famosa peca e monta-la na jangada, com cada nervura bem encaixada nela. E uma operacao que so se pode fazer de dia. Depois, para a hora da partida. Ela nao podera ser imediata, porque, depois de tirarmos a jangada de seu esconderijo, vai ser preciso rechea-la com os cocos e guardar dentro os viveres.
Ontem contei tudo a Jean Castelli e em que pe estao as coisas. Ele ficou contente por mim, de ver que eu estou quase alcancando o meu objetivo.
– A lua – disse-me ele – esta em quarto crescente.
– Bem sei. Por isso, a meia-noite, ela nao me atrapalha. A mare vazante e as 10 horas, a melhor hora para embarcarmos seria entre 1 e 2 da manha.
Carbonieri e eu resolvemos precipitar os acontecimentos. Amanha de manha, as 9 horas, colocacao da peca. Durante a noite, a partida.
No dia seguinte de manha, em acoes bem coordenadas, indo para o cemiterio, passo pelo jardim e pulo o muro com uma pa. Enquanto retiro a terra que esta por cima das esteiras, Matthieu desloca sua pedra e vem para o meu lado com a peca. Juntos, levantamos as esteiras e as colocamos ao lado. Surge a jangada bem ajeitada, em perfeito estado. Suja de barro, mas perfeita: Tiramos a jangada da cova porque, para encaixar a peca, e preciso espaco dos lados. Encaixamos as cinco nervuras, cada uma bem ajeitada em seu lugar. Para faze-las entrar, somos obrigados a martelar com uma pedra. No
– Nem um movimento ou estao mortos!
Deixamos cair a jangada e levantamos as maos para o alto. Esse guarda, eu o reconheco, e o guarda-chefe da oficina.
– Nao facam a besteira de opor resistencia, estao presos. Reconhecam a situacao em que estao e, pelo menos, salvem as suas peles, que estao por um fio, com a vontade que tenho de passar fogo em voces. Vamos, andem, de maos para o alto! Para o comando!
Ao passar pela porta do cemiterio, encontramos um arabe servente. O guarda diz a ele:
– Mohamed, obrigado pelo favor. Passe pela minha casa amanha de manha, eu lhe dou o que prometi.
– Obrigado – diz o canalha. – Irei sem falta, mas diga, chefe, Bebert Celier tambem tem que me pagar, nao e?
– Acerte com ele – diz o guarda.
Ai eu digo:
– Foi Bebert Celier que nos dedou, chefe?
– Nao fui eu que lhe disse isso.
– Tanto faz quem disse, e bom saber.
O guarda, sempre com a mira da carabina em cima da gente, diz:
– Reviste eles, Mohamed.
O arabe tira a faca enfiada na minha cintura e a faca de Matthieu. Digo a ele:
– Mohamed, voce e bem esperto. Como e que voce nos descobriu?
– Eu trepava no alto de um coqueiro todo dia, para ver onde voces tinham enfiado a jangada.
– Quem lhe mandou fazer isso?
– Primeiro foi Bebert Celier; depois foi o vigilante Bruet.
– Vamos – diz o guarda -, ja houve conversa demais. Agora, voces podem baixar as maos e andar mais depressa.
Os 400 metros que tinhamos de percorrer para chegar ao comando me pareceram o caminho mais comprido de toda a minha vida. Eu estava arrasado. Tanta luta, para nos deixarmos apanhar como uns fodidos.
Meu Deus, como sois cruel contra mim!
Foi um belo escandalo a nossa chegada ao comando. Pois, a medida que iamos avancando, encontravamos mais guardas e vigilantes que se juntavam ao nosso, que continuava nos ameacando com a carabina. Ao chegar, tinhamos uns sete ou oito guardas atras de nos.
O comandante, prevenido pelo arabe que viera correndo na nossa frente, esta a soleira da porta do predio da administracao, bem como Dega e cinco guardas- chefes.
– O que esta acontecendo, Sr. Bruet? – pergunta o comandante.
– Esta acontecendo que apanhei em flagrante delito estes dois homens escondendo uma jangada que me parece estar pronta.
– Papillon, o que tem a dizer?
– Nada, deixo para falar na instrucao.
– Meta-os na cela.
Colocam-me numa cela que da, pela sua janela tapada, para o lado da entrada do comando. A cela e completamente escura, mas ouco as pessoas que falam na rua do comando.
Os acontecimentos se precipitam. As 3 horas nos tiram e nos poem algemas.
Na sala, uma especie de tribunal: comandante, subcomandante, guarda-chefe. Um guarda funciona como escrivao. Sentado, mais afastado, diante de uma mesinha, Dega, com um lapis na mao, tem provavelmente a incumbencia de anotar na hora e fielmente as declaracoes.
– Charriere e Carbonieri, oucam o relatorio que o Sr. Bruet fez contra voces: “Eu, Bruet Auguste, guarda-chefe, diretor da oficina das Ilhas da Salvacao, acuso de roubo, desvio de material pertencente ao Estado, os dois forcados Charriere e Carbonieri. Acuso de cumplicidade o marceneiro Bourset. Acredito tambem poder responsabilizar por cumplicidade Naric e Quenier. Acrescento que surpreendi em flagrante delito Charriere e Carbonieri, que estavam violando a sepultura da Sra. Privat, a qual sepultura servia de esconderijo para ocultar a jangada deles”.
– Que tem voce a dizer? – pergunta o comandante.
– Em primeiro lugar, que Carbonieri nao tem nada a ver com isso. A jangada e planejada para levar um unico homem, eu. Eu o obriguei a me ajudar na retirada das esteiras de cima do tumulo, operacao que eu nao podia fazer sozinho. Portanto, Carbonieri nao e culpado de desvio e roubo de material pertencente ao Estado, nem de cumplicidade na evasao, uma vez que a evasao nao se efetivou. Bourset e um pobre coitado que agiu sob ameaca de morte. Quanto a Naric e Quenier, sao individuos que eu mal conheco. Afirmo que eles nao tem relacao nenhuma com o caso.
– Nao e nada disso que me contou meu informante – diz o guarda.
– Esse tal de Bebert Celier, que e o seu informante, pode muito bem servir-se deste caso para se vingar de alguem, comprometendo-o falsamente. Quem e que pode confiar num dedo-duro?
– Em suma – diz o comandante -, voce e oficialmente acusado de roubo e de desvio de material pertencente ao Estado, de profanacao de sepultura e de tentativa de fuga. Queira ter a bondade de assinar o documento.
– So assino se se acrescentar minha declaracao a respeito de Carbonieri, Bourset e os dois cunhados Naric e Quenier.
– Concordo. Acrescente isso no documento.
Assino. Nao consigo exprimir com clareza tudo o que se desenrola dentro de mim desde esse fracasso de ultima hora. Estou como louco dentro desta cela, mal como, nao ando, mas fumo, sem parar, um cigarro atras do outro. Por sorte, Dega me abastece fartamente de fumo.
Todos os dias, fazemos uma hora de marcha pela manha, ao sol, no patio das celas disciplinares.
Hoje de manha, o comandante veio falar comigo. Coisa curiosa, ele, que seria o mais prejudicado se a fuga tivesse sido levada a efeito, e quem tem menos raiva de mim.
Fala-me, sorrindo, que sua esposa disse que era normal que um homem, se nao esta podre, tente fugir. Com muita habilidade, ele procura ver se confirmo a cumplicidade de Carbonieri. Tenho a impressao de que o convenci, de que lhe expliquei bem que era praticamente impossivel Carbonieri recusar-me ajuda por alguns momentos, para retirar as esteiras.
Bourset mostrou o bilhete de ameaca e o desenho feito por mim. Quanto a Bourset, alias, o comandante esta completamente convencido de que as coisas se passaram assim mesmo. Pergunto a ele a quanto pode, na sua opiniao, chegar essa acusacao de roubo de material. Ele me diz:
– No maximo, dezoito meses.
Em suma, recomeco a subir a encosta do abismo em que afundara. Recebi um recado de Chatal, o enfermeiro. Avisou-me que Bebert Celier esta em quarto isolado, no hospital, com perspectiva de ser desinternado com um diagnostico raro: abscesso no figado. Deve ser um estratagema combinado entre a administracao e o medico, para proteger Celier contra represalias.
Nunca revistaram nem a minha cela nem a mim. Aproveito para mandar vir uma faca. Mando dizer a Naric e a Quenier que requeiram uma acareacao entre o vigia da oficina, Bebert Celier, o marceneiro e eu, e solicitem ao comandante que, apos esse confronto, tome a decisao que achar mais justa em relacao aos dois cunhados: ou prisao preventiva, ou punicao disciplinar, ou liberdade limitada ao interior do campo…
Durante o passeio de hoje, Naric me disse que o comandante aceitou. A acareacao vai ser feita amanha, as 10 horas. A essa audiencia assistira um guarda-chefe que funcionara como instrutor. Passo a noite inteira tentando racionalizar minhas emocoes, pois tenho intencao de matar Bebert Celier. Nao consigo raciocinar. Nao, seria injusto demais que esse homem fosse desinternado apos ter prestado esse servico, e que depois, da Terra Grande, ele se va embora numa bela fuga, como recompensa por ter impedido uma outra fuga. Sim, mas eu, eu posso ser condenado a morte, podem me acusar de premeditacao. Pois que seja. E a minha conclusao, tao desesperado estou. Quatro meses de esperanca, de alegria, de medo de ser apanhado, de inventivas e, afinal, quando estava a ponto de conseguir, acabar tudo tao lamentavelmente pela lingua de um dedo-duro. Aconteca o que acontecer, amanha eu vou ver se mato Celier!
A unica maneira de nao ser condenado a morte e fazer que ele puxe a faca dele. Para conseguir isso, e preciso que ostensivamente eu o faca ver que estou com a minha faca aberta. Ai, e certo que ele puxe a dele. Seria preciso fazer isso um pouco antes, ou imediatamente depois da acareacao. Nao posso mata-lo durante a acareacao, me arrisco a que um guarda me de um tiro de revolver. Conto com a negligencia cronica dos guardas.
Passo a noite inteira lutando contra essa ideia. Nao consigo vence-la. Existem verdadeiramente na vida coisas imperdoaveis. Sei que nao se tem direito de fazer justica com as proprias maos, mas isso e coisa para gente de outra classe social. Como admitir que nao se possa pensar em punir inexoravelmente um individuo tao abjeto? Nao lhe fiz mal algum, a esse rebotalho de caserna, ele nem mesmo me conhece. Portanto, ele me condenou a reclusao sem ter nada contra mim. O que ele fez foi tentar me enterrar para poder renascer. Nao, nao e nao! E impossivel eu deixar ele aproveitar esse seu ato nojento. Impossivel. Sinto que estou perdido. Perdido por perdido, que ele o seja tambem, e ainda mais do que eu. E se me condenarem a morte? Seria bem estupido morrer por um personagem tao ignobil. Consigo chegar a prometer a mim mesmo uma unica coisa: se ele nao puxar a faca dele, nao o mato.
Nao dormi nem um pouco a noite inteira, fumei um maco inteiro de cigarros. Restam-me dois cigarros quando chega o cafe da manha, as 6 horas. Tamanha e a minha tensao, que, mesmo diante do guarda – embora seja proibido -, digo ao distribuidor de cafe:
– Voce podia me arranjar uns cigarros ou um pouco de fumo, com a permissao aqui do chefe? Estou em ponto de bala, Sr. Antartaglia.