— Entao porque?

Continuamos durante algum tempo, eu a insistir para saber e ele a defender-se. Acabou por me dizer:

— Queres saber porque? Porque eu proprio, hoje, ja nao te poderia expor estas ideias.

— Mas como, se pensas nisso continuamente?

— E verdade; mas depois daquela noite, e sabe Deus por quanto tempo ainda, estas ideias ja nao estao claras no meu espirito; ja nada percebo disso.

— Entao!

— Procura compreender-me — disse. — Ha dois dias, quando te propus trabalhar para nos, se te tivesse exposto logo estas ideias estou certo de que nao so o teria feito com vigor, clareza e conviccao, mas tu as terias compreendido. Hoje, pelo contrario, poderia mexer os labios e a lingua para pronunciar palavras, mas fa-lo-ia mecanicamente, sem qualquer participacao. Hoje — concluiu — ja nada compreendo.

— Nada compreendes?

— Nao, nada mais compreendo; ideias, conceitos, factos, recordacoes, conviccoes, tudo se transformou para mim numa especie de burburinho… este burburinho enche-me a cabeca, a cabeca toda (batia com os nos dos dedos na testa…) e desagrada-me como se fossem excrementos!

Eu olhava-o sem compreender. Um fremito de desespero parecia percorrer-lhe o corpo.

— Tenta compreender-me — repetia. — Hoje nao sao as ideias, mas todas as coisas escritas, ditas ou pensadas sao incompreensiveis para mim… absurdo. Por exemplo, sabes o Pai Nosso?

— Sei.

— Pois bem, di-lo.

— Pai Nosso que estais no ceu. — comecei.

— Chega! — interrompeu-me. — Agora reflecte sobre a quantidade de maneiras como se escreveu esta oracao no decurso dos seculos e na variedade de sentimentos que levou a dize-la. Pois bem! Eu de nenhuma maneira a compreendo… Poderias recita-la de tras para diante que para mim seria a mesma coisa.

Calou-se, depois continuou:

— Nao sao so as palavras que me fazem este efeito, mas tambem as coisas e as pessoas. Tu estas ao meu lado, sentada no braco do sofa; julgas talvez que eu te vejo? Nao te vejo porque nao te compreendo. Posso tocar-te, nao te compreenderia melhor. Ves, eu toco-te — sacudiu o meu penteador e descobriu-me o peito —, apalpo-te o seio, sinto-lhe a forma, a tepidez, o contorno; vejo-lhe a cor, o relevo… mas nao compreendo o que e. Digo a mim proprio: e um objecto redondo, quente e mole… que serve para amamentar… que se sente prazer quando se acaricia… mas nao compreendo o que e… Digo a mim mesmo que e belo, que me deveria inspirar desejo, mas isso nao me impede de nada compreender. Entendes agora? — repetiu, furioso, apertando-me o seio de tal maneira que nao pude impedir um grito de dor.

Largou-me logo e fez notar passado um instante, tendo o ar de reflectir:

— E provavel que seja este genero de incompreensao que arrasta tanta gente a crueldade. Eles procuram encontrar o contacto com a realidade atraves da dor alheia.

Houve um momento de silencio, depois eu disse:

— Se isso e verdade, entao como te arranjas quando tens de fazer certas coisas?

— Por exemplo?

— Nao sei. Tu dizes que distribuis os panfletos, que tu mesmo os rediges. Se nao acreditas, como os rediges e distribuis?

Deu uma gargalhada sarcastica:

— Faco-o como se acreditasse — disse.

— Mas e impossivel!

— Como e impossivel? Quase toda a gente faz assim. Salvo comer, beber, dormir ou amar, quase todos fazem as coisas como se acreditassem nelas… Ainda nao tinhas dado por isso?

Ria nervosamente.

— Eu nao — respondi.

— Tu nao — respondeu-me de uma maneira quase ofensiva —, precisamente porque te limitas a comer, beber, dormir e amar de cada vez que te apetece. Para todas essas coisas nao parece que seja necessario simular. E muito, mas tambem e pouco!

Ria. Deu-me bruscamente uma grande palmada na nadega, depois tomou-me nos bracos, como fazia muitas vezes, pelo prazer de me apertar e de me sacudir, repetindo sem parar :

— Tu nao sabes que o nosso mundo e o mundo do “Porque sim”? Tu nao sabes que neste mundo, desde o rei ao mendigo, toda a gente se comporta “Porque sim”? O mundo do “Porque sim”, do “Porque sim”, do “Porque sim”!

Deixei-o fazer porque sabia que nesses momentos mais valia nao protestar, mas esperar que isto lhe passasse. Acabei por lhe dizer com certa firmeza:

— Amo-te. E a unica coisa que sei e isso basta-me.

Acalmou-se de repente e respondeu-me simplesmente:

— Tens razao.

A noite chegou sem que tornassemos a falar nem em politica nem na sua capacidade.

Uma vez so, depois de muito reflectir, conclui ser possivel que as coisas fossem como ele dizia; mas que era mais que certo que nao me tornaria a falar em politica por pensar que nao a compreenderia e por recear que o comprometesse com qualquer indiscricao. Nao que eu imaginasse que ele mentia; sabia, por experiencia propria, que pode acontecer a toda a gente ter dias em que o mundo inteiro parece voar em estilhas, em que, como ele dizia, nada se compreende, nem mesmo o Pai Nosso. Eu tambem, quando tinha algum dissabor, chegava a sentir a mesma impressao de aborrecimento, de desagrado e de prostracao. Mas, evidentemente, devia haver outro motivo para que me recusasse a participar na sua vida mais secreta: a falta de confianca, como ja disse, tanto na minha inteligencia como na minha discricao. Com o tempo compreendi, demasiadamente tarde, que me enganava e que ou fosse por inexperiencia da idade ou por fraqueza de caracter, estes estados morbidos tomavam uma importancia particular para ele.

Nesse momento pensava que nao o devia importunar com a minha curiosidade. E foi o que fiz.

8

Nao sei porque, lembro-me muito bem do tempo que estava naqueles dias. Fevereiro, que tinha sido frio e chuvoso, acabara; com Marco haviam chegado os primeiros dias calmos. Uma rede cerrada de finas nuvens brancas velava inteiramente o ceu, ferindo os olhos quando se saia de casa para a rua. O ar era doce mas ainda dorido dos friores do Inverno. Eu caminhava com prazer e alheamento neste ar seco, magoado e sonolento. De vez em quando chegava a retardar o passo e fechar os olhos ou parar a contemplar as coisas mais insignificantes: um gato branco e preto que alisava o pelo no vao de uma porta, um ramo de loureiro caido, cortado pelo vento, um tufo de erva entre as pedras do passeio. O musgo que a chuva dos meses anteriores deixara nos rebordos das casas inspirava-me uma grande tranquilidade e confianca. Pensava que se este belo veludo cor de esmeralda podia viver numa tao fina camada de terra, a minha vida — que nao tinha raizes mais profundas e se contentava em vegetar e se sustentar com tao pouco alimento, verdadeiro bolor, ela tambem ao pe de uma ruina — tinha alguma probabilidade de continuar a florir.

Estava convencida de que todas as desagradaveis aventuras dos ultimos tempos tinham acabado definitivamente, que nao tornaria a ver Sonzogne nem ouviria mais falar dos seus crimes, e que de futuro poderia gozar em paz a minha ligacao com Jaime. Esta ideia dava-me a impressao de sentir pela primeira vez o verdadeiro sabor da vida, feito de um doce tedio, de esperanca e de disponibilidade.

Comecava mesmo a entrever a possibilidade de mudar de existencia. No fundo, o meu amor por Jaime desinteressava-me dos outros homens, de maneira que os meus encontros ocasionais tinham perdido ate o aguilhao da curiosidade e da sensualidade. Mas eu pensava ser inutil tentar modificar-nos e que eu nao mudaria senao quando, sem choques nem violencias, pela propria ordem natural das coisas, criasse habitos, sentimentos e interesses novos.

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