chegado. Eu nao conhecia esse cara, mas ele me conhecia bem, e disse:
– Nao vale a pena continuar a luta, meu chapa.
– Que quer dizer?
– Deixe disso! Pensa que nao manjei a sua jogada? Sou enfermeiro de birutas ha sete anos e desde a primeira semana percebi que voce era um simulador.
– Entao, e dai?
– Dai, lamento sinceramente que tenha fracassado em sua fuga com Salvidia. Para ele, isso custou a vida. Sinceramente, tenho pena, porque era um bom amigo, apesar de ele nao ter me dito nada, mas nao o quero mal por isso. Se precisar de alguma coisa, e so me dizer, ficarei contente em lhe ser util.
Seus olhos tem um olhar tao franco, que nao duvido de sua retidao. E, se nao ouvi ninguem falar bem dele, tambem nao ouvi falar mal; portanto, deve ser um bom rapaz.
Pobre Salvidia! Deve ter havido um barulhao quando perceberam que ele sumiu. Encontraram os pedacos dos toneis devolvidos pelo mar. Tem certeza que ele foi devorado pelos tubaroes. O medico fez um barulho dos diabos por causa do oleo jogado fora. Diz que, com a guerra, nao e facil de se conseguir oleo.
– Que me aconselha a fazer?
– Vou fazer com que nomeiem voce para o grupo que sai do asilo todos os dias para ir buscar viveres no hospital. Sera um passeio. Comece a se comportar bem. E, em dez conversas, mantenha oito dentro do bom senso. Nunca se deve sarar muito depressa.
– Obrigado. Como e seu nome?
– Dupont.
– Obrigado. Nao vou esquecer seus bons conselhos.
Faz quase um mes que tentei a fuga. Seis dias depois encontraram o corpo do meu companheiro flutuando. Por um acaso inexplicavel, os tubaroes nao o comeram. Mas outros peixes devoraram, parece, suas entranhas e uma parte da perna, segundo me conta Dupont. Seu cranio estava quebrado. Devido ao adiantado grau de decomposicao, nao fizeram autopsia. Pergunto a Dupont se ha possibilidade de eu mandar uma carta. Seria preciso faze-la chegar as maos de Galgani, para que a enfie dentro do saco do correio na hora de sela-lo.
Escrevo para a mae de Romeo Salvidia, na Italia:
“Minha senhora, seu filho morreu sem ferros nos pes. Morreu no mar, corajosamente. Morreu livre, lutando valentemente para conquistar sua liberdade. Prometemo-nos mutuamente escrever as nossas familias se alguma desgraca acontecesse a um de nos. Cumpro este doloroso dever, beijando-lhe filialmente as maos.
Um amigo de seu filho,
Papillon”.
Depois de cumprido o meu dever, decido nao pensar mais nesse pesadelo. E a vida. Resta sair do asilo, chegar a Ilha do Diabo, custe o que custar, e tentar outra fuga.
O guarda nomeou-me jardineiro de seu jardim. Ha dois meses que me comporto bem e fiz com que ele me apreciasse de tal maneira, que o viado do guarda nao quer me largar mais. O cara de Auvergne disse que, em sua ultima visita, o medico queria me fazer sair do asilo para me por no barracao em “saida de experiencia”. O guarda se opos, dizendo que seu jardim jamais estivera tao bem cuidado.
Entao, hoje de manha, arranquei todos os morangueiros e joguei-os no lixo. No lugar de cada morangueiro, plantei uma pequena cruz. Tantos morangueiros, tantas cruzes. Contar o escandalo nao vale a pena. O gordo e pesado guarda-chefe quase estourou, tao grande foi sua indignacao. Ele babava e bufava, querendo falar, mas os sons nao queriam sair. Finalmente, sentado num carrinho de mao, ele chorou lagrimas verdadeiras. Fui um tanto pesado, mas o que fazer?
O medico nao levou a coisa para o lado tragico. Esse doente, insiste, deve ser posto em “saida de experiencia” e ir para o barracao, a fim de se readaptar a vida normal. Foi de estar sozinho no jardim que lhe veio essa ideia bizarra.
– Diga-me, Papillon, por que arrancou os morangueiros e pos cruzes no lugar?
– Nao posso explicar essa acao, doutor, e peco desculpas ao vigilante. Ele gostava tanto dos morangueiros, que estou realmente desolado. Vou pedir ao bom Deus que lhe de outros.
Eis-me no barracao. Reencontro meus amigos. O lugar de Carbonieri esta vazio, ponho minha rede ao lado desse espaco vazio, como se Matthieu continuasse la.
O doutor me fez bordar em meu blusao: “Em tratamento especial”. Ninguem, a nao ser o medico, pode me dar ordens. Ele me ordenou que catasse folhas, das 8 as 10 horas da manha, diante do hospital. Bebi o cafe e fumei alguns cigarros em companhia do medico, em uma poltrona, diante da casa. Sua mulher esta sentada conosco e o medico tenta fazer com que eu fale de meu passado, ajudado pela sua mulher.
– E entao, Papillon, e depois? Que foi que lhe aconteceu depois que deixou os indios pescadores de perolas?…
Passo todas as tardes com essas duas pessoas admiraveis.
– Venha me visitar todos os dias, Papillon – disse-me a mulher do doutor. – Primeiro, porque quero ve-lo; depois, para ouvir as historias que lhe aconteceram.
Todo dia, passo algumas horas com o medico e sua mulher, as vezes so com a mulher dele. Obrigando-me a contar minha vida passada, eles estao persuadidos de que isso contribui para me equilibrar definitivamente. Decidi pedir ao medico que me mande a Ilha do Diabo.
Esta feito: devo partir amanha. Esse doutor e sua mulher sabem por que vou a Ilha do Diabo. Foram tao bons comigo, que nao quis engana-los:
– Doutor, nao aguento mais esta prisao, faca com que me mandem para a Ilha do Diabo, faca com que eu escape ou estoure, mas que isto acabe!
– Eu o compreendo, Papillon. Este sistema de repressao me desgosta, esta administracao e podre. Entao, adeus e boa sorte!
10 A ILHA DO DIABO
E a menor das Ilhas da Salvacao. Aquela que fica mais ao norte, tambem, e a mais batida pelo vento e pelas ondas. Depois de uma baixada estreita que se estende ao longo do mar por todo o litoral, eleva-se rapidamente ate um planalto onde estao instalados o posto de guarda dos vigilantes e uma unica enfermaria para os presos, uns dez mais ou menos. Para a Ilha do Diabo, oficialmente, nao sao mandados os condenados comuns, mas apenas os presos e deportados politicos.
Vivem cada um numa casinha coberta de folhas-de-flandres. As segundas-feiras recebem os viveres crus para a semana e todos os dias recebem um pao. Sao uns trinta. O enfermeiro e o Dr. Leger, que envenenou toda a familia em Lyon ou ai por perto. Os politicos nao se dao com os comuns e as vezes escrevem para Caiena, queixando-se de um ou outro preso comum da ilha. Entao, este e removido e levado de volta a Royale.
Um cabo liga Royale a Ilha do Diabo, porque muito frequentemente o mar esta agitado demais para que o barco de Royale possa aportar numa especie de pontao de cimento.
O chefe dos guardas do presidio (sao tres) chama-se Santori. E um grandalhao sujo e muitas vezes fica com uma barba de oito dias.
– Papillon, espero que voce se porte bem na Ilha do Diabo. Nao me encha o saco e eu vou deixar voce sossegado. Suba para o presidio, vejo voce la.
Na enfermaria encontro seis forcados: dois chineses, dois negros, um sujeito de Bordeus e um de Lille. Um dos chineses me conhece bem, estava junto comigo em Saint-Laurent, preso preventivamente por assassinato. E um indochines, um sobrevivente da revolta do presidio de Poulo Condor, na Indochina.
Pirata de profissao, atacava os barcos e as vezes assassinava toda a tripulacao com a familia. Excessivamente perigoso, tem no entanto uma maneira de viver em comum com os outros presos que capta a confianca e a simpatia.
– Como vai, Papillon?
– Bem. E voce, Chang?
– Vai indo. Aqui a gente esta bem. Voce comer comigo. Voce dormir la, perto de mim. Eu cozinhar duas vezes por dia. Voce pegar peixe. Aqui bastante peixe.
Santori chega:
– Ah, ja se instalou? Amanha de manha, voce vai com Chang dar de comer aos porcos. Ele leva os cocos e voce parte os cocos com um machado. Precisa separar os cocos moles para os leitoes que nao tem dentes. A tarde, as 4 horas, a mesma coisa. Excetuadas estas duas horas, uma de manha e outra de tarde, voce esta livre para fazer o que quiser na ilha. Cada pescador tem que levar 1 quilo de peixe para meu cozinheiro, ou de lagostim. Assim, todo mundo fica satisfeito. Esta certo?
– Certo, Sr. Santori.
– Sei que voce e um fujao inveterado, mas, como daqui a fuga e impossivel, nem vou ligar. De noite, voce fica trancado, mas eu sei que ha alguns que fogem assim mesmo. Voce podia ficar como guarda dos deportados politicos. Todos eles tem um facao de mato. Se voce chegar perto das casas deles, vao pensar que voce vai roubar um frango ou ovos. Eles podem ate matar ou machucar voce, porque eles enxergam voce, e voce nao os ve.
Depois de dar de comer a mais de duzentos porcos, fiquei andando pela ilha o dia todo, acompanhado por Chang, que a conhece a fundo. Um velho, com uma longa barba branca, cruzou conosco na picada que da volta a ilha pela praia. E um jornalista de Nova Caledonia que, durante a guerra de 1914, escrevia contra a Franca, a favor da Alemanha. Vi tambem o porco que mandou fuzilar Edith Cavell, a enfermeira inglesa ou belga que salvou os aviadores ingleses em 1917. Este repugnante personagem, grande e gordo, tinha um pau na mao e sovava um peixe enorme, de mais de 1 metro e 50 de comprimento e grosso como a minha coxa.
O enfermeiro tambem mora numa dessas casinhas que deveriam ser somente dos presos politicos.
O Dr. Leger e uma otima pessoa. Sujo e atarracado, dele so o rosto e limpo, um rosto emoldurado de cabelos grisalhos e muito compridos sobre o pescoco e as temporas. Suas maos estao avermelhadas de feridas mal cicatrizadas, provavelmente provocadas pelo atrito com as asperezas das rochas do mar.
– Se precisar de alguma coisa, venha aqui, que eu arranjo para voce. Venha so se estiver doente. Nao gosto de que venham me procurar e menos ainda de me procurar para bater papo comigo. Vendo ovos e de vez em quando um frango ou uma galinha. Se matar um leitao escondido, traga um pernil e eu lhe dou um