Sabia a morada de Jaime; em vinte minutos cheguei la. Mas no momento de entrar pensei que nao o tinha avisado e fui tomada de um acesso de timidez. Receava que me recebesse mal, que ate mesmo me pusesse na rua! Atrasei o passo impaciente, e com a alma cheia de tristeza parei em frente de uma montra pensando se nao seria melhor voltar pelo mesmo caminho e esperar que fosse ele a decidir-se ver-me. Compreendia que era preciso mostrar muita cautela e muita perspicacia, particularmente neste primeiro periodo das nossas relacoes, e nunca mostrar que estava presa a tal ponto que me era impossivel viver sem ele. Por outro lado parecia-me duro voltar para tras, agora que a minha confissao me deixara inquieta e que tinha necessidade de o ver, ate mesmo so para me distrair das minhas preocupacoes. Os meus olhos cairam sobre a montra da loja em frente da qual parara; era uma casa de camisas e gravatas; lembrei-me de repente de que lhe tinha prometido uma gravata nova para substituir a outra esfiada. Quando se esta apaixonado nao se raciocina; disse a mim mesma que a gravata podia servir de pretexto para o visitar, sem reparar que essa dadiva confirmava precisamente o caracter inferior e ansioso do meu sentimento por ele. Entrei na loja, e, depois de ter escolhido durante muito tempo, preferi uma gravata cinzenta com riscas vermelhas — a mais bonita e a mais cara. Com a cortesia um pouco indiscreta dos empregados que pretendem influenciar os clientes, o empregado perguntou-me se a pessoa a quem se destinava a gravata era loura ou morena. “E moreno”, respondi lentamente; reparei que disse a palavra “moreno” com um acento terno e senti-me corar a ideia de que o caixeiro pudesse ter notado este acento.
A viuva Medolaghi habitava o quarto andar de uma velha casa triste, com janelas que davam para o cais do Tibre. Subi os oito lancos de escada e toquei sem tomar folego a porta, mergulhada na sombra. A porta abriu-se quase em seguida e Jaime apareceu no limiar.
— Ah! Es tu? — disse, surpreendido. Era evidente que esperava alguem.
— Posso entrar?
— Sim, sim! Por aqui!
Atravessamos um vestibulo quase as escuras e ele fez-me entrar numa sala, que estava igualmente na penumbra porque as janelas tinham os vidros esguios como as das igrejas. Entrevi uma quantidade de moveis escuros com nacar incrustado. Ao meio havia uma mesa redonda com um licoreiro azul, de feitio fora de moda. Havia muitos tapetes e uma pele de urso branca um pouco gasta. Tudo era velho ali dentro, mas asseado, arrumado, como se estivesse conservado pelo profundo silencio que parecia reinar na casa desde tempos imemoraveis. Sentei-me num canape ao fundo da sala e perguntei a Jaime:
— Esperas alguem?
— Nao, mas porque vieste ca?
Eram na realidade palavras pouco acolhedoras. Nao parecia no entanto zangado, apenas surpreendido.
— Vim dizer-te adeus — respondi-lhe, sorrindo —, porque creio bem que e a ultima vez que nos vemos.
— Porque?
— Estou convencida de que amanha, o mais tardar, me vem buscar para me meterem na prisao.
— Na prisao? Que diabo fizeste tu?
Percebi na sua voz e na sua cara uma alteracao e compreendi que estava com medo por ele proprio. Talvez pensasse que o tinha denunciado ou comprometido de uma maneira ou de outra, revelando a alguem a sua actividade politica. Sorri ainda e continuei:
— Nao tenhas medo… nada disto te diz respeito… nem mesmo de longe.
— Nao, nao — apressou-se a dizer. — Mas nao compreendo e tudo. Na prisao? Porque?
— Fecha a porta e senta-te aqui — disse-lhe indicando um lugar ao meu lado, no canape.
Ele foi fechar a porta e sentou-se ao pe de mim. Entao, com muita calma, contei-lhe a verdadeira historia da caixa de po de arroz e a minha confissao. Ouvia-me de cabeca baixa, sem me olhar, roendo as unhas, o que nele era sintoma de estar interessado. Acabei por concluir:
— Estou certa de que este padre me fara passar um mau bocado… Que dizes?
Abanou a cabeca e respondeu-me, nao olhando na minha direccao mas na dos vidros da janela:
— Ele nao o deve fazer… estou mesmo certo de que o nao fara… Nao basta que um padre seja feio…
— Mas se tu o tivesses visto! — interrompi.
— … que seja monstruoso, se quiseres, para que faca uma coisa semelhante. Nao e menos verdade que tudo pode acontecer — acrescentou vivamente com um sorriso.
— Entao achas que nao devo ter medo?
— Acho… ate mesmo porque nada podes fazer… isso nao depende de ti!
— E bom de dizer! Tem-se medo porque se tem medo… e mais forte do que nos!
Teve de repente um gesto afectuoso, um dos seus gestos. Pos-me uma mao no pescoco, sacudiu-me rindo e dizendo:
— Tu nao tens medo, pois nao?
— Mas se te disse que tenho!
— Tu nao tens medo!Es uma mulher corajosa.
— Asseguro-te que tenho um medo horrivel; e tao verdade que me deitei e so me levantei dois dias depois.
— Sim… mas em seguida vieste ter comigo e contaste-me a coisa com a maior tranquilidade… Tu nao sabes o que e ter medo!
— E que posso eu fazer? — perguntei, sorrindo sem querer. — Nao posso comecar a gritar de medo!
— Tu nao tens medo!
Houve um momento de silencio. Depois perguntou-me com uma entoacao particular que me surpreendeu:
— E o teu amigo… chamemos-lhe assim, esse Sonzogne, que tipo tem?
— E um tipo como ha tantos — disse vagamente. Nesse momento nada encontrava para dizer de Sonzogne.
— Mas como e? Descreve-mo!
— Porque? Queres manda-lo prender? — disse-lhe rindo. Lembra-te de que me engavetavam tambem a mim. — Depois acrescentei: — E alourado… baixo… largo de ombros… com uma cara palida, olhos azuis… nada de especial, em suma. A unica coisa que ele tem de diferente e ser muito forte.
— Muito forte?
— Quando se ve nao se acredita. Mas se se lhe toca num braco, parece de ferro.
Como via que me escutava com interesse, contei-lhe o incidente passado com Gino e Sonzogne. Nao fez comentarios, mas quando acabei perguntou-me:
— E julgas que Sonzogne tenha premeditado o crime, quero dizer, que o tenha preparado e executado a frio?
— De maneira nenhuma! — disse-lhe. — Ele nunca premedita coisa alguma. Um momento antes de atirar Gino ao chao provavelmente nem pensava em faze-lo. Deve ter acontecido o mesmo com o ourives.
— Entao porque o fez?
— Sei la… porque e mais forte do que ele. Como um tigre… esta muito tranquilo e de repente atira-nos um pontape.
Contei-lhe toda a historia das minhas relacoes com Sonzogne, a maneira como me batera e como tinha tido com certeza a ideia de me matar quando estavamos as escuras. E conclui:
— Nunca pensa nisso… mas num certo momento e dominado por qualquer coisa mais forte do que a sua vontade e entao e melhor nao estar ao pe dele. Tenho a certeza de que foi procurar o ourives para lhe vender a caixa… O outro insultou-o e ele matou-o.
— Em suma, e uma especie de animal.
— Chama-lhe como quiseres. Isso deve ser — disse eu, procurando por a claro para mim propria o sentimento que me inspirava o furor homicida de Sonzogne — um impulso semelhante ao que me leva a amar-te. Porque gosto eu de ti? So Deus o sabe… Porque sente Sonzogne em certos momentos o impulso de matar? pela mesma razao. So Deus o sabe. Parece-me que neste caso nao ha qualquer explicacao.
Depois de reflectir, levantou a cabeca e perguntou-me:
— E eu, que impulso julgas que me leva para ti? Julgas que sinto um impulso amoroso?
Tive um medo horrivel de o ouvir dizer que nao me amava. Tapei-lhe a boca com a minha mao e