— Tenho muita pena, Jaime — disse, exagerando propositadamente a minha pronuncia popular —, mas tenho que fazer… Preciso de me retirar…
Ele esmagou o cigarro no cinzeiro e levantou-se tambem. Eu larguei umas “boas-noites” sonoras, fiz uma leve reverencia, a qual a Sr.a Medolaghi respondeu com altivez distante e que a filha ignorou por completo, e sai. Na antecamara disse a Jaime:
— Palpita-me que logo a noite a Sr.a Medolaghi vai pedir-te que procures quarto noutro sitio…
Ele encolheu os ombros:
— Nao me parece — respondeu. — Eu sou dos que pagam bem e com pontualidade.
— Vou-me embora — disse eu. — Este jantar pos-me triste.
— Porque?
— Porque me convenci, por fim, de que tu es realmente incapaz de amar.
Disse isto com tristeza, sem olhar para ele. Depois ergui os olhos e tive a impressao de que ele proprio estava mortificado. Talvez fosse apenas efeito da pouca luz do vestibulo sombrio, mas senti-me possuida por um grande remorso.
— Ficaste aborrecido? — perguntei.
— Nao — respondeu ele. — No fundo o que tu disseste e verdade.
A minha alma inundou-se de afeicao. Beijei-o impetuosamente e disse-lhe:
— Nao e verdade… disse-to para te arreliar… e depois isso nao impede que te ame… Olha… Trouxe-te esta gravata.
Abri a mala, tirei a gravata e estendi-lha. Olhou-a e perguntou-me:
— Roubaste-a?
Esta brincadeira nele valia talvez mais do que um caloroso agradecimento: mas so o compreendi mais tarde. Naquele momento senti o coracao apertado. Os olhos encheram-se-me de lagrimas e balbuciei:
— Nao, comprei-a… na loja la em baixo.
Reparou na minha humilhacao e beijou-me dizendo:
— Pateta! Estava a brincar. De resto dar-me-ia o mesmo prazer se a tivesses roubado. Talvez ate ainda mais…
— Espera, que eu ponho-ta! — disse-lhe, um pouco mais consolada.
Levantou o queixo, tirei-lhe a gravata velha, pus-lhe a nova e dei-lhe o no.
— Esta gravata velha e toda esfiada vou leva-la! — disse-lhe. — Nao a deves por mais.
Na realidade o que eu queria era uma recordacao sua, qualquer coisa que ele tivesse usado.
— Entao voltaremos a ver-nos em breve? — disse.
— Quando?
— Amanha depois de jantar.
— Esta bem!
Agarrei-lhe na mao e fiz mencao de lha beijar. Ele baixou o braco, mas nao pode impedir os meus labios de aflorarem os seus dedos. Rapidamente, sem me voltar, desci a escada.
7
Depois desse dia continuei a minha vida habitual. Amava realmente Jaime e mais de uma vez senti desejo de abandonar uma vida tao oposta ao verdadeiro amor.
Mas o amor nao mudara a minha situacao. Estava sempre na mesma, quer dizer, sem dinheiro e na impossibilidade de o ganhar de outra maneira. Nada queria pedir a Jaime, que de resto estava limitado a pequena pensao que a familia lhe enviava. Devo mesmo dizer que eu sentia continuamente o desejo de pagar sempre em todos os lugares a que iamos juntos, cafes ou restaurantes. Ele recusava sistematicamente as minhas ofertas, o que me dava sempre desilusao e amargura.
Quando ja nao tinha dinheiro levava-me para os jardins publicos, onde conversavamos e olhavamos os transeuntes, sentados num banco, como fazem os pobres. Um dia disse-lhe:
— Mesmo que nao tenhas dinheiro podemos ir na mesma ao cafe; pagarei eu; que mal e que tem isso?
— Nao e possivel.
— Mas porque? Queria ir beber alguma coisa a um cafe.
— Entao vai sozinha.
Na verdade nao era tanto ir ao cafe o que me interessava, como pagar-lhe a ele. Desejava faze-lo de uma maneira tenaz e lamentavel. Mais ainda do que pagar-lhe desejaria dar-lhe directamente dinheiro, todo o dinheiro que ganhasse a medida que o fosse recebendo dos meus amantes de passagem.
Parecia-me que para uma pessoa como eu seria a unica maneira de lhe provar o meu amor. Pensava que sustentando-no ligava a mim por um laco mais forte que o da afeicao. De uma outra vez disse-lhe:
— Dava-me imenso prazer dar-te dinheiro… E tenho a certeza de que tambem a ti te daria prazer recebe- lo.
Desatou a rir e respondeu-me:
— As nossas relacoes, pelo menos no que me diz respeito, nao sao fundamentadas no prazer.
— Entao em que?
Hesitou, depois retorquiu:
— Na tua vontade de me amar e na minha fraqueza perante essa vontade… mas nao julgues que a minha fraqueza nao tem limites.
— Que queres dizer?
— E muito simples — respondeu-me tranquilamente. — Ja lhe expliquei muitas vezes. Estamos juntos porque tu o quiseste. Eu, pelo contrario, nao o quis, e agora ainda, em teoria pelo menos, nao o quero.
— Esta bem, esta bem — interrompi-o. — Nao falemos mais do nosso amor. Nao tenho razao para te sustentar!
Muitas vezes, pensando no seu caracter, acabei por chegar a conclusao dolorosa de que ele nao me tinha amor algum, e que eu era para ele objecto de nao sei qual experiencia. Realmente so se preocupava consigo proprio, mas nestes limites o seu caracter revelava-se extraordinariamente complicado.
Era, como me parecia ter compreendido, filho de uma familia provinciana abastada; um rapaz delicado, inteligente, culto, bem educado, serio. A sua familia, depois do pouco que pude depreender, porque ele nao gostava de falar nela, era exactamente a familia na qual os meus vaos sonhos de regularidade me tinham feito sonhar para mim.
A familia tradicional; um pai medico, uma mae ainda nova, que vivia muito para a casa, para o seu marido e para os seus filhos, tres irmas mais novas e um irmao mais velho. E verdade que o pai, uma autoridade local, era um faz-tudo, a mae uma provinciana, as irmas raparigas talvez frivolas e o irmao mais velho um licencioso do genero de Joao Carlos. Mas estes defeitos, todos somados, eram suportaveis, e para mim, que nascera num meio e numa situacao tao diferentes, nem mesmo eram defeitos. De resto esta familia era muito unida, e todos, irmas, irmao e pais, gostavam muito de Jaime.
Eu achava que ele era muito afortunado por ter nascido numa familia assim. Ele, pelo contrario, nutria por ela uma aversao, uma antipatia e um aborrecimento que eram realmente incompreensiveis para mim. Parecia sentir a mesma antipatia, a mesma aversao e o mesmo aborrecimento por si proprio, pelo que fazia, pelo que era. Mas este odio por ele nao era mais do que um reflexo do odio que sentia pela familia.
Por outras palavras, parecia odiar na sua pessoa tudo o que conservava da sua familia ou, de uma maneira ou de outra, recebera a influencia da familia. Acabei de dizer que era bem educado, culto, inteligente, delicado e serio. Desprezava a sua boa educacao, a sua inteligencia, a sua cultura, a sua delicadeza, a sua seriedade unicamente porque supunha que as devia ao seu meio ou a familia na qual nascera e fora criado.
— Mas, em suma — disse-lhe uma vez —, que querias tu ser? Tudo isso sao boas qualidade… devias agradecer ao Ceu possui-las.
— Ora! — respondeu, depreciativo. — Para o que me serve! Por mim teria preferido ser como Sonzogne.