As ilhas sao extremamente perigosas por causa dessa pseudoliberdade de que gozamos. Sofro ao ver todo mundo confortavelmente acomodado numa vida sem problemas. Uns esperam o fim de sua pena e nada mais, enquanto chafurdam nos seus vicios.
Esta noite, estou esticado na minha rede. No fundo da sala ha um jogo infernal, a tal ponto que meus dois amigos, Carbonieri e Grandet, foram obrigados a se juntar para controla-lo. Um so nao dava. Quanto a mim, tento fazer aparecer lembrancas do meu passado. Elas se negam a vir: parece que o tribunal nunca existiu. Por mais que eu faca forca para esclarecer as imagens difusas deste dia fatal, nao consigo ver nenhum personagem nitidamente. Apenas o promotor se apresenta com toda a sua cruel verdade. Meu Deus! Pensava ter vencido voce definitivamente quando me vi em Trinidad, na casa de Bowen. Qual e a praga que tu me rogaste, nojento, para que seis fugas nao me tenham dado a liberdade? Na primeira, quando tu recebeste, dos trabalhos forcados, a noticia, pudeste dormir tranquilo? Bem que eu gostaria de saber se tu tiveste medo ou apenas raiva, ao saber que tua presa escapara ao caminho da podridao no qual a jogaras quarenta dias antes. Eu tinha estourado a gaiola. Que fatalidade me perseguiu para que eu tivesse de voltar aos trabalhos forcados onze meses depois? Talvez Deus me tenha punido por eu desprezar a vida primitiva mas tao bela que poderia ter levado pelo tempo que quisesse?
Lali e Zoraima, meus dois amores, esta tribo sem policias, sem outra lei que a maior compreensao entre os seres que a constituem, sim, estou aqui por culpa minha, mas tenho que pensar numa unica coisa: fugir, fugir ou morrer. Quando soubeste que eu fora preso novamente e voltara para os trabalhos forcados, se tu tiveste de novo o teu sorriso de vencedor do tribunal, pensando: “Tudo esta bem assim, ele esta de novo no caminho da podridao onde o coloquei”, tu te enganas. Jamais minha alma ou meu espirito pertencerao a este caminho degradante. Tu tens so o meu corpo: teus guardas, teu sistema penitenciario constatam todo dia, duas vezes por dia, que estou presente e isto te basta. Seis horas da manha: “Papillon?” – “Presente.” Seis horas da tarde: “Papillon?” – “Presente.” Esta tudo bem. Ja ha seis anos que nos o seguramos, ele ja deve ter comecado a apodrecer e, com um pouco de sorte, num dia proximo, o sino chamara os tubaroes para recebe-lo com todas as honras, no festim diario que lhes oferece gratuitamente o teu sistema de eliminacao por desgaste.
Tu te enganas, teus calculos nao estao certos. Minha presenca fisica nada tem a ver com a minha presenca moral. Queres que eu te diga uma coisa? Nao pertenco aos trabalhos forcados, nao assimilei nada dos habitos dos meus colegas, nem dos habitos dos meus amigos mais intimos. Sou candidato permanente a fuga.
Estou conversando com meu acusador, quando dois homens se aproximam da minha rede:
– Esta dormindo, Papillon?
– Nao.
– Queriamos falar com voce.
– Falem. Falando baixinho, aqui nao da para ninguem ouvir.
– Bem, estamos preparando uma revolta.
– Seu plano?
– Mataremos todos os arabes, todos os guardas, todas as esposas dos guardas, com as criancas, porque sao sementes de tiras. Para isso, eu, Arnaud, e meu amigo Hautin, com a ajuda de quatro homens que estao de acordo, atacaremos o deposito de armas do comandante. Estou trabalhando la para manter as armas em bom estado. Tem 23 metralhadoras e mais de oitenta fuzis, carabinas e Lebel. A acao sera feita de…
– Pare, nao diga mais nada. Me nego a topar. Agradeco a confianca, mas nao estou de acordo.
– A gente pensava que voce acreditaria ser o chefe da revolta. Deixa eu lhe dar os detalhes que estudamos e vai ver que nao tem fracasso possivel. Faz cinco meses que estamos preparando o golpe. Ja temos mais de cinquenta homens de acordo.
– Nao me da nenhum nome, me nego a ser o chefe e mesmo a atuar nesse golpe.
– Por que? Voce nos deve uma explicacao, depois da confianca que tivemos em lhe dizer tudo.
– Nao pedi para voce contar os seus projetos. Depois, so faco na vida o que quero e nao o que os outros querem. Alem disso nao sou um assassino em serie. Posso matar alguem que me fez algo de grave, mas nao mulheres e criancas que nao me fizeram nada. O mais grave, voces nao estao vendo e eu vou dizer a voces: mesmo que a revolta der certo, voces vao fracassar.
– Por que?
– Porque a coisa principal, fugir, nao e possivel. Vamos admitir que cem homens sigam a revolta, como e que vao partir? Ha apenas dois barcos nas ilhas. No maximo, nao aguentam mais de quarenta presos, as duas. O que vao fazer com os outros sessenta?
– Nos estaremos entre os quarenta que vao partir com os barcos.
– E o que voce esta imaginando, mas os outros nao sao mais cretinos que voces, estarao armados como voces e, se eles tiverem um pouco de miolo na cabeca, depois de eliminar aqueles de que voce falou, voces vao comecar a atirar uns contra os outros, para ter o direito de subir num barco. O mais importante e que, estes dois barcos, nenhum pais vai querer recebe-los, os telegramas vao chegar antes de voces em todos os paises para onde poderiam ir, ainda mais com uma legiao de mortos deixados atras de voces. Em qualquer lugar a que cheguem serao presos e devolvidos a Franca. Voces sabem que voltei da Colombia, sei muito bem o que estou dizendo. Dou a minha palavra de que, depois de um golpe desse, eles devolvem a gente de qualquer lugar.
– Bom. Entao, voce recusa.
– Recuso.
– E a ultima palavra?
– E a minha decisao irrevogavel.
– Entao, vamos, nao temos mais nada a fazer aqui.
– Espere um pouco. Peco para voces nao falarem desse projeto com nenhum dos meus amigos.
– Por que?
– Porque sei de antemao que eles vao recusar; entao, nao adianta.
– Muito bem.
– Acham que nao podem abandonar este projeto?
– Sinceramente, nao, Papillon.
– Nao entendo o ideal de voces, ja que, muito seriamente, estou explicando que, mesmo que a revolta de certo, voces nao vao ficar livres.
– Queremos sobretudo nos vingar. E agora que voce explicou que e impossivel chegar a um pais que receba a gente, entao entraremos no mato e organizaremos uma turma na selva.
– Dou a minha palavra de que nao falarei disso nem ao meu melhor amigo.
– Disso estamos certos.
– Bom, uma ultima coisa: me avisem oito dias antes para eu ir para Saint-Joseph, a fim de que eu nao esteja aqui quando a coisa acontecer.
– Voce sera avisado em tempo para mudar de ilha.
– Nao posso fazer nada para que voces mudem de ideia? Querem combinar outra coisa comigo? Por exemplo, roubar quatro carabinas e numa noite atacar o posto que guarda os barcos, sem matar ninguem, tomarmos um barco e fugirmos juntos.
– Nao, sofremos demais. O principal para a gente e a vinganca, mesmo que nos custe a vida.
– E as criancas? E as mulheres?
– Tudo isso e a mesma coisa, o mesmo sangue, tudo isso tem que morrer…
– Nao falemos mais nisso.
– Voce nao nos deseja boa sorte?
– Nao. Digo para voces: desistam, ha coisas melhores para fazer do que esta porcaria.
– Voce nao admite que a gente tenha o direito de se vingar.
– Admito, mas nao com inocentes.
– Boa noite.
– Boa noite. Nao falamos nada, certo, Papi?
– Certo, caras!
E Hautin e Arnaud vao embora. Essa nao, curiosa historia! Sao dois doidos esses sujeitos e, alem disso, dizem que tem cinquenta ou sessenta comprometidos e na hora H mais de cem! Historia de doido! Nenhum dos meus amigos tocou no assunto, parece certo que os dois caras so falaram com gajos que estao por fora. Nao e possivel que homens da autentica malandragem estejam nesse golpe. E isso ainda e mais grave porque na malandragem tem verdadeiros assassinos, mas e fora dela que estao os facinoras capazes desse tipo de coisa.
Esta semana, discretamente, tomei informacoes sobre Arnaud e Hautin. Arnaud foi condenado, parece que injustamente, a prisao perpetua, por um negocio que nao merecia nem dez anos. Os jurados o condenaram tao severamente porque no ano anterior o irmao dele tinha sido guilhotinado por ter matado um tira. O promotor falou mais do irmao que dele mesmo, para criar uma atmosfera de hostilidade, e ele foi condenado a essa pena terrivel. Alem disso, contam que foi horrivelmente torturado quando o prenderam, sempre por causa do que o irmao tinha feito.
Hautin nunca conheceu a liberdade, esta na cadeia desde os nove anos de idade. Antes de sair de um reformatorio, aos dezenove anos, matou um sujeito, na vespera do dia em que ia ser libertado para entrar na marinha, onde se alistara para sair do reformatorio. Deve estar um pouco louco, pois seu projeto era, parece, chegar a Venezuela, trabalhar numa mina de ouro e fazer explodir a perna para receber uma grande indenizacao. Sua perna esta paralisada por causa de uma injecao de nao sei que produto, que ele fez voluntariamente em Saint-Martin-de-Re.
Grande lance teatral. Hoje de manha, na chamada, convocaram Arnaud, Hautin e o irmao de meu amigo Matthieu Carbonieri. Jean, o irmao dele, e padeiro, portanto fica no cais, perto das barcas.
Foram enviados a Saint-Joseph sem explicacao e sem motivo aparente. Tento saber. Nao transpira nada; no entanto, Arnaud estava a quatro anos na manutencao das armas e Jean Carbonieri ha cinco anos era padeiro. Pode ser um simples acaso. Deve ter havido uma traicao, mas que tipo de traicao e ate onde?
Resolvo falar com meus tres amigos intimos: Matthieu Carbonieri, Grandet e Galgani. Nenhum dos tres sabe de nada. Portanto, estes Hautin e Arnaud so procuraram presos que nao eram do meu meio.
– Por que falaram comigo, entao?
– Porque todo mundo sabe que voce quer fugir a qualquer preco.
– Mas nao a este preco.