Deixou-se beijar, depois respondeu:
— Quais sao as coisas que tens para me dizer?
— Nada — respondi. — Tenho desejos de ficar contigo esta tarde.
— Mas eu — disse —, daqui a pouco vou jantar. Janto ca com a viuva Medolaghi.
— Bem! Convida-me para jantar.
Olhou-me e o meu a-vontade fe-lo sorrir, mas involuntariamente.
— Esta bem — disse com condescendencia. — Vou avisa-la… mas como queres que te apresente?
— Como quiseres… como uma parente.
— Nao… vou apresentar-te como minha noiva… esta bem?
Nao ousei mostrar-lhe ate que ponto a sua proposta me dava prazer. Afectei um ar indiferente e respondi:
— Pelo que me diz respeito… noiva ou outra coisa, tanto faz… contanto que fiquemos juntos.
— Espera, volto ja.
Saiu. Fui a um canto da sala, arranjei-me, ajustei rapidamente a combinacao, toda torcida pelo amor e pela chegada inopinada dos amigos de Jaime. Num espelho colocado na minha frente vi a minha perna longa e perfeita calcada de seda e fez-me um curioso efeito no meio de todos estes velhos moveis, com ar silencioso e fechado. Lembrei-me do dia em que estivera com Gino na casa da patroa dele e de onde trouxera a caixa de po de arroz, e nao pude deixar de comparar esse momento da minha vida, agora tao longinquo, com o instante presente. Naquela altura experimentara uma impressao de vazio e de amargura e o desejo de me vingar, senao de Gino, pelo menos do mundo que por intermedio de Gino tao cruelmente me ofendera. Agora, pelo contrario, sentia-me contente, livre, leve. Compreendi mais uma vez que amava verdadeiramente Jaime e que pouco me importava nao ser amada por ele.
Sacudi o vestido, aproximei-me do espelho e arranjei o cabelo. A porta abriu-se nas minhas costas e Jaime entrou.
Esperava que me abracasse enquanto me olhava ao espelho. Mas foi sentar-se no canape, no fundo da sala, acendeu um cigarro e disse:
— Pronto, ja esta. Vao por mais um talher. Daqui a pouco vamos para a mesa.
Afastei-me do espelho e vim sentar-me ao seu lado, enfiei o meu braco no dele e apertei-o contra mim.
— Estes dois homens — disse — sao amigos politicos, nao sao?
— Sao.
— Nao devem ser muito ricos.
— Porque?
— A julgar pela maneira como estao enfarpelados.
— Tomas e filho de um dos nossos caseiros — disse-me. O outro e um professor.
— Nao simpatizo com ele.
— Com quem?
— Com o professor. E porco. Olhou-me de uma tal maneira quando eu disse que acabara de ter estado contigo…
— Quer dizer que lhe agradaste.
Calamo-nos durante algum tempo. Depois eu disse:
— Tens vergonha de me apresentar como tua noiva. Se queres vou-me embora.
Sabia que era a unica maneira de lhe arrancar um gesto afectuoso: picar o seu amor-proprio, acusando-o de se envergonhar de mim. Com efeito, passou-me logo o braco em torno da cintura e disse-me:
— Fui eu quem teve a ideia: porque havia de me envergonhar de ti?
— Nao sei… Vejo que estas mal disposto.
— Nao estou mal disposto; estou aturdido — respondeu-me num tom serio. — Foi por nos termos amado. Deixa recompor-me.
Reparei que ainda estava muito palido e parecia fumar com aborrecimento.
— Tens razao — disse-lhe. — Desculpa. Mas tu es sempre tao frio, tao distante, que me fazes perder a cabeca… Se nao fosses assim, ha pouco nao tinha insistido para ficar.
Apagou o cigarro e disse-me:
— Nao e verdade que eu seja frio e distante.
— E no entanto…
— Agradas-me muito — continuou, olhando-me com atencao. — E, com efeito, ha um instante nao te resisti como teria desejado.
Esta frase agradou-me e baixei os olhos sem pronunciar palavra. Ele acrescentou:
— Contudo, suponho que no fundo tens razao… nao se pode chamar amor a isto.
Apertou-se-me o coracao e nao pude deixar de murmurar:
— Que e para ti o amor?
— Se eu te amasse — respondeu-me —, ha pouco nao teria desejado que te fosses embora… e depois nao me teria zangado quando tu decidiste ficar.
— Zangaste-te?
— Sim… e agora conversaria contigo, estaria alegre, desenvolto e brincalhao. Estaria a acariciar-te, a dizer-te madrigais, a fazer projectos para o futuro… beijar-te-ia. Nao e isto o amor?
— Sim — disse eu em voz baixa. — Em todo o caso, sao esses os efeitos do amor.
Nao falou durante algum tempo, depois disse sem nenhuma vaidade, com uma seca humildade:
— Eu faco tudo da mesma maneira, sem nada sentir no coracao… sem amar coisa nenhuma, sabendo somente pelo espirito como se fazem as coisas. Por vezes mesmo faco-as a frio, exteriormente. Sou assim e creio que nao posso mudar.
Fiz um grande esforco sobre mim e respondi-lhe:
— Amo-te como es; nao te atormentes!
Depois beijei-o com grande amor. Quase no mesmo instante, a porta abriu-se. Uma velha criada veio dizer que o jantar estava servido.
Saimos da sala e passamos por um corredor para ir para a casa de jantar. Lembro-me bem de todos os pormenores desta casa e das pessoas, porque naquele momento estava sensivel como uma chapa fotografica. Nao tinha tanto a impressao de agir como a de me ver agir com os olhos tristes e bem abertos. Tal e talvez o efeito da revolta que nos inspira uma realidade na qual sofremos e que desejariamos diferente.
A viuva Medolaghi pareceu-me parecida, nao sei porque, com o seu salao de ebano com incrustacoes de nacar. Era uma mulher gorda, de estatura imponente, com peito volumoso e ancas macicas. Toda vestida de seda preta, com um largo rosto desfeito, de uma palidez nacarada, precisamente enquadrada por cabelos pretos que pareciam pintados, com fundas olheiras em torno dos olhos. Ficou de pe em frente de uma terrina decorada com flores e servia a sopa com uma especie de aborrecimento. O candeeiro de suspensao descia sobre a mesa, iluminava-lhe o peito como um grosso embrulho preto e luzidio e deixava-lhe a cara na sombra. Nesta sombra os seus olhos rodeados de rugas pretas pareciam esburacar a cara branca como uma mascarilha de Carnaval. A mesa nao era grande e tinha quatro pratos; um par de cada lado. A filha da senhora estava ja sentada no seu lugar e nao se levantou quando nos viu entrar.
— A menina senta-se ali — disse a viuva Medolaghi. — Como se chama a menina?
— Adriana.
— Tem graca, como a minha filha! — disse negligentemente. — Temos duas Adrianas!
Falava com ar distante sem nos olhar; era claro que a minha presenca nenhum prazer lhe dava. Como ja disse, pintava-me pouco e nao oxigenava os cabelos, em suma, nao traia o meu “trabalho” por qualquer sinal exterior. Mas que eu era rapariga do povo, simples e sem educacao, isso via-se com certeza e eu nenhum interesse tinha em o dissimular.
“Que estranha gente traz para a minha casa!”, devia pensar a Sr.a Medolaghi. “Uma rapariga do povo!” Sentei-me e observei a rapariga que tinha o meu nome. Era por metade do meu tamanho, como da minha cabeca, como do meu peito… por metade em tudo. Magra, pouco cabelo, uma cara oval e fina com grandes olhos morticos, uma expressao estupefacta. Olhei-a e vi-a baixar os olhos. Pensei que fosse timida e disse para quebrar o gelo: