Eduard saiu de casa e nao voltou aquela noite. Seus pais ligaram para a casa de Maria, para os necroterios e hospitais da cidade — sem nenhuma noticia. A mae perdeu a confianca na capacidade de seu marido lidar com a familia, embora fosse um excelente negociador com estranhos.

No dia seguinte Eduard apareceu, esfomeado e sonolento. Comeu e foi para o quarto, acendeu seus incensos, rezou seus mantras,dormiu o resto da tarde e da noite. Quando acordou, uma bicicleta novinha em folha o estava esperando.

— Va ver os seus cristais — disse a mae. — Eu explico para o seu pai.

E assim, naquela tarde de seca e poeira, Eduard dirigia-se alegremente para a casa de Maria. A cidade era tao bem desenhada (na opiniao dos arquitetos) ou tao mal desenhada (na opiniao de Eduard) que quase nao havia esquinas. Ele seguia pela direita, numa pista de alta velocidade, olhando o ceu cheio de nuvens que nao dao chuva, quando sentiu que subia em direcao a este ceu, a uma velocidade imensa — para logo seguir descer e encontrar-se no asfalto.

PRAC!

«Sofri um acidente»

Quis virar-se, porque seu rosto estava grudado no asfalto, mas viu que nao tinha mais controle sobre seu corpo. Ouviu o barulho de carros freiando, gente que gritava, alguem que se aproximou e tentou toca-lo — para logo ouvir um grito de «nao mexa nele! Voce pode aleija-lo para o resto da vida!»

Os segundos passavam devagar, e Eduard comecou a sentir medo. Ao contrario do seus pais, acreditava em Deus, e numa vida alem da morte, mas mesmo assim achava injusto tudo aquilo -morrer com 17 anos, olhando o asfalto, numa terra que nao era a sua.

— Voce esta bem? — escutava uma voz.

Nao, nao estava bem, nao conseguia se mexer, mas tampouco conseguia dizer nada. O pior de tudo e que nao perdia a consciencia, sabia exatamente o que estava se passando, e no que se havia metido. Sera que nao ia desmaiar? Deus nao tinha piedade dele, justamente num momento em que O procurava com tanta intensidade, contra tudo e contra todos?

— Ja estao vindo os medicos — sussurrou outra pessoa, pegando sua mao. — Nao sei se pode me ouvir, mas fique calmo. Nao e nada grave.

Sim, podia ouvir, gostaria que esta pessoa — um homem -continuasse falando, garantisse que nao era nada grave, embora ja fosse adulto o bastante para entender que sempre dizem isso quando a situacao e muito seria. Pensou em Maria, na regiao onde havia montanhas de cristais, cheios de energia positiva — enquanto Brasilia era a maior concentracao de negatividade que conhecera em suas meditacoes.

Os segundos se transformaram em minutos, as pessoas continuam tentando consola-lo, e — pela primeira vez desde que tudo acontecera — comecou a sentir dor. Uma dor aguda, que vinha do centro de sua cabeca, e parecia se espalhar pelo corpo inteiro.

— Ja chegaram — disse o homem que lhe segurava a mao. — Amanha voce vai estar de novo andando de bicicleta.

Mas no dia seguinte Eduard estava num hospital, com as duas pernas e um braco engessados, sem possibilidade de sair dali nos proximos 30 dias, tendo que escutar sua mae chorando sem parar, seu pai dando telefonemas nervosos, os medicos repetindo a cada cinco minutos que as 24 horas mais graves ja haviam passado, e nao houvera nenhuma lesao cerebral.

A familia ligou para a Embaixada Americana — que nunca acreditavam nos diagnosticos dos hospitais publicos, e mantinham um servico de urgencia sofIsticadissimo, junto com uma lista de medicos brasileiros considerados capazes de para atender seus proprios diplomatas. Vez por outra, numa politica de boa-vizinhanca, usavam estes servicos para outras representacoes diplomaticas.

Os americanos trouxeram seus aparelhos de ultima geracao, fizeram um numero dez vezes maior de testes e exames novos, e chegaram a conclusao que sempre chegavam: os medicos do hospital publico tinham avaliado corretamente, e tomado as decisoes certas.

Os medicos do hospital publico podiam ser bons, mas os programas de TV brasileira eram tao ruins como os de qualquer outra parte do mundo, e Eduard tinha pouco o que fazer. Maria aparecia cada vez menos no hospital — talvez tivesse encontrado outro companheiro para ir com ela ate as montanhas de cristais.

Contrastando com o estranho comportamento de sua namorada, o embaixador e sua mulher iam diariamente visita-lo, mas recusavam-se a trazer os livros em portugues que ele tinha em casa, alegando que em breve seriam transferidos, e nao havia necessidade de aprender uma lingua que nunca mais teria necessidade de usar. Assim sendo, Eduard contentava-se em conversar com outros doentes, discutir futebol com os enfermeiros, e ler uma ou outra revista que lhe caia em maos.

Ate que um dia, um dos enfermeiros trouxe-lhe um livro que acabara de ganhar, mas que achava «muito grosso para ser lido». E foi neste momento que a vida de Eduard comecou a coloca-lo um caminho estranho, que o conduziria a Villete, a ausencia da realidade, e ao distanciamento completo das coisas que outros rapazes de sua idade iriam fazer nos anos que se seguiram.

O livro era sobre os visionarios que abalaram o mundo -gente que tinha sua propria ideia do paraiso terrestre, e dedicara dedicado a sua vida para dividi-la com os outros. Ali estava Jesus Cristo, mas tambem estavam Darwin, com sua teoria de que homem descendia dos macacos; Freud, afirmando que os sonhos tinham importancia; Colombo, empenhando as joias da rainha para procurar um novo continente; Marx, com a ideia de que todos mereciam a mesma chance.

E ali estavam santos, como Inacio de Loyola, um vasco que dormira com todas as mulheres que podia dormir, matara varios inimigos num sem numero de batalhas, ate ser ferido em Pamplona, e entender o universo numa cama onde convalescia. Teresa d'Avila, que queria de todas as maneiras encontrar o caminho de Deus, e so conseguiu quando sem querer passeava por um corredor e parou

diante de um quadro. Antonio, um homem cansado da vida que levava, que resolveu exilar-se no deserto e passou a conviver com demonios por dez anos, experimentando todo tipo de tentacao.Francisco de Assis, um rapaz como ele, determinado a conversar com os passaros e a deixar para tras tudo o que os seus pais tinham programado para a sua vida.

Comecou a ler naquela mesma tarde o tal «livro grosso», porque nao tinha nada melhor para se distrair. No meio da noite, uma enfermeira entrou, perguntando se precisava de ajuda, ja que era o unico quarto ainda com a luz acesa. Eduard dispensou-a com um simples aceno de mao, sem desgrudar os olhos do livro.

Os homens e mulheres que abalaram o mundo. Homens e mulheres comuns, como ele, seu pai, ou a namorada que sabia estar perdendo, cheios das mesmas duvidas e inquietacoes que todos os seres humanos tinham nos seus cotidianos programados. Gente que nao tinha um interesse especial por religiao, Deus, expansao de mente ou nova consciencia, ate que um dia — bem, um dia tinham decidido mudar tudo. O livro era mais interessante porque contava que, em cada uma daquelas vidas, havia um momento magico, que os fizera partir em busca da sua propria visao do Paraiso.

Gente que nao deixou a vida passar em branco, e que, para conseguir o que queria, tinha pedido esmolas ou cortejado reis; rasgado codigos ou enfrentado a ira dos poderosos da epoca; usado diplomacia ou forca, mas nunca desistindo, sempre sendo capaz de vencer cada dificuldade que se apresentava como uma vantagem.

No dia seguinte, Eduard entregou seu relogio de ouro para o enfermeiro que lhe dera o livro, pediu que o vendesse, e que comprasse todos os livros sobre o tema. Nao havia mais nenhum. Tentou ler a biografia de algum deles, mas sempre descreviam o homem ou a mulher como se fosse um escolhido, um inspirado — e nao uma pessoa comum, que devia lutar como qualquer outra para afirmar o que pensava.

Eduard ficou tao impressionado com o que lera, que considerou seriamente a possibilidade de tornar-se um santo, aproveitando o acidente para mudar sua vida de rumo. Mas estava com as pernas quebradas, nao tivera nenhuma visao no hospital, nao passara diante de um quadro que lhe sacudira a alma, nao tinha amigos para construir uma capela no interior do planalto brasileiro, e os desertos estavam muito longe, cheios de problemas politicos. Mas ainda assim, podia fazer algo: aprender pintura, e tentar mostrar ao mundo as visoes que aqueles homens e mulheres tiveram.

Quanto tiraram o gesso, e voltou para a Embaixada -cercado de cuidados, mimos, e todo tipo de atencao que um filho de embaixador recebe dos outros diplomatas, pediu a sua mae que o inscrevesse numa curso de pintura.

A mae disse que ele ja tinha perdido muitas aulas no Colegio Americano, e que era hora de recuperar o tempo perdido. Eduard recusou-se: nao tinha a menor vontade de continuar aprendendo geografia e

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