Deitei a cabeca para tras e fechei os olhos: o cheiro do po e do velho pelo do tapete pareceu-me embriagador e bom como se estivesse deitada num prado na Primavera e como se este cheiro fosse das flores, das ervas, e nao o da la suja. Jaime estava em cima da mim, e o seu peso fazia-me sentir a deliciosa dureza do chao; estava contente por nao ser ele a senti-la e que o meu corpo lhe servisse de leito.

Depois beijou-me no pescoco, nas faces, e senti uma grande alegria com isso porque ele nunca o fazia. Abri os olhos, tinha a cara virada de lado, a face contra a la aspera do tapete; vi para la do tapete uma vasta extensao de mosaico encerado, depois, la ao fundo, a parte inferior dos batentes da porta. Suspirei profundamente e tornei a fechar os olhos. O primeiro a levantar-se foi Jaime; eu fiquei um grande bocado como ele me deixara, deitada de costas, um braco em cima da cara, as saias levantadas, uma perna para a direita, outra para a esquerda. Sentia-me feliz e como que aniquilada pela minha felicidade; sentia que poderia ficar muito tempo assim, com esta agradavel dureza do chao debaixo das costas, este cheiro a tapete e a po nas narinas. Talvez mesmo tivesse dormido um bocadinho, um sono extasiado e leve; julguei sonhar que estava realmente num prado florido, estendida na erva, e que nao era a mesa, mas um ceu inundado de sol, que tinha sobre a minha cabeca. Jaime julgou com certeza que me sentia mal, porque de repente percebi que me sacudia e me dizia em voz baixa:

— Mas que tens? Que fazes? Depressa! Levanta-te! Tirei o braco da cara, sai lentamente de debaixo da mesa e pus-me de pe! Estava feliz e sorri. Jaime, encostado a parede, curvado, ainda ofegante, olhava-me em silencio com uma expressao longinqua e hostil.

— Nunca mais te quero ver! — acabou por dizer. Ao mesmo tempo o seu corpo curvado deu um esticao, como um fantoche a quem tivessem partido as molas.

Respondi sorrindo :

— Porque? Amamo-nos… ver-nos-emos!

Aproximei-me e fiz-lhe uma festa na cara. Mas virou o rosto, palido e perturbado, repetindo:

— Nunca mais te quero ver!

Sabia que esta hostilidade era sobretudo devida ao desgosto de ter cedido. Nunca se resignava a amar-me sem muita resistencia e muito remorso, como um homem que se resolve a fazer uma coisa que nao quer e sabe que nao deve fazer. Mas estava certa de que o seu mau humor nao duraria muito tempo e que o desejo que sentia por mim, por muito que o combatesse e o detestasse, seria mais forte, por fim, do que a sua estranha aspiracao a castidade. Nao liguei importancia as suas palavras. Lembrando-me da gravata que acabara de lhe comprar, aproximei-me do movel onde deixara a mala e as luvas e disse-lhe:

— Va, nao estejas zangado comigo… nao voltarei aqui… Estas contente?

Continuou calado. Ao mesmo tempo a porta abriu-se e, uma velha criada de quarto mandou entrar dois homens. O primeiro disse em voz baixa mas grossa:

— Viva, Jaime.

Compreendi que estes deviam ser os camaradas do partido e olhei-os com curiosidade. O que falara era um autentico colosso; mais alto que Jaime, de ombros largos e com aspecto de boxeur profissional. Era louro, de olhos azul-esverdeados, nariz adunco, boca vermelha e informe. Mas a sua cara tinha uma expressao franca que me agradou, com uma simpatica mistura de timidez e de simplicidade. Se bem que estivessemos no Inverno, nao trazia sobretudo e apenas usava debaixo do casaco uma grossa camisola branca de gola alta, de acordo com o seu aspecto desportivo. Admiraram-me as suas maos vermelhas e os fortes pulsos que saiam das mangas. Devia ser extremamente novo, talvez tivesse a mesma idade de Jaime. O segundo parecia, pelo contrario, um quarentao, e em vez de ter ar de trabalhador ou de campones parecia um homem da burguesia. Nao era alto e parecia minusculo ao lado do seu camarada. Era um homenzinho escuro, com a cara sumida debaixo de uns grossos oculos. Tinha um nariz largo, e debaixo desse nariz uma boca que ia de orelha a orelha. As faces magras, escurecidas pela barba, o colarinho esfiado, o fato deformado e com nodoas, dentro do qual o seu pequeno corpo nadava, tudo nele tinha um ar de negligencia agressiva e de miseria. Para dizer a verdade o aspecto destes dois homens espantava-me, porque Jaime andava sempre vestido com uma certa elegancia, sem requinte, alias, e traia, por muitos indicios, uma classe diferente da deles. Se nao tivesse ouvido esta gente dar os bons-dias a Jaime e ele corresponder ao cumprimento, nunca teria imaginado que pudessem ser amigos. Instintivamente senti logo simpatia pelo grande e antipatia pelo pequeno. O grande perguntou com um sorriso aborrecido:

— Viemos talvez muito cedo?

