A historia de Sonzogne tinha-o tocado muito, nao sei porque.
— Que horror! — gritei. — E um monstro! Tu querias ser um monstro?
— Naturalmente que nao queria ser em tudo como Sonzogne — explicou com calma. — Se falo em Sonzogne e so para tornar mais clara a minha maneira de pensar. Seja ele como for, Sonzogne e feito para viver neste mundo e eu nao.
— Queres saber — disse-lhe eu entao — o que gostaria eu de ser?
— Vejamos.
— Quereria ser — disse-lhe lentamente saboreando cada uma das minhas palavras como se elas fossem um sonho ha muito acariciado — exactamente o que tu es e o que tanto te desgosta ser… Gostaria de ter nascido de uma familia rica como a tua, que me tivesse dado uma boa educacao… gostaria de viver numa casa asseada e bonita como a tua… Gostaria de ter tido, como tu, bons professores, preceptores estrangeiros… Gostaria de, como tu, passar o Verao na praia ou na montanha… ter bonitas roupas, ser convidada, receber… E depois gostaria de me casar com alguem que me amasse, um bom rapaz que trabalhasse e tivesse tido tambem ele uma vida abastada… Gostaria de viver com ele e dar-lhe filhos.
Falavamos estendidos na cama. De repente saltou para cima de mim e comecou a apertar-me e a beliscar-me, dizendo muitas vezes :
— Hip! Hip! Hurra! Em suma, tu querias ser como a Sr.a Lobianco?
— Quem e a Sr.a Lobianco? — perguntei-lhe, um pouco magoada e desconcertada.
— Uma pavorosa ave de rapina que me convida com frequencia para as suas recepcoes com a esperanca de que eu me apaixone por uma das suas horriveis filhas e case com ela, porque eu sou aquilo a que vulgarmente se chama um bom partido.
— Mas eu nao quereria ser de modo algum como a Sr.a Lobianco.
— Tu serias forcosamente como ela se tivesses tido todas as coisas que disseste! Ela tambem, a Sr.a Lobianco, nasceu de uma familia rica, que lhe deu uma excelente educacao, com bons professores e preceptores estrangeiros, que a mandaram para o liceu e ate mesmo, creio eu, para a Universidade. Ela tambem cresceu numa casa bonita e asseada… Ia para a praia ou para a montanha quando chegava o Verao… Teve bonitos vestidos, foi convidada e fez convites… muitos convites e muitas recepcoes… Tambem ela se casou com um bom homem, o engenheiro Lobianco, que e um trabalhador e que “cavou” bastante dinheiro para a casa… Enfim, ela teve desse marido, ao qual vou ate ao ponto de acreditar que foi fiel, um bom numero de filhos, tres raparigas e um rapaz precisamente… E e nem mais nem menos como acabo de te dizer, uma pavorosa ave de rapina!
— Mas talvez seja uma ave de rapina… independentemente do seu meio.
— Nao, ela e assim como o sao as suas amigas e as amigas das suas amigas.
— E possivel — disse-lhe eu experimentando desembaracar-me do seu sarcastico abraco —, cada um tem o seu caracter. E possivel que a Sr.a Lobianco seja como dizes… mas eu tenho a certeza de que na sua situacao teria sido muito, muito superior ao que sou.
— Nao serias menos horrivel do que a Sr.a Lobianco.
— Porque?
— Porque sim!
— Vejamos!… A tua familia tambem te parece horrivel?
— Sem duvida nenhuma! Absolutamente horrivel!
— Entao tu tambem es horrivel?
— Sou-o dentro de todos os elementos que me ficaram da minha familia.
— Mas porque? Diz-me porque.
— Porque sim!
— Isso nao e uma resposta.
— E a resposta que te daria a Sr.a Lobianco se lhe fizesses certas perguntas.
— Que perguntas?
— E inutil que tas diga — respondeu em tom leve. Para as perguntas que nos podem embaracar um bom “porque sim” pronunciado com conviccao fecha a boca ao mais curioso. “Porque sim…” Sem razao nenhuma… “Porque sim!”
