– Nao se enxerga nada aqui, por que uma lampada so em lugar de tres?
– Papi, venha por aqui – Grandet me puxa pela manga.
A sala nao esta muito ruidosa. Sente-se que alguma coisa grave vai acontecer ou ja aconteceu.
– Nao tenho mais minha mudinha (faca). Tiraram-me na revista.
– Nao vai precisar dela esta noite.
– Por que?
– O armenio e seu amigo estao na privada.
– Que estao fazendo la embaixo?
– Estao mortos.
– Quem esfriou eles?
– Eu.
– Andou depressa. E os outros?
– Restam quatro na curriola deles. Paulo me deu sua palavra de homem que nao iam se mexer e que esperariam para saber se voce esta de acordo em parar a coisa por ai.
– De-me uma faca.
– Tome, pegue a minha. Fico neste canto. Va falar com eles.
Avanco para a curriola deles. Agora, meus olhos se acostumaram a pouca luz. Enfim, consigo distinguir o grupo. De fato, os quatro estao de pe diante de suas redes, colados uns aos outros.
– Paulo, voce quer falar comigo?
– Sim.
– So, ou na frente dos seus amigos? Que e que voce quer? Deixo, prudentemente, 1 metro e 50 entre mim e eles. Minha faca esta aberta dentro da manga esquerda e o cabo esta bem colado na palma da minha mao.
– Eu queria lhe dizer que acho que o seu amigo foi suficientemente vingado. Voce perdeu seu melhor amigo, nos perdemos dois. Na minha opiniao, isso devia parar por ai. Que acha?
– Paulo, tomo nota da sua oferta. O que podemos fazer, se voce estiver de acordo, e que as duas curriolas se comprometam a nao fazer nada durante oito dias. Enquanto isso, veremos o que se deve fazer. De acordo?
– Esta bem.
Afasto-me.
– Entao, que foi que eles disseram?
– Que acham que Matthieu, com a morte do armenio e de Sans-Souci, foi suficientemente vingado.
– Nao foi, nao – diz Galgani.
Grandet nao diz nada. Jean Castelli e Louis Gravon estao de acordo em fazer um pacto de paz.
– E voce, Papi?
– Primeiro, e preciso lembrar quem matou Matthieu? Foi o armenio. Bem. Propus um acordo. Dei minha palavra a eles, e eles toparam, que durante oito dias ninguem vai fazer nada.
– Nao quer vingar Matthieu? – Diz Galgani.
– Velho, Matthieu ja foi vingado, dois morreram por ele. Por que matar os outros?
– Pelo menos eles sabiam? Isso e que precisamos descobrir.
– Boa noite a todos, desculpem-me. Vou dormir, se puder. Tenho necessidade de ficar sozinho e me deito em minha rede.
Sinto uma mao que desliza por mim e retira suavemente a faca. Uma voz cochicha docemente na noite:
– Durma se puder, Papi, durma tranquilo. Nos, de qualquer jeito, cada um por sua vez, vamos ficar de guarda.
A morte de meu amigo, tao brutal, repugnante, aconteceu sem motivo serio. O armenio matou-o porque, a noite, no jogo, ele o obrigara a pagar uma aposta de 170 francos. Aquele corno se sentiu diminuido porque foi obrigado a tomar uma atitude diante de trinta ou quarenta jogadores. Com receio de ser atacado dos dois lados por Matthieu e Grandet, nao pudera deixar de obedecer.
Covardemente, matou um homem que era o tipo do aventureiro limpo e direito em seu meio. Esse golpe me atingiu fortemente e nao tive senao uma satisfacao, a de que os assassinos nao viveram mais do que algumas horas depois de seu crime. E bem pequena.
Grandet, como um tigre, com a rapidez digna de um campeao de florete, cortou-lhes o pescoco, antes que tivessem tempo de se por em guarda. Imagino: o lugar onde cairam deve estar inundado de sangue. Penso, bestamente: “Tenho vontade de perguntar quem os atirou na privada”. Mas nao quero falar. Com as palpebras fechadas, vejo o sol tragicamente vermelho e violeta, clareando com seus ultimos raios esta cena dantesca: os tubaroes disputando meu amigo… E aquele tronco de pe, ja com o antebraco amputado, avancando para o bote!… Entao, e verdade que o sino chama os tubaroes e que aqueles sujos sabem que vao lhes servir a boia quando o sino toca… Vejo ainda aquelas dezenas de barbatanas, lugubres reflexos prateados, passar como submarinos, girando em circulo… Realmente, eram mais de cem… Para Matthieu, para o meu amigo, acabou-se: o caminho da podridao fez seu trabalho ate o fim.
Morto com uma facada, por uma bagatela, aos quarenta anos! Pobre amigo. Eu, por mim, nao posso mais. Nao. Nao. Nao. Quero que os tubaroes me digiram, mas vivo, arriscando-me pela liberdade, sem sacos de farinha, sem pedra, sem cordas. Sem espectadores, nem forcados, nem guardas. Sem sino. Se tenho que virar boia, pois bem… vao me apanhar vivo, lutando contra os elementos para chegar a alcancar a Terra Grande.
Acabou-se, bem acabado. Nada de fuga muito bem montada. A Ilha do Diabo, dois sacos de cocos e deixar tudo, seja como for, nas maos de Deus.
Afinal, nao vai passar de uma questao de resistencia fisica. Quarenta e oito ou sessenta horas? Sera que um tempo tao longo de imersao na agua do mar, e mais o esforco dos musculos das coxas, contraidos sobre os sacos de cocos, nao vao em certo momento paralisar minhas pernas? Se tenho a chance de ir a Ilha do Diabo, farei as tentativas. Primeiro sair de Royale e ir a Ilha do Diabo. Depois verei.
– Voce esta dormindo, Papi?
– Nao.
– Quer um pouco de cafe?
– Se voce quiser trazer…
Sento-me sobre a rede, aceitando o quarto de cafe quente que Grandet me estende com um cigarro aceso.
– Que horas sao?
– Uma hora da manha. Entrei de guarda a meia-noite, mas, como vi que voce nao parava de se mexer, achei que nao estava dormindo.
– Tem razao. A morte de Matthieu me transtornou, mas seu enterro com os tubaroes me afetou ainda mais. Aquilo foi horrivel, sabe?
– Nao me diga nada, Papi, suponho o que possa ter sido. Voce nao devia ter ido.
– Pensava que a estoria do sino era conversa. Depois, com um fio de ferro segurando a grande pedra, eu jamais teria acreditado que os tubaroes iam ter tempo de apanha-lo na queda. Pobre Matthieu, vou continuar a ver aquela horrivel cena pelo resto da minha vida. E voce, como fez para eliminar tao depressa o armenio e Sans-Souci?
– Eu estava na ponta da ilha, colocando uma porta de ferro no acougue, quando soube que ele tinha matado o nosso amigo. Era meio-dia. Em lugar de subir para o barracao, fui para a oficina com a desculpa de consertar a fechadura. Pude encaixar um punhal, afiado dos dois lados, num tubo de 1 metro. O cabo do punhal era oco e o tubo tambem. Entrei no barracao, as 5 horas, com o tubo na mao. O guarda me perguntou que era aquilo, respondi que a travessa de madeira de minha cama quebrara e que eu ia utilizar aquele tubo naquela noite. Ainda era dia quando entrei na sala, mas havia deixado o tubo no lavatorio. Antes da chamada, tornei a pega- lo. A noite comecava a cair. Rodeado por nossos amigos, encaixei rapidamente o punhal no tubo. O armenio e Sans-Souci estavam de pe em seus lugares, diante de suas redes, Paulo um pouco para tras. Voce sabe, Jean Castelli e Louis Gravon sao muito valentes, mas sao velhos e falta-lhes agilidade para lutar num tumulto bem organizado.
– Eu queria agir antes que voce chegasse, para evitar que se metesse naquilo. Com seus antecedentes, se fossemos apanhados, voce ia pegar o maximo. Jean foi ao fundo da sala e apagou um dos lampioes; Gravon, do outro lado, fez a mesma coisa. A sala estava quase sem luz, so com um lampiao no meio. Eu tinha uma grande lanterna de bolso, que Dega me deu. Jean saiu na frente, eu atras. Quando chegou perto deles, ergueu o braco e acendeu a lanterna. O armenio, ofuscado, levou o braco esquerdo aos olhos, eu tive tempo de atravessar-lhe o pescoco com minha lanca. Sans-Souci, tambem ofuscado, atirou a faca para a frente, sem saber bem para onde, no vazio. Dei-lhe um golpe tao forte com minha lanca, que o transpassei de lado a lado. Paulo se atirou de barriga no chao e rolou para baixo das redes. Como Jean apagara a lanterna, desisti de perseguir Paulo sob as redes, foi o que o salvou.
– E quem os arrastou para a privada?
– Nao sei. Acho que foram os rapazes da curriola deles mesmo, para evitar maiores encrencas.
– Mas devia haver um mar de sangue desgracado…
– Isso mesmo. Completamente degolados, devem ter-se esvaziado de toda a resina. O golpe da lanterna me ocorreu enquanto eu preparava a minha lanca. Um guarda, na oficina, estava trocando as pilhas da dele. Isso me deu a ideia e logo falei com Dega para que me arranjasse uma. Eles podem fazer uma revista em regra. A lanterna ja saiu daqui e foi devolvida a Dega por um carcereiro arabe, o punhal tambem. Portanto, nada de bomba por esse lado. Nada tenho a me reprovar. Eles mataram nosso amigo com os olhos cheios de sabao, eu os matei com os olhos cheios de luz. Estamos quites. Que acha, Papi?
– Voce fez muito bem e nao sei como lhe agradecer por ter agido tao depressa para vingar nosso amigo e, ainda por cima, por ter tido a ideia de me manter afastado dessa historia.
– Nao falemos nisso. Fiz o meu dever: voce sofreu muito e quer tanto ser livre… Eu e que tinha de agir.
– Obrigado, Grandet. Sim, quero ir embora, mais do que nunca. Ajude-me, tambem, para que esse negocio pare por ai. Com toda a franqueza, ficaria muito surpreendido se o armenio tivesse posto sua curriola a par antes de agir. Paulo nao teria aceitado um assassinato tao covarde. Ele sabia as consequencias.
– Tambem penso assim. So Galgani acha que todos eles sao culpados.
– Vamos ver o que vai acontecer as 6 horas. Nao vou sair para fazer limpeza nas latrinas. Vou fingir que estou doente, para assistir aos acontecimentos.
Cinco horas da manha. O guarda do barracao se aproxima de nos: