— Sabe que acho curioso que outra pessoa tao diferente de mim tenha o meu nome?
Tinha dito qualquer coisa, so para meter conversa e a minha frase era parva. Mas, com grande surpresa, nao recebi resposta. A rapariga fixou em mim os seus olhos esbugalhados e depois, sem dizer nada, curvou a cabeca sobre o prato e comecou a comer. Entao bruscamente fez-se luz no meu espirito: ela nao era timida, mas estava aterrada. E a causa do seu terror era eu. Estava aterrada com a minha beleza, que brilhava no ar parado e poeirento da sua casa como uma rosa numa teia de aranha, pela minha exuberancia impossivel de passar despercebida mesmo quando eu estava calada e quieta, e sobretudo pela minha origem popular. Os ricos nao gostam dos pobres, mas nao os temem; sabem mante-los a distancia com orgulho e suficiencia. Mas o pobre ao qual a sua origem ou a sua educacao dao uma alma de rico fica literalmente aterrado por ver o pobre em carne e osso, como um homem predisposto a uma doenca em frente de alguem que esta atacado desse mesmo mal. Ricas, as duas Medolaghi nao eram com certeza, porque senao nao alugariam quartos. Como se sentiam pobres sem o admitirem, a minha presenca de pobre desprovida de qualquer artificio parecia-lhes um insulto e um perigo. Deus sabe as ideias que passaram pela cabeca da rapariga quando lhe falei: “Olha aquela a dirigir-me a palavra; quer tornar-se minha amiga e nunca mais me verei livre dela!” Com um simples olhar compreendi o que se passou e decidi nao abrir mais a boca ate ao fim do jantar.
Mas a mae, que tinha mais a-vontade e talvez mais curiosidade, nao quis renunciar a conversa:
— Nao sabia que estava noivo — disse ela a Jaime. — Ha quanto tempo?
Tinha uma voz afectada e parecia falar por detras do seu enorme peito como se estivesse ao abrigo de uma trincheira.
— Ha um mes — disse Jaime.
Era verdade; nao remontava a mais de um mes o nosso conhecimento.
— A menina e romana?
— Ultra-romana. Sete geracoes.
— E quando se casam?
— Depressa. Logo que a casa para onde vamos morar esteja livre.
— Ah! Ja tem casa?
— Sim… uma casinha com jardim… um patio… muito bonita.
O que ele descrevia com aquele tom sardonico era a moradia que eu lhe havia mostrado, ao pe da minha casa, na avenida.
— Se esperarmos por aquela casa — disse eu com esforco —, receio nunca mais casarmos!
— Ora, historias! — disse Jaime, que parecia recomposto, ate mesmo com o rosto mais corado. — Sabes bem que estara livre no dia marcado.
Nao gosto de intrujices. Por isso nada mais disse. A criada mudou os pratos.
— As moradias tem muitas comodidades, Sr. Diodatti — disse a Sr.a Medolaghi —, mas nao sao praticas; exigem muito criados.
— Porque? — perguntou Jaime. — Nao sera necessario; a Adriana sera a cozinheira, a criada de quarto, a governanta… Nao e, Adriana?
A Sr.a Medolaghi mediu-me com o olhar e declarou:
— Para dizer a verdade uma senhora tem outras coisas para fazer que nao seja ocupar-se da cozinha, limpar os quartos e fazer as camas… mas se a menina Adriana esta habituada a faze-lo… entao nesse caso…
Nao acabou a frase e voltou os olhos para o prato que a criada lhe apresentava.
— Nao sabiamos que vinha; senao teriamos acrescentado dois outros ovos.
Estava ofendida com Jaime e com a Sr.a Medolaghi. Quase desejava responder-lhe: “Nao, o que eu estou habituada e a ser prostituta.” Jaime, radiante, servia-se e servia-me generosamente de vinho. (Os olhos da Sr.a Medolaghi seguiam a garrafa com inquietacao.) Depois continuou:
— Mas a Adriana nao e uma senhora. Ela nunca sera uma senhora. A Adriana fez sempre as camas e arrumou os quartos. A Adriana e uma rapariga do povo.
A Sr.a Medolaghi olhou-me como se me visse pela primeira vez, depois confirmou com uma delicadeza injuriosa:
— Foi justamente o que eu disse… se ela esta habituada…
A filha inclinou a cabeca sobre o prato.
— Sim — continuou Jaime. — Ela esta habituada e nao serei eu com certeza que lhe farei perder habitos tao aproveitaveis. Adriana e filha de uma camiseira; e ela tambem e camiseira… nao e, Adriana?
Estendeu o braco sobre a mesa, agarrou-me a mao e virou-ma de costas para cima:
— Ela pinta as unhas, e verdade, mas a sua mao e a de uma operaria; grande, forte e simples. Como os cabelos… ela ondula-os, mas de facto sao rebeldes e duros.
Largou-me a mao e puxou-me os cabelos, como se faz a crina dos animais.
— Em suma, Adriana e em tudo e por tudo uma digna representante do nosso bom povo vigoroso e sao.
Sentia-se na sua voz um desafio sarcastico de que ninguem desconfiou. A filha olhava atraves da minha pessoa como se eu fosse transparente e ela quisesse ver um objecto que estivesse atras de mim. A mae ordenou a criada que mudasse os pratos e voltou-se para Jaime perguntando-lhe de uma maneira completamente inesperada:
— Entao, Sr. Diodatti, chegou a ver a tal comedia? Esta maneira tao desastrada de mudar de conversa quase me deu vontade de rir. Jaime nao pareceu desconcertado e declarou:
— Nem me fale nisso, uma verdadeira idiotice!
— Nos vamos amanha. Diz-se que os actores sao excelentes.
Jaime respondeu que, depois de tudo bem considerado, os actores nao eram tao bons como os jornais diziam. A senhora admirou-se de que os jornais mentissem. O meu amante respondeu, com calma, que os jornais eram uma pura e simples mentira da primeira a ultima linha. A partir desse momento a conversa decorreu sempre sobre esses assuntos. Logo que um destes temas convencionais era abordado, a Sr.a Medolaghi encetava outro com uma precipitacao mal dissimulada. Jaime, que parecia divertir-se, entrava no jogo e dava a replica sem se fazer rogado. Falavam de actores, depois da vida nocturna de Roma, de cafes, de cinemas, de teatros, de hoteis e de outras coisas parecidas. Pareciam dois jogadores de pingue-pongue atirando constantemente a mesma bola e fazendo por nao a deixar cair. Mas enquanto Jaime o fazia pelo amor a comedia, tao desenvolvida nele, o que levava a Sr.a Medolaghi a faze-lo era o medo e o aborrecimento que eu lhe inspirava, eu e tudo o que se me pudesse ligar. Esta conversa de pura formalidade, so convencional, parecia significar: “E a minha maneira de lhe dizer que e indecente casar com uma rapariga do povo e tambem indecente traze-la a casa da Sr.a Medolaghi, viuva de um alto funcionario.” A filha nao piava. Percebia-se que estava aterrada e desejava claramente que a refeicao terminasse e que eu me fosse embora o mais depressa possivel. Durante algum tempo diverti-me a seguir a conversa. Depois fatiguei-me desse jogo e deixei a tristeza que me enchia o coracao tomar inteiramente conta de mim. Compreendia com amarga clareza que Jaime nao me tinha amor, e apesar de tudo sofria com isso. Depois reparei que ele se servira das minhas confidencias para inventar a comedia do nosso noivado; nao chegava a compreender se o fizera na intencao de trocar de mim ou delas. Talvez de mim e delas ao mesmo tempo, mas seguramente dele proprio, como se no fundo do seu coracao acalentasse, como eu, o vivo desejo de uma vida normal e decente que, por motivos muito diferentes dos meus, pensava nunca poder vir a ter. Eu compreendia perfeitamente que os elogios que me fizera como filha do povo nada tinham de envaidecedor, quer para mim, quer para o povo; que a sua intencao fora tornar-se desagradavel as duas mulheres e nada mais. Estas observacoes faziam-me reconhecer a verdade do que ele dissera pouco antes: que o seu coracao nao era susceptivel de amar. Nunca como entao me foi dado compreender que qualquer coisa com amor e tudo e nada sem amor e qualquer coisa. O amor ou existe ou nao. Se existe, ama-se nao somente alguem, mas toda a gente; era o que me acontecia. Se nao existe, nada se ama, nem ninguem; era o seu caso. E a ausencia de amor conduz fatalmente a incapacidade e a impotencia.
A mesa fora entretanto levantada. Em cima da toalha cheia de migalhas, no clarao arredondado da luz que caia do candeeiro, havia quatro pequenas chavenas de cafe, um cinzeiro de barro em forma de tulipa e uma grande mao branca, cheia de manchas escuras, com os dedos carregados de grossos aneis fora de moda, segurando um cigarro aceso: a mao da Sr.a Medolaghi. De repente senti uma grande intolerancia tomar conta de mim e levantei-me: