altura em minha cama. Como quer que eu possa aguentar tudo isso e dormir? Esta noite o troco nao parou. Assim que comeco a fechar os olhos, pam!, a corrente chega. Todo o meu corpo se distende, como uma mola que se solta. Nao posso mais, doutor! Avise a todo mundo que o primeiro que eu descobrir que e cumplice do cara vai ser esfriado. Nao tenho arma, e verdade, mas tenho bastante forca para estrangula-lo, seja ele quem for. Para bom entendedor, meia palavra basta! E deixe-me em paz com seus “bons dias” hipocritas e seus “como vai, Papillon?” Repito, doutor: pare seu carro!

O incidente deu resultado. Chatal me disse que o medico avisou aos guardas para prestarem muita atencao. Que nunca abrissem a porta de minha cela sem serem dois ou tres, e que falassem sempre gentilmente comigo. Ele esta sofrendo de mania de perseguicao, disse o medico, e preciso manda-lo o quanto antes para o asilo.

– Acho que, com um vigilante, eu posso me encarregar sozinho de leva-lo para o asilo – propos Chatal, para evitar que me enfiem a camisa-de-forca.

– Papi, voce comeu bem?

– Sim, Chatal, estava bom.

– Quer vir comigo e com o Sr. Jeannus?

– Aonde nos vamos?

– Ate o asilo, levar uns remedios. Assim, voce dara um passeio.

– Vamos.

E nos tres saimos do hospital a caminho do asilo. Enquanto andamos, Chatal fala; depois, a certo momento, quando estamos quase chegando, diz:

– Voce nao esta cansado de ficar no barracao, Papillon?

– Oh, sim. Estou cheio, principalmente depois que meu amigo Carbonieri nao esta mais la.

– Por que nao fica alguns dias no asilo? Assim, o cara do aparelho talvez nao o encontre para lhe dar choques.

– E uma ideia, meu caro, mas acha que vao me aceitar, mesmo eu nao sendo doente da cabeca?

– Deixe comigo, eu falo por voce – diz o guarda, todo feliz ao ver que eu cai na falsa armadilha de Chatal.

Enfim, eis-me no asilo, com uma centena de loucos. Nao e mole viver com malucos! Em grupos de trinta a quarenta, tomamos ar no patio, enquanto os enfermeiros limpam as celas. Todo mundo vive completamente nu. Felizmente faz calor. Para mim, deixaram-me a cueca.

Acabo de receber um cigarro aceso do enfermeiro. Sentado ao sol, penso em que ja estou ‘ali ha cinco dias e nao consegui entrar em contato com Salvidia.

Um louco se aproxima de mim. Sei a historia dele, chama-se Fouchet. Sua mae havia vendido a casa para enviar-lhe 15 000 francos por um vigilante, a fim de que ele se evadisse. O guarda devia ficar com 5 000 e entregar-lhe 10 000. O tal guarda embolsara tudo e depois partira para Caiena. Quando Fouchet soube, por outra via, que a mae tinha lhe enviado a grana e perdera tudo inutilmente, tornara-se louco furioso e no mesmo dia atacara os vigilantes. Dominado, nao tivera tempo de causar mal a ninguem. Desde esse dia, ha tres ou quatro anos, ele esta com os loucos.

– Quem e voce – olho esse pobre homem, jovem, cerca de trinta anos, plantado diante de mim e que me interroga.

– Quem sou? Um homem como voce, nem mais, nem menos.

– Sua resposta e besta. Vejo que e um homem, pois voce tem um pau e culhoes: se voce fosse mulher, teria um buraco. Estou perguntando quem e voce. Quer dizer, como se chama.

– Papillon.

– Papillon? Voce e uma borboleta? Coitado de voce. Uma borboleta voa e tem asas, onde estao as suas?

– Perdi.

– Trate de encontra-las, assim voce podera fugir. Os guardas nao tem asas. Com as suas asas, voce vai sacanear eles. Me de o cigarro.

Antes que eu tenha tempo de da-lo, ele o arranca de meus dedos. Depois, senta-se a minha frente e fuma com delicia.

– E voce, quem e? – pergunto-lhe.

– Eu, eu sou o pato. Cada vez que eles tem que me dar alguma coisa que me pertence, me fazem de bobo.

– Por que?

– Porque fazem. Tambem, eu mato guardas o mais que posso. Esta noite, enforquei dois. Mas nao conte nada a ninguem.

– Por que voce os enforcou?

– Porque eles roubaram a casa de minha mae. Imagine so, minha mae me mandou a casa dela e eles, como a acharam bonita, ficaram com ela e moram la dentro. Nao fiz bem em enforca-los?

– Tem razao. Assim eles nao podem aproveitar a casa da sua mae.

– Aquele guarda gordo, que voce esta vendo la embaixo, atras das grades, esta vendo? Ele tambem mora na casa. Eu vou acabar com ele tambem, pode confiar no que digo.

Nesse ponto, ele se levanta e vai embora.

Ufa! Nao e divertido ser obrigado a viver no meio de loucos, e e perigoso. A noite, ha gritos de todos os lados; e, quando ha lua cheia, os loucos ficam mais excitados do que nunca. Como a lua pode influir na agitacao dos loucos? Nao posso explicar, mas constatei isso uma porcao de vezes.

Os guardas fazem relatorios sobre os loucos em observacao. Comigo, fazem experiencias. Por exemplo, esquecem-se de me levar para o patio, de proposito. Esperam para ver se eu reclamo. Ou, entao, nao me dao uma das refeicoes. Tenho uma vara com um barbante e faco os gestos de um pescador.

– Estao mordendo a isca, Papillon?

– Nao podem morder! Imagine que, sempre que eu pesco, ha um peixinho que me acompanha por todo lado e, quando um grande vai morder, o pequeno adverte: “De o fora, nao morda, e Papillon que esta pescando”. Por isso, nunca consigo pescar nada. Mas continuo assim mesmo. Talvez, um dia, apareca um peixe que nao acredite nele.

Ouco o guarda dizer ao enfermeiro:

– Entao, ele esta bem ruinzinho!

Quando me fazem comer na mesa comum do refeitorio, jamais posso acabar o prato de lentilhas. Ha um gigante, de 1 metro e 90, pelo menos, com bracos, pernas e tronco peludos como os de um macaco, que me escolheu como vitima. Primeiro, senta-se sempre a meu lado. As lentilhas sao servidas muito quentes; entao e preciso esperar que esfriem, para a gente poder comer. Com uma colher de madeira, pego um pouco, assoprando, e consigo comer algumas colheradas. Ele, Ivanhoe – ele pensa que e Ivanhoe -, pega seu prato, poe as maos em funil, e engole tudo num piscar de olhos. Depois, pega o meu, rispidamente, e faz a mesma coisa. Depois de limpar o prato, joga-o de maneira ruidosa a minha frente, olhando-me com os enormes olhos injetados de sangue, com o ar de quem diz: “Viu como se come lentilhas?” Comeco a ficar chateado com Ivanhoe e, como ainda nao fui classificado como louco, decidi usa-lo para dar o golpe final. Estamos de novo num dia de lentilhas. Ivanhoe nao me tapeara mais. Esta sentado a meu lado. Seu rosto de idiota esta radiante: saboreia antecipadamente a alegria de comer suas lentilhas e as minhas. Puxo para a minha frente um jarro pesado e grande, cheio de agua. Assim que o gigante pega meu prato, ergue-o e comeca a deixar as lentilhas cairem em sua garganta, levanto-me e, com toda forca, quebro o jarro de agua na cabeca dele. O gigante desaba com um grito de animal. No mesmo instante, todos os loucos comecam a se atirar uns contra os outros, armados com pratos. Desencadeia-se uma balburdia espantosa. O tumulto coletivo e orquestrado por gritos de todos os tipos.

Carregado, encontro-me logo na minha cela, onde quatro fortes enfermeiros me puseram depressa e sem contemplacoes. Grito como um perdido que Ivanhoe me roubou a carteira com a cedula de identidade. Desta vez, consegui! O medico decidiu me classificar como irresponsavel por meus atos. Todos os guardas estao de acordo em reconhecer que sou um louco pacifico, mas que tenho momentos muito perigosos. Ivanhoe esta com um belo curativo na cabeca. Parece que a abri em mais de 8 centimetros. Felizmente, ele nao passeia nas mesmas horas que eu.

Pude falar com Salvidia. Ja conseguiu a duplicata da chave da despensa onde os toneis estao guardados. Esta tentando reunir fio de ferro suficiente para uni-los. Digo-lhe que tenho medo de que os fios de ferro rebentem devido a pressao que os toneis irao fazer no mar; que seria melhor ter cordas, seriam mais elasticas. Vai tentar arranja-las, deve haver cordas e fios de ferro. E preciso que ele faca, tambem, tres chaves: uma da minha cela, uma do corredor que da para ela e uma da porta principal do asilo. As rondas sao pouco frequentes. Um so guarda para cada turno de quatro horas. Das 9 horas a 1 hora da manha e da 1 as 5 horas. Dois dos guardas, quando estao de vigia, dormem o tempo todo e nao fazem nenhuma ronda. Contam com o condenado-enfermeiro que fica de turno com eles. Portanto, tudo vai ser questao de paciencia. Um mes, no maximo, para darmos o golpe.

O guarda-chefe me deu um cigarro ruim, aceso, quando entrei no patio. Mesmo ruim, ele me parece delicioso. Olho esse rebanho de homens nus, cantando, chorando, fazendo gestos desordenados, falando sozinhos. Todos molhados ainda do banho que cada um toma antes de entrar no patio, seus corpos martirizados por surras recebidas ou por pancadas que eles mesmos se deram, marcas dos cordoes da camisa-de-forca apertada demais. E bem o espetaculo do fim do caminho da podridao. Quantos desses loucos foram reconhecidos como responsaveis por seus atos pelos psiquiatras da Franca? Titin – a gente o chama de Titin – e do meu grupo de 1933. Matou um cara em Marselha, depois pegou um fiacre, pos sua vitima dentro, mandou que o cocheiro tocasse para um hospital e, ao chegar la, disse: “Tomem, cuidem dele, acho que esta doente”. Preso na mesma hora, os jurados tiveram o descaramento de nao lhe reconhecer nenhuma atenuante, nem ao menos a da irresponsabilidade. No entanto, e preciso que a gente ja esteja biruta para fazer um negocio desses. O mais imbecil dos caras, normalmente, saberia que ia ser fisgado. Ai esta Titin, sentado a meu lado. Tem uma disenteria permanente. E um verdadeiro cadaver ambulante. Olha-me com seus olhos cinzentos, sem inteligencia. Diz:

– Tenho macaquinhos na barriga, companheiro. Ha uns que sao maus. Eles me mordem os intestinos e e por isso que cago sangue, quando eles estao zangados. Outros, uma raca de peludos, bem cheios de pelos, tem as maos suaves como a pluma. Eles me acariciam docemente e impedem que os macacos maus me mordam. Quando esses macaquinhos bons querem me defender, nao cago sangue.

– Voce se lembra de Marselha, Titin?

– Puxa, se me lembro de Marselha. Muito bem, ate. A praca da Bolsa com os botecos e a rapaziada…

– Voce lembra do nome de alguns? O Ange, o Lucre? O Gravat? Clement?

– Nao, nao me lembro de nomes, so me lembro de um cocheiro sacana que me levou ao hospital com um amigo doente e que disse que eu era o causador da doenca do meu amigo. E so.

– E os seus amigos?

– Nao sei.

Pobre Titin, dou-lhe minha ponta de cigarro e me levanto com uma imensa piedade no coracao por esse pobre ser que vai morrer como um cao. Sim, e muito perigoso coabitar com loucos, mas o que fazer? Em todo caso, e o unico modo, suponho, de preparar uma fuga sem condenacao.

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