— Nao, nao! — respondeu Jaime.

Parecia aturdido e nao se recompunha facilmente.

— Voces foram pontuais.

— A pontualidade e a virtude dos reis — disse-lhe o baixo, esfregando as maos.

E bruscamente, de uma maneira imprevista, como se esta frase fosse extremamente comica, desatou a rir. Depois, com a mesma rapidez desagradavel, tornou-se serio outra vez e eu perguntava a mim propria se ele de facto rira ou nao.

— Adriana — disse Jaime com esforco —, apresento-te dois amigos meus: Tulio e Tomas.

Reparei que nao pronunciou os apelidos e supus nao serem os seus verdadeiros nomes. Estendi-lhes a mao, sorrindo. O grande deu-me um aperto de mao que me adormeceu os dedos, o pequeno humedeceu-mos de suor com a sua gorda manapula. O mais baixo disse-me: “Encantado!”, com uma enfase que me pareceu comica. O alto disse: “Muito prazer!” com simplicidade e, pareceu-me tambem, com simpatia. Notei que a sua voz tinha um ligeiro sotaque.

Olhamo-nos um momento em silencio.

— Se queres, Jaime, se tens que fazer — disse o grande —, podemo-nos ir embora, voltaremos amanha.

Vi Jaime estremecer e olha-lo; compreendi que lhes ia dizer que ficassem e convidar-me a sair. Agora conhecia-o o suficiente para saber que a sua conduta nao podia ser outra. Lembrei-me de que me tinha entregue a ele havia poucos minutos; tinha ainda no pescoco a sensacao dos seus labios ao beijarem-me; na carne, a das suas maos, que me tinham abracado. O que se revoltou em mim nao foi a alma, sempre pronta a ceder e a resignar-se; foi o meu corpo, indignado por ver tratar assim a sua beleza e a sua dadiva. Dei um passo em frente e disse com violencia:

— Sim, e melhor que se vao embora e que voltem amanha… Tenho ainda muitas coisas a dizer a Jaime.

O meu amante observou-me com ar desagradavelmente surpreendido:

— Mas eu preciso de lhes falar.

— Falar-lhes-as amanha.

— Bem! — disse Tomas com ar bonacheirao. — Decidam-se. Se querem que fiquemos, digam-no; se querem que nos vamos embora…

— Por nos e o que nos apetece fazer! — acrescentou Tulio com o mesmo riso desagradavel.

Jaime ainda hesitou. De novo o meu corpo, mesmo contra vontade, teve um impulso desagradavel.

— Oucam — disse levantando a voz. — Apenas ha alguns minutos Jaime e eu possuimo-nos aqui, no chao, sobre este tapete… Voces em seu lugar, que fariam? Mandavam-me embora?

Tive a impressao de que Jaime corava. De qualquer maneira perdera a seguranca, voltou-nos as costas e aproximou-se da janela. Tomas olhou-me de soslaio, depois disse a sorrir :

— Compreendo. Nos retiramo-nos. Ate a vista, Jaime; amanha a mesma hora.

A Tulio, pelo contrario, as minhas palavras pareceram te-lo perturbado. Fixou-me de boca aberta e os olhos franzidos. Com certeza nunca ouvira uma mulher falar com esta franqueza, e mil pensamentos sujos devem ter-lhe agitado o espirito. Mas o alto chamou-o da porta:

— Tulio… Vamos !

Entao, sem tirar da minha pessoa os olhos espantados, recuou ate a porta e saiu.

Esperei que desaparecessem para me aproximar de Jaime, que ficara junto da janela, de costas voltadas, e passar-lhe um braco a roda do pescoco:

— Aposto que neste momento nao me podes ver! Voltou-se lentamente e olhou-me. Havia colera no seu rosto; mas ao olhar o meu, que devia ter uma expressao doce, cheia de amor — ate mesmo inocente, a sua maneira —, o seu olhar mudou; perguntou-me num tom resignado, quase triste :

— Agora estas contente? Tens o que querias.

— Sim, estou contente! — disse-lhe, beijando-o com forca.

Вы читаете A Romana
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату