da capital (que ficava no pais vizinho), Paulo Coelho tinha em comum com Veronika o fato que ja foi descrito aqui, mas que e sempre bom relembrar: tambem fora internado num sanatorio de doentes mentais, «de onde nunca devia ter saido», como comentara certa vez sua primeira mulher.
Mas saiu. E quando deixou a Casa de Saude Dr. Eiras pela ultima vez, decidido a nunca mais voltar la, , ele fizera duas promessas: a) jurou que iria escrever sobre o tema; b) jurou esperar que seus pais morressem antes de tocar publicamente no assunto — porque ele nao queria feri-los, ja que os dois tinham passado muitos anos de suas vidas culpando-se pelo que fizeram.
Sua mae morrera em 1993. Mas seu pai, que em 1997 completara 84 anos, apesar de ter efizema pulmonar sem nunca haver fumado, apesar de alimentar-se de comida congelada porque nao conseguia ter uma empregada que aturasse suas manias, continuava vivo, em pleno gozo de suas faculdades mentais e de sua saude.
De modo que, ao ouvir a historia de Veronika, ele descobriu uma maneira de falar sobre o tema, sem descumprir sua promessa. Embora nunca tivesse pensado em suicidio, conhecia intimamente o universo de um asilo — os tratamentos, as relacoes entre medicos e pacientes, o conforto e a angustia de estar num lugar como aqueles.
Entao deixemos Paulo Coelho e Veronika — a amiga -sairem definitivamente deste livro, e continuemos a historia.
Veronika nao sabe quanto tempo ficou dormindo. Lembrava-se de ter acordado algum momento — ainda com os aparelhos de sobrevivencia em sua boca e em seu nariz — ouvindo uma voz que dizia:
«Voce quer que eu a masturbe?»
Mas agora, com os olhos bem abertos e olhando o quarto ao seu redor, nao sabia se aquilo tinha sido real, ou uma alucinacao. Alem desta lembranca, nao conseguia recordar nada, absolutamente nada.
Os tubos tinham sido retirados. Mas continuava com agulhas enfiadas por todo o corpo, fios conectados na area da coracao e da cabeca, e os bracos amarrados. Estava nua, coberta apenas por um lencol, e sentia frio — mas resolveu nao reclamar. O pequeno ambiente, circundado por cortinas verdes, estava ocupado pelas maquinas da Unidade de Tratamento Intensivo, a cama onde estava deitada, e uma cadeira branca — com uma enfermeira sentada, entretida na leitura de um livro.
A mulher, desta vez, tinha olhos escuros e cabelos morenos. Mesmo assim, Veronika ficou em duvida se era a mesma pessoa com quem conversara horas — dias? — antes. — Pode desamarrar meus bracos?
A enfermeira levantou os olhos, respondeu com um seco «nao», e voltou ao livro.
Estou viva, pensou Veronika. Vai comecar tudo de novo. Devo passar algum tempo aqui dentro, ate constatarem que sou perfeitamente normal. Depois me darao alta, e eu verei de novo as ruas de Lubljana, sua praca redonda, as pontes, as pessoas que passam pelas ruas indo e voltando do trabalho.
Como as pessoas sempre tendem a ajudar as outras — so para se sentirem melhores do que realmente sao — eles me darao o emprego de volta na biblioteca. Com o tempo, voltarei a frequentar os mesmos bares e boates, conversarei com os meus amigos sobre as injusticas e problemas do mundo, irei ao cinema, passearei no lago.
Como escolhi os comprimidos, nao estou deformada: continuo jovem, bonita, inteligente, e nao terei — como nunca tive — dificuldades em arranjar namorados. Farei amor com eles em suas casas, ou no bosque, terei um certo prazer, mas logo depois do orgasmo a sensacao do vazio voltara. Ja nao teremos muito o que conversar, e tanto ele como eu sabemos disso: chega a hora de dar uma desculpa um para o outro — «esta tarde», ou «amanha tenho que acordar cedo» — e partiremos o mais rapido possivel, evitando nos olharmos nos olhos.
Eu volto para o meu quarto alugado no convento. Tento ler um livro, ligo a TV para ver os mesmos programas de sempre, coloco o despertador para acordar exatamente na mesma hora que acordei no dia anterior, repito mecanicamente as tarefas que me sao confiadas na biblioteca. Como o sanduiche no jardim em frente ao teatro, sentada no mesmo banco, junto com outras pessoas que tambem escolhem os mesmos bancos para lanchar, que tem o mesmo olhar vazio, mas fingem estar preocupadas com coisas importantissimas.
Depois volto ao trabalho, escuto alguns comentarios sobre quem esta saindo com quem, quem esta sofrendo o que, como tal pessoa chorou por causa do marido — e fico com a sensacao que sou privilegiada, sou bonita, tenho um emprego, arranjo o namorado que quiser. Ai volto aos bares no final do dia, e a coisa toda recomeca.
Minha mae — que devera estar preocupadissima com minha tentativa de suicidio — vai se recuperar do susto e continuara me perguntando o que vou fazer de minha vida, porque nao sou igual as outras pessoas, ja que, afinal de contas, as coisas nao sao tao complicadas como eu penso que sao. «Olhe para mim, por exemplo, que estou ha anos casada com seu pai, e procurei lhe dar a melhor educacao e os melhores exemplos possiveis.»
Um dia eu me canso de ouvi-la sempre repetindo a mesma conversa, e para agrada-la me caso com um homem a quem me obrigo a amar. Eu e ele terminaremos encontrando uma maneira de sonhar juntos com o nosso futuro, a casa de campo, os filhos, o futuro dos nosso filhos. Faremos muito amor no primeiro ano, menos no segundo, e a partir do terceiro ano a gente talvez pense em sexo uma vez a cada quinze dias, e transforme este pensamento em acao apenas uma vez por mes. Pior que isso, a gente quase nao conversara. Eu me forcarei a aceitar a situacao, e me perguntarei o que ha de errado comigo — ja que nao consigo mais interessa-lo, ele nao presta atencao a mim, e vive falando dos seus amigos como se fossem realmente o seu mundo.
Quando o casamento estiver realmente por um fio, eu ficarei gravida. Teremos o filho, passaremos algum tempo mais proximos um do outro, e logo a situacao voltara a ser como antes.
Entao comecarei a engordar como a tia da enfermeira de ontem — ou de dias atras, nao sei bem. E comecarei a fazer regime, sistematicamente derrotada a cada dia, a cada semana, pelo peso que insiste em aumentar apesar de todo o controle. A esta altura, eu tomarei estas drogas magicas para nao entrar em depressao — a terei alguns filhos, em noites de amor que passam depressa demais.
Direi a todos que os filhos sao a razao de minha vida, mas na verdade eles exigem minha vida como razao.
As pessoas vao sempre nos considerar um casal feliz, e ninguem sabera o que existe de solidao, de amargura, de renuncia, atras de toda aparencia de felicidade.
Ate que um dia, quando meu marido arranjar sua primeira amante, eu talvez faca um escandalo como a amiga da enfermeira, ou pense de novo em me suicidar. Mas ai estarei velha e covarde, com dois ou tres filhos que precisam de minha ajuda, e preciso educa-los, coloca-los no mundo — antes de ser capaz de abandonar tudo. Eu nao me suicidarei: farei um escandalo, ameacarei sair com as criancas. Ele, como todo homem, recuara, dira que me ama e que aquilo nao vai mais se repetir. Nunca lhe passara pela cabeca que, se eu resolvesse mesmo ir embora, a unica escolha seria voltar para casa dos meus pais, e ficar ali o resto da minha vida, tendo que escutar todo dia a minha mae lamentar-se porque eu perdi uma oportunidade unica de ser feliz, que ele era um otimo marido apesar de seus pequenos defeitos, que meus filhos irao sofrer muito por causa da separacao.
Dois ou tres anos depois, outra mulher aparecera em sua vida. Eu vou descobrir — porque vi, ou porque alguem me contou -mas desta vez finjo que nao sei. Gastei toda a minha energia lutando contra a amante anterior, nao sobrou nada, e melhor aceitar a vida como ela e na realidade, e nao como eu imaginava que fosse. Minha mae tinha razao.
Ele continuara sendo gentil comigo, eu continuarei o meu trabalho na biblioteca, os meus sanduiches na praca do teatro, os meus livros que nunca consigo terminar de ler, os programas de televisao que continuarao sendo os mesmos daqui a dez, vinte, cinquenta anos.
So que comerei os sanduiches com culpa, porque estou engordando; e nao irei mais a bares, porque tenho um marido que me espera em casa para cuidar dos filhos.
A partir dai, e esperar os meninos crescerem, e ficar todo dia pensando no suicidio, sem coragem de comete-lo. Um belo dia, chego a conclusao que a vida e assim, nao adianta, nada mudara. E me conformo.
Veronika encerrou seu monologo interior, e fez uma promessa a si mesmo: nao sairia de Villete com vida. Era melhor acabar com tudo agora, enquanto ainda tinha coragem e saude para morrer.
Dormiu e acordou varias vezes, notando o numero de aparelhos a sua volta diminuia, o calor de seu corpo aumentava, e