de um ou dois anos na sua pena. E o que eu lhe desejo, porque voce e um homem corajoso..

Pronto, estou na 127. Realmente, ela fica bem em frente de uma grande porta gradeada que da para o corredor. Embora sejam quase 6 horas, ainda ha uma certa claridade. A cela tambem nao tem aquele sabor e aquele cheiro de podre da minha primeira cela. Isso me anima um pouco:

“Meu velho Papillon”, digo a mim mesmo, “eis aqui as quatro paredes que vao ficar olhando voce durante oito anos. Negue-se a contar os meses e as horas, e inutil. Se voce quiser tomar uma unidade de medida aceitavel, e de seis em seis meses que voce deve contar. Dezesseis vezes seis meses e voce estara livre outra vez. De qualquer jeito, voce tem uma vantagem. Se esticar as canelas aqui e se for de dia, tera pelo menos a satisfacao de morrer na luz. E muito importante. Nao deve ser muito divertido morrer no escuro. Se voce ficar doente, pelo menos aqui o medico vai enxergar a sua cara. Voce nao tem nada que se arrepender por ter tentado viver novamente por meio de uma fuga e, alias, verdade seja dita, nem por ter matado Celier. Imagine so o quanto torturaria voce, ficar pensando que, enquanto esta aqui, ele fugiu. O tempo dira. Pode ser que aconteca uma anistia, uma guerra, um terremoto, um furacao que destrua esta fortaleza. Por que nao? Pode surgir um homem de carater, que volte para a Franca e consiga comover os franceses e estes, por sua vez, obriguem a administracao penitenciaria a suprimir esta forma de guilhotinar gente sem usar a guilhotina. Quem sabe se um medico, revoltado, nao vai contar tudo isso a um jornalista, a um padre, sei la eu quem mais?… De qualquer jeito, Celier ha muito tempo que foi digerido pelos tubaroes. Eu nao, eu estou aqui e, se for digno de mim mesmo, tenho de sair vivo deste sepulcro”.

Um, dois, tres, quatro, cinco, meia volta; um, dois, tres, quatro, cinco, outra meia volta, comeco a andar e reencontro imediatamente a posicao da cabeca, dos bracos, e a medida exata da passada, para que o passeio funcione com precisao. Resolvo andar apenas duas horas de manha e duas horas de tarde, ate saber se posso contar com uma alimentacao privilegiada em quantidade. Nada de comecar a desperdicar energia inutilmente com esse nervosismo dos primeiros dias.

Sem duvida, e lamentavel ter fracassado na etapa final. Claro que era so o primeiro episodio da fuga, alem disso era preciso fazer uma travessia bem sucedida de mais de 50 quilometros, com aquela fragil jangada. E, depois que aportassemos na Terra Grande, talvez precisassemos executar de novo uma evasao. Se a partida funcionasse bem, a vela de tres sacos de farinha teria impelido a jangada a mais de 10 quilometros por hora. Em menos de quinze horas, talvez doze, nos tocariamos a terra. Isso, claro, se chovesse durante o dia, porque apenas com chuva podiamos nos arriscar a icar vela. Se bem me lembro, no dia seguinte ao dia em que me fecharam na cela, choveu. Nao tenho muita certeza. Procuro encontrar falhas ou erros cometidos. Encontro so dois. O marceneiro quis fazer uma jangada muito bem feita demais, segura demais, e por isso, para encaixar os cocos, precisou fazer uma armacao especial; praticamente, eram duas jangadas, uma dentro da outra. Dai, havia um numero grande demais de pecas a fabricar, e ele precisava de tempo demais para fabrica-las com todas as precaucoes.

Em segundo lugar, o mais grave: logo a primeira duvida seria sobre Celier, na mesma noite, eu devia ter matado ele. Se eu tivesse feito isso, quem sabe onde estaria agora! Mesmo se a coisa desse certo ao chegarmos a Terra Grande ou se eu fosse apanhado na hora do embarque, so pegaria tres anos e nao oito, e me ficaria a satisfacao da acao realizada. Onde eu estaria agora, se tudo tivesse dado certo, nas ilhas ou na Terra Grande? Quem e que vai saber? Talvez conversando com Bowen, em Trinidad ou protegido em Curacau pelo Bispo Irenee de Bruyne. E, entao, so se tornaria a partir depois de estarmos seguros de que tal ou tal outro pais nos receberia. Em caso contrario, me seria facil voltar sozinho, diretamente, num barco pequeno, para Guajira, para a minha tribo.

Adormeci muito tarde, consegui dormir um sono normal. Essa primeira noite nao foi tao deprimente. Viver, viver, viver. Devo repetir cada vez que estiver a ponto de me entregar ao desespero, tres vezes, essa palavra de esperanca: “Enquanto ha vida, ha esperanca”.

Passou-se uma semana. Desde ontem notei modificacao das porcoes da minha comida. Um espetacular pedaco de carne cozida no almoco, e no jantar uma tigela de lentilhas puras, quase sem agua. Como crianca, digo a mim mesmo: lentilhas tem ferro, que e muito bom para a saude.

Se continuar assim, vou poder andar dez a doze horas por dia, e a noite, entao, bem cansado, estarei em estado propicio para viajar pelas estrelas. Nao, nao e delirio, estou com os pes na terra, bem na terra, penso em todos os casos de forcados que conheci nas ilhas. Cada um tem a sua historia, antes e durante. Penso tambem nas lendas que correm de boca em boca nas ilhas. Uma dessas lendas, que tenho intencao de verificar se e verdadeira, caso eu volte as ilhas, e a lenda do sino.

Conforme ja contei, os forcados nao sao enterrados, sao jogados ao mar entre Saint-Joseph e Royale, num ponto infestado de tubaroes. O morto e envolvido em sacos de farinha, tendo aos pes uma corda amarrada a uma grande pedra. Um caixao retangular, sempre o mesmo, e instalado na horizontal, na parte dianteira do barco. Uma vez chegados ao local designado, os seis forcados remadores levantam os remos horizontalmente, a altura da bordagern. Um homem inclina o caixao e outro abre uma especie de alcapao. Entao o corpo desliza para dentro da agua. E certo, e nao ha margem para nenhuma duvida, que os tubaroes imediatamente cortam a corda. Nunca da para um morto afundar muito. Volta a superficie e os tubaroes comecam a disputar esse manjar de festa. Ver comer um homem, segundo aqueles que ja assistiram a esse espetaculo, e impressionante, porque, alem de tudo, quando os tubaroes sao muitos, conseguem levar a mortalha com seu conteudo para fora da agua, e entao, dilacerando os sacos de farinha, carregam grandes nacos do cadaver.

Tudo se passa exatamente conforme descrevi, mas ha uma coisa que nao pude verificar. Os condenados, sem excecao, contam que o que atrai os tubaroes aquele local e o som do sino que tocam na capela quando ha um morto. Dizem que as vezes a gente pode ficar na ponta do quebra-mar de Royale as 6 da tarde sem ver um unico tubarao. Quando batem o sino da igrejinha, na mesma hora o local se infesta de tubaroes a espera do cadaver. Alem do sino, nao ha nada que explique por que eles acorrem a esse ponto nessa hora precisa. Esperemos que eu nao venha a servir de prato do dia para os tubaroes de Royale em semelhantes condicoes. Que eles me devorem vivo durante uma fuga, pouco ligo, pelo menos tera sido durante uma iniciativa minha na luta pela liberdade. Mas, depois de uma morte por doenca numa cela, isso nao, isso nao pode acontecer.

Podendo comer bastante, gracas a organizacao montada pelos meus amigos, estou em perfeita saude. Ando das 7 horas da manha as 6 da tarde sem parar. Dessa forma, a tigela do jantar, cheia de legumes secos, feijao, lentilha, ervilha seca ou arroz na gordura, fica vazia em pouco tempo. Como sempre tudo sem ter de me esforcar. Andar me faz bem, o cansaco que isso da e sadio e consigo me transformar noutro homem enquanto ando. Ontem, por exemplo, passei o dia todo nos campos de uma aldeia de Ardeche que se chama Favras. Muitas vezes, depois que minha mae morreu, eu ia passar umas semanas na casa da minha tia, irma da minha mae, professora primaria do lugarejo. Pois bem, ontem eu estava virtualmente nesse bosque de castanheiros, colhendo cogumelos, e depois ouvia meu pequeno amigo, o pastor, dar ordens a seu cachorro treinado, que obedecia com grande eficiencia trazendo de volta uma ovelha desgarrada ou castigando uma cabra muito passeadeira. E, mais ainda, cheguei ate a sentir na boca o sabor fresco da fonte ferruginosa, me deliciei com as leves cocegas das bolhas minusculas que me subiam ao nariz. Essa capacidade tao autentica e verdadeira de reencontrar momentos passados ha mais de quinze anos, essa faculdade de revive-los sentidamente com tanta intensidade so podem ser conseguidas numa cela, longe de tudo quanto e barulho, no silencio mais completo.

Chego a ver a cor amarela do vestido de tia Outine. Ouco o murmurio do vento nos castanheiros, o ruido seco que faz a casca da castanha ao cair no chao seco e macio, quando mergulha num tapete de folhas. Um enorme javali apareceu por entre as esbeltas giestas e me deu um medo tao grande, que sai correndo, deixando cair pelo caminho grande parte dos cogumelos colhidos. Sim, passei – enquanto andava – o dia inteiro em Favras com a titia e meu coleguinha, o pastor Julien. Essas lembrancas revividas, tao doces, tao limpidas, tao precisas, nao ha ninguem que possa me impedir de me refugiar nelas, de buscar nelas a paz que e necessaria ao meu espirito atormentado e magoado.

Para a sociedade, estou em uma dessas inumeras celas da devoradora de homens. Na realidade, roubei-lhes um dia inteiro, que passei em Favras, nos campos, entre os castanheiros, e ate mesmo bebi agua mineral na fonte chamada do Pessegueiro.

Ja passaram os seis primeiros meses. Eu me determinara a contar por unidades de seis meses; mantive meu proposito. So hoje de manha diminui de dezesseis para quinze… Mais quinze vezes seis meses.

Vamos fazer o balanco da situacao. Nenhum incidente pessoal nestes seis meses. A comida e sempre a mesma, mas, por outro lado, a racao que recebo e bem razoavel e assim minha saude nao vai se prejudicar. A minha volta, muitos suicidas e loucos furiosos, que felizmente logo sao levados embora. E deprimente ficar ouvindo gritarem, gemerem ou se queixarem durante horas, ou dias inteiros. Bolei um recurso bom, so que faz mal para o ouvido. Corto um pedaco de sabao e enfio nos dois ouvidos, para nao ouvir mais esses gritos horripilantes. Infelizmente, o sabao me prejudica os ouvidos, que comecam a doer muito dai a um ou dois dias.

Pela primeira vez desde que estou nos trabalhos forcados, me rebaixo a pedir uma coisa a um guarda. Acontece que um guarda que traz a sopa e de Montelimar, perto da minha terra. Eu o conheci na Ilha Royale e peco a ele para me arranjar uma pequena bola de cera, para me ajudar a suportar a barulheira que fazem os loucos antes de serem levados embora. No dia seguinte, ele me traz uma bola de cera do tamanho de uma noz. E incrivel o alivio que da nao ouvir mais esses infelizes.

Ja tenho bastante pratica com as grandes lacraias. Em seis meses, so fui mordido uma vez. Resisto muito bem, quando acordo e ha uma passeando pelo meu corpo nu. A gente se acostuma com qualquer coisa, e so questao de se controlar, porque as cocegas que fazem as patas e as antenas das lacraias sao muito desagradaveis. Mas, se a gente pega a lacraia de mau jeito, ela morde. Vale mais a pena esperar que desca espontaneamente de cima da gente e, ai sim, ir para cima dela e mata-la. Em cima do meu banco de cimento ha sempre dois ou tres pedacinhos de pao fresco. Forcosamente, o cheiro do pao as atrai e elas vao para la. Entao eu as mato.

Preciso afastar uma ideia fixa que me persegue. Por que nao matei Bebert Celier no mesmo dia em que tive duvidas sobre sua funcao nefasta? Entao, incessantemente, argumento e contra-argumento comigo mesmo: quando e que se tem o direito de matar? Em seguida, me defino: o fim justifica os meios. O fim, para mim, era lograr a fuga, eu tive a oportunidade de terminar uma jangada bem construida, de esconde-la em local seguro. O embarque seria dentro de alguns dias. Uma vez que eu estava a par do perigo que Celier representava – e isso na epoca da penultima peca, que, por milagre, chegara a seu destino – deveria ter executado o homem sem hesitacao. E se eu estivesse enganado, se as aparencias fossem falsas? Teria matado um inocente. Que horror! Mas e ilogico que eu me coloque um problema de consciencia, eu, um condenado aos trabalhos forcados perpetuos. Pior do que isso, condenado a oito anos de reclusao no meio de uma pena perpetua!

E o que e que voce pretende, que e voce, sobra de lixo, tratado como uma imundicie da sociedade? So queria saber se os doze jurados de merda que o condenaram se perguntaram, uma vez que fosse, se achavam que verdadeiramente, conscientemente, fizeram bem em condena-lo a uma pena tao dura. E se o promotor (ainda estou escolhendo com qual instrumento vou arrancar a lingua dele) se perguntou se nao foi um pouco exagerado no seu requisitorio. Com certeza, nem mesmo os meus advogados se lembram mais de mim! Na certa aludem em termos gerais a “aquele caso infeliz do Papillon” no julgamento de 1932: “Voces sabem, prezados colegas, naquele dia eu nao estava la muito em forma e, para meu azar, o promotor Pradel estava num de seus melhores dias. Ele ganhou esse caso para a acusacao de forma magistral. E verdadeiramente um adversario de grande classe”.

Visualizo e ouco tudo isso como se estivesse ao lado do Dr. Raymond Hubert, no meio de uma conversa entre advogados, ou em uma reuniao mundana, ou mais precisamente nos corredores do Palacio da Justica.

Um unico homem, sem sombra de duvida, tem uma posicao de magistrado probo e honesto, o presidente do tribunal, Bevin. Este, sim, pode muito bem, homem imparcial que e, discutir entre colegas ou numa reuniao mundana o perigo que existe em fazer julgar um homem por jurados. Sem duvida ele deve dizer, evidentemente que com palavras bem adequadas, que os doze sacanas do juri nao estao preparados para uma tal responsabilidade, que eles se impressionam demais pelo brilho da acusacao ou da defesa, conforme uma das duas domina esse torneio de oratoria; que eles absolvem depressa demais, ou

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