— Nao compreendo.
— Que importa que nos nos nao compreendamos se nos amamos mesmo assim, nao e? — concluiu beijando-me com a sua habitual ironia, isenta de amor.
E foi assim que acabou a discussao. Da mesma maneira que ele nunca se abandonava por completo a um sentimento, parecendo guardar sempre uma parte para ele, talvez a mais importante, de modo a tirar todo o valor aos seus raros gestos de afecto, igualmente ele nunca abria inteiramente o seu espirito e de cada vez que eu julgava chegar ao centro da sua inteligencia, de uma brincadeira, de um gesto comico, repudiava-me e furtava-se a minha atencao. Era fugidio em todo o sentido da palavra. Tratava-me como a um ser inferior, uma especie de objecto de estudo e de experiencia. Mas talvez mesmo por isso eu o amava de uma maneira tao submissa e indefesa. Alias, parecia-me por vezes que nao odiava somente a familia e o seu meio, mas realmente todos os homens. Disse-me um dia, nao sei ja a que proposito:
— Os ricos sao horriveis… mas, se bem que por motivos diferentes, os pobres nao valem por certo muito mais!
— Seria mais facil — disse-lhe eu — dizeres francamente que detestas todos os homens.
Pos-se a rir e respondeu:
— Quando nao estou no meio deles nao os detesto… detesto-os tao pouco que acredito na possibilidade de eles melhorarem. Se nao acreditasse nao me ocuparia de politica. Mas quando me encontro com eles, fazem-me horror… Realmente os homens nada valem — acrescentou de repente com tristeza.
— Nos tambem somos homens — disse-lhe —, por conseguinte nada valemos. Nao temos, portanto, o direito de julgar.
Riu-se de novo e acrescentou:
— Nao os julgo, sinto-os, ou, melhor, farejo-os como um cao o rasto de uma perdiz ou de uma lebre… O cao julga? Nao… Eu farejo-os como maus, estupidos, egoistas, mesquinhos, vulgares, falsos, ignobeis, cheios de ideias sujas… um sentimento… Nao se pode abolir um sentimento, pois nao?
Nao sabia que responder. Limitei-me a observar:
— Eu nao tenho esse sentimento.
De uma outra vez declarou-me:
— De resto, nao sei se os homens sao bons ou maus, mas sao com certeza inuteis, superfluos!
— Que queres dizer?
— Quero dizer que podia muito bem passar-se sem a humanidade inteira… Ela nao e mais que uma ruim excrescencia sobre a face do mundo… uma verruga. O mundo seria muito mais belo sem os homens, as suas cidades, as suas ruas, os seus portos, os seus arranjinhos. Pensa em como o mundo seria belo se so existisse o ceu, o mar, as arvores, a terra, os animais.
Nao pude deixar de rir e gritei:
— Que ideias esquisitas tu tens!
— A humanidade — continuou ele — e uma coisa sem pes nem cabeca e portanto negativa… A historia da humanidade nao e mais que um longo bocejo de aborrecimento… Que falta faz? Por mim passaria bem sem ela.
— Mas tambem tu fazes parte desta humanidade. Entao gostarias de nao existir?
— Eu sobretudo!
Uma outra das suas ideias fixas, ainda mais singular porque nao tentava po-la em pratica e nao servia senao para estragar-lhe o prazer, era o da castidade. Elogiava-a sempre, mas principalmente como se fosse para me arreliar, logo a seguir a termo-nos amado. Dizia que o amor era a forma mais facil e idiota de nos livrarmos de todos os problemas, resolvendo-os as escondidas, sem que ninguem desse por isso, como se manda sair um hospede embaracoso pela porta de servico.
— Em seguida — declarava —, feita a operacao, vai-se passear com a cumplice, mulher ou amante, maravilhosamente dispostos a aceitar o mundo tal qual e… nem que fosse o pior mundo possivel.
— Nao te compreendo — disse-lhe.
— No entanto — respondeu-me — isto pelo menos devias compreender; nao e a tua especialidade?