Celier. Total: oito anos de reclusao. Se eu nao tivesse sido ferido, e garantido que me condenavam a morte.

Esse mesmo tribunal, tao severo comigo, foi mais compreensivo ante um polaco da cavalaria francesa, chamado Dandosky, que tinha matado dois homens. O tribunal o condenou a apenas cinco anos e, no entanto, no caso dele havia premeditacao indiscutivel.

Dandosky era um padeiro encarregado de fazer somente o fermento. O horario dele era apenas das 3 as 4 da manha. Como a padaria ficava no cais, diante do mar, ele passava todas as suas horas de folga pescando. Era um tipo tranquilo, falava mal o frances e nao se dava com ninguem. Esse condenado aos trabalhos forcados perpetuos dedicava todos os seus sentimentos de ternura a um belo gato preto de olhos verdes, que praticamente vivia com ele. Os dois dormiam juntos, o gato o seguia como um cachorro ao trabalho, para lhe fazer companhia. Em resumo, era uma grande estima entre ele e o bichinho. O gato o acompanhava na pesca, mas, quando fazia calor demais e nao havia uma sombrinha por perto, voltava sozinho ate a padaria e se deitava na rede de seu amigo. Ao meio-dia, quando batia o sino, saia ao encontro do polaco e pulava para pegar o peixinho com que o homem o aticava, ate o gato o agarrar.

Os padeiros moram todos juntos numa sala pegada a padaria. Um dia, dois forcados chamados Corrazi e Angelo convidam Dandosky a comer um guisado de coelho preparado por Corrazi, como ele fazia pelo menos uma vez por semana. Dandosky senta-se a mesa com eles e comem juntos; para a refeicao, Dandosky levara, por sua vez, uma garrafa de vinho. A noite, o gato nao voltou para casa. O polaco procurou o gato por toda parte em vao. Passa uma semana inteira e nada do gato. Triste com a perda do companheiro, Dandosky nao se interessa mais por nada. Era mesmo triste que o unico ser que Dandosky amava e que tao bem lhe retribuia esse amor tivesse desaparecido misteriosamente. A esposa de um vigia, quando soube da imensa dor de Dandosky, deu-lhe de presente um filhotinho de gato. Dandosky expulsou o gatinho, indignado, e perguntou a mulher como e que ela podia conceber que ele pudesse gostar de outro gato que nao o dele; seria, dizia ele, uma grave ofensa a memoria do amado desaparecido.

Um dia, Dandosky agrediu um aprendiz de padeiro que era tambem distribuidor de pao. O aprendiz nao morava na mesma sala dos padeiros, mas com ele e lhe diz:

– Quer saber de uma coisa, o coelho que Corrazi e Angelo te fizeram comer era o teu gato.

– Cade a prova? – grita o polaco, agarrando o outro pelo pescoco.

– Debaixo da mangueira que fica atras dos canoeiros, um pouco mais para la, eu vi Corrazi, quando ele estava enterrando a pele do seu gato.

Como um louco, o polaco vai verificar e realmente encontra a pele. Recolhe a pele, ja meio podre, a cabeca em decomposicao. Lava-a com agua do mar, estende-a ao sol para que seque, depois a envolve num pano muito limpo e enterra-a num local seco, bem fundo, para que as formigas nao a comam. Foi isso que ele me contou.

De noite, a luz de um lampiao de petroleo, Corrazi e Angelo um ao lado do outro, sentados num banco de tabuas muito grossas, na sala dos padeiros, jogam cartas com mais dois parceiros. Dandosky e um homem de uns quarenta anos, estatura mediana, entroncado, largo de ombros, muito forte. Prepara um grande porrete de pau-ferro, alias tao pesado como esse metal; aproxima-se por tras e sem uma palavra vibra um fortissimo golpe na cabeca de cada um dos dois. Os cranios se abrem como duas granadas e escorrem os miolos pelo chao. Possuido de raiva furiosa, Dandosky nao se satisfaz simplesmente com a morte dos dois, ele pega os miolos e os esmaga contra a parede da sala. Fica tudo borrado de sangue e miolos.

Se eu, por um lado, nao encontrei compreensao por parte do comandante da gendarmaria, presidente do tribunal militar, Dandosky, por outro lado, embora tivesse cometido dois assassinatos com premeditacao, encontrou tanta compreensao, que foi condenado a apenas cinco anos.

SEGUNDA RECLUSAO

Amarrado ao polaco, eu fui levado para as ilhas. Nao demoramos muito no presidio de Saint-Laurent. Chegamos numa segunda-feira, passamos pelo tribunal militar na quinta, e na sexta de manha nos embarcavam de volta para as ilhas.

Vao nesta viagem para as ilhas dezesseis homens, dos quais doze para a reclusao. A travessia se faz com um mar muito agitado, muitas vezes o passadico e varrido por um vagalhao mais forte que os outros. Meu desespero e tanto, que chego a desejar que esse barco afunde. Nao falo com ninguem, vou concentrado, preocupado comigo mesmo, por causa desse vento molhado que me fustiga o rosto. Nao protejo o rosto, pelo contrario. De proposito deixo voar meu chapeu, nao vou precisar dele durante meus oito anos de reclusao. Com o rosto virado de frente para o vento, aspiro ate perder o folego esse ar que me acoita. Primeiro, desejei o naufragio; depois, consigo novamente por as ideias no lugar: “Bebert Celier foi devorado pelos tubaroes; eu tenho trinta anos e oito a passar na reclusao”. Mas sera que e possivel sobreviver oito anos na devoradora de homens?

Segundo a experiencia que ja tenho, acredito que seja impossivel. Quatro ou cinco anos devem ser o limite extremo da resistencia possivel. Se eu nao tivesse matado Celier, teria apenas tres anos a cumprir, talvez mesmo so dois, porque a morte dele agravou todas as outras coisas, inclusive a evasao. Eu nao devia ter matado aquele crapula. Meu dever de homem para comigo mesmo nao e de fazer a minha justica; e, em primeiro lugar e acima de tudo, viver, viver para fugir. Como e que eu pude cometer tamanho erro? Sem contar que, por pouco, era ele que me matava, aquele merda. Viver, viver, viver e o que deveria ter sido e devera ser a minha unica religiao.

Entre os guardas que escoltam o grupo de forcados, ha um que eu ja conheci na reclusao. Nao sei como ele se chama, mas estou louco de vontade de perguntar uma coisa a ele.

– Chefe, queria lhe perguntar uma coisa.

Espantado, ele chega mais para perto de mim e diz:

– O que?

– Voce sabe de algum homem que conseguiu passar oito anos na reclusao?

Ele fica pensativo durante uns momentos e depois me diz:

– Nao, mas ja vi muitos que passaram cinco anos, e ate um cara, me lembro muito bem, que saiu com uma saude razoavel e bem equilibrado apos seis anos. Eu estava na reclusao quando ele foi liberado.

– Obrigado.

– De nada – diz o guarda. – Voce, se nao me engano, vai para ficar oito anos?

– Certo, chefe.

– Voce so pode sair dessa se nao pegar nenhuma punicao, nenhuma vez.

E ele se afasta.

Essa frase e muito importante. E verdade, so saio vivo se nao for punido nenhuma vez. Isso porque, como as punicoes sao na base de suprimir parte ou toda a alimentacao durante algum tempo, em seguida a isso, mesmo voltando ao regime normal, a gente nao se recupera nunca mais. Certas punicoes mais fortes impedem que se resista ate o fim, a gente se acaba antes do fim. Conclusao: nao devo aceitar cocos nem cigarros, nem mesmo escrever ou receber bilhetes.

Durante todo o resto da viagem rumino incessantemente essa decisao. Nada, absolutamente nada, nem com o exterior nem com o interior. Ocorre-me uma ideia: o unico jeito de receber apoio, sem arriscar a comida, e que do exterior alguem pague aos distribuidores de sopa para que eles escolham um dos maiores e melhores pedacos de carne no almoco. E facil, porque ha um que serve o caldo e outro que vem atras, com uma bandeja, e poe na tigela um pedaco de carne. E preciso que ele remexa ate o fundo do ensopado e me de uma concha com o maximo possivel de legumes. So o fato de eu ter tido essa ideia ja me reanima. Realmente, assim eu poderia muito bem comer o suficiente para matar a fome e quase que satisfatoriamente, se esse esquema for bem montado. E eu, por minha vez, que trate de sonhar e de me ausentar o mais possivel, escolhendo temas agradaveis, senao fico louco.

Chegamos as ilhas. Sao 3 horas da tarde. Assim que desembarco, vejo o vestido amarelo claro de Juliette, ela ao lado do marido. O comandante se aproxima de mim rapidamente, antes mesmo que a turma tenha tido tempo de se por em fila, e me diz:

– Quanto?

– Oito anos.

Ele volta para junto da esposa e fala com ela. Emocionada, com certeza, ela se senta numa pedra. Completamente prostrada. Seu marido a segura pelo braco, ela se levanta e, depois de me lancar um sombrio olhar com aqueles seus imensos olhos, os dois vao embora sem se virar mais.

– Papillon – pergunta Dega -, quanto?

– Oito anos de reclusao.

Ele nao responde nada e nao tem coragem de olhar para mim. Galgani se aproxima e, antes que ele fale, eu digo:

– Nao me mande nada e nem me escreva nada. Com uma pena assim longa, eu nao posso me arriscar a uma punicao.

– Compreendo.

Em voz baixa, acrescento apressadamente:

– De um jeito para que eles me sirvam o melhor possivel no almoco e no jantar. Se voce conseguir isso, talvez a gente volte a se ver um dia. Adeus.

Voluntariamente me dirijo para a primeira canoa que vai nos levar para Saint-Joseph. Todo mundo me olha como se olhasse um caixao que esta baixando para a sepultura. Ninguem fala nada. Durante a curta viagem, eu repito a Chapar o que disse a Galgani. Ele me responde:

– Acho que da pra arranjar isso. Coragem, Papi.

E acrescenta:

– E Matthieu Carbonieri?

– Me desculpe, eu tinha me esquecido dele. O presidente do tribunal militar solicitou que seja feita uma complementacao de informacao sobre o caso dele antes de tomar uma decisao; isso e bom ou mau sinal?

– E bom sinal, acho eu.

Sou dos primeiros na pequena coluna de doze homens que escala a encosta para chegar a reclusao. Subo rapido, tenho pressa, engracado, de me ver so na minha cela. Apresso tanto o passo, que o guarda me diz.

– Mais devagar, Papillon. Ate parece que voce esta com pressa de chegar nessa casa donde voce saiu ha tao pouco tempo.

Estamos chegando.

– Sentido! Apresento-lhes o comandante da reclusao.

– Lamento que voce tenha voltado para ca, Papillon – diz ele.

E em seguida:

– Reclusos, para ca, etc. Faz seu discurso habitual:

– Predio A, cela 127. E a melhor, Papillon, porque voce fica em frente da porta do corredor e assim tem um pouco mais de luz e e sempre ventilado. Espero que voce mantenha uma boa conduta. E muito tempo, oito anos, mas quem sabe, pode ser que, com um excelente comportamento voce venha a merecer uma comutacao

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