a voz com curiosas entoacoes cavernosas ou a baixava num tom reflectido para me declamar os seus autores preferidos. Eu via entao desaparecer por completo aquele ar afectado, teatral e comico que nunca o abandonava ate mesmo nos momentos mais serios e que dava a impressao de que ele estava sempre a representar um papel. Muitas vezes chegava a comover-se ate as lagrimas.
Fechava o livro e perguntava-me num tom brusco:
— Gostas disto?
Geralmente dizia que gostava sem especificar porque; nao o poderia fazer, porque desde o principio abandonei toda a tentativa de compreender. Mas um dia insistiu e perguntou-me:
— Diz-me porque gostas… explica-me!
— Para dizer a verdade — respondi depois de uma hesitacao — nada te posso explicar, porque nada percebi.
— Porque nao me disseste?
— Nada compreendo… ou quase nada do que me les.
— E deixas-me ler sem mo dizer?
Saltava, batia com os pes no chao, furioso:
— Diabo! Mas tu es uma idiota, uma estupida!… E eu a esforcar-me. Es uma cretina!
Fez mencao de me atirar com o livro a cabeca, mas conteve-se a tempo e continuou a injuriar-me durante um bom bocado. Deixei passar a furia e observei-lhe:
— Dizes que me queres educar… mas a primeira coisa a fazer era agir de maneira a que eu nao precisasse de ganhar a vida da maneira que sabes. Para engatar homens nao e verdadeiramente necessario ler poesias ou reflexoes sobre a moral. Podia muito bem nao saber ler nem escrever; davam-mo o mesmo dinheiro.
Respondeu num tom sarcastico:
— Querias uma bonita casa, um marido, filhos, vestidos, um automovel, nao e? A desgraca e que as Sr.as Lobianco nao leem. Os motivos sao diferentes dos teus, mas nao menos justificaveis, ao que parece.
— Nao sei o que quereria — respondi irritada —, mas esses livros convem a uma condicao diferente da minha. E como se oferecesses um chapeu de grande categoria a uma pedinte e quisesses que ela o usasse com os seus andrajos habituais!
— E possivel — disse-me. — Mas para mim e a ultima vez que te leio uma linha!
Narro esta escaramuca porque me pareceu caracteristica da sua maneira de pensar e de agir. Duvido de que tivesse continuado a sua obra educativa mesmo se eu nao lhe tivesse mostrado a minha incompreensao. Nao que fosse inconstante, mas tinha uma singular incapacidade — que se poderia chamar fisica — para manter qualquer esforco que exigisse um entusiasmo continuo e sincero. Nunca mo disse claramente, mas compreendi depressa que esta atmosfera de comedia que criavam as suas palavras correspondia a um contiguo estado de espirito. Em suma, acontecia entusiasmar-se por um motivo qualquer, e enquanto durava o fogo do seu entusiasmo, ver a coisa como possivel e concreta. Depois, de repente, o fogo extinguia-se e nao lhe deixava mais que aborrecimento, desagrado, e sobretudo um sentimento total de absurdo. Neste caso ou se deixava cair numa gelida indiferenca ou se agitava de uma maneira exterior e convencional como se este fogo nao se tivesse apagado e entao fingia. Para mim e dificil explicar o que lhe acontecia nessas ocasioes: provavelmente uma paragem brusca da vitalidade, como se de repente o calor do seu sangue tivesse abandonado o seu espirito, nao deixando mais do que aridez e vazio. Era uma interrupcao subita, imprevisivel, total, comparada a brusca interrupcao de uma corrente electrica que mergulhasse no escuro uma casa faustosamente iluminada um minuto antes. Estas intermitencias da mais profunda vitalidade, descobri-as depois das varias alternativas de entusiasmo e ardor para estados de apatia e inercia; mas acabei por ter a verdadeira revelacao por ocasiao de um incidente curioso, mas que mais tarde me pareceu significativo. Perguntou-me um dia, de uma maneira inesperada:
— Gostavas de fazer alguma coisa por nos?
— “Nos”, quem?
— Pelo nosso grupo. Por exemplo, ajudar-nos a fazer propaganda.
Estava sempre a espreita de tudo o que me pudesse aproximar dele e reforcar a nossa ligacao. Respondi- lhe sinceramente:
— Com certeza! Diz-me o que devo fazer que eu o farei.
— Nao tens medo?
— Medo de que? Desde que tu o fazes tambem…
— Sim — disse —, mas primeiro e preciso que te explique de que se trata. Precisas de conhecer as ideias pelas quais te expoes e te arriscas.
— Esta bem! Explica-me!
— Mas nao te interessam.
— Porque? Primeiro interessam-me com certeza; alem disso, tudo o que fazes me interessa, quanto mais nao seja por tu o fazeres.
Olhou-me. Bruscamente, de uma maneira inesperada, os olhos iluminaram-se-lhe e a cara animou-se- lhe.
— Esta bem — disse. — Hoje e muito tarde… mas amanha explico-te tudo… de viva voz porque os livros aborrecem-te. Mas ja sabes que precisaras de me escutar, mesmo que te pareca nao estares a compreender- me.
— Farei o possivel por compreender — disse-lhe.
— Tens de compreender — disse como se falasse consigo proprio.
Foi-se embora.
No dia seguinte esperei-o mas nao veio. Voltou dois dias depois. Uma vez no quarto, sentou-se, sem dizer palavra, aos pes da cama:
— Entao — disse eu alegremente —, estou pronta. Sou toda ouvidos!
Notara a sua cara abatida, os olhos morticos; toda a sua atitude era de abatimento: mas fingi nao perceber. Acabou por me responder:
— E inutil ouvires, porque nada tenho para te dizer.
— Porque?
— Porque nao!
— Diz-me a verdade — protestei. — Julgas-me muito estupida ou muito ignorante para compreender certas coisas? Agradeco-te.
— Nao — respondeu gravemente. — Enganas-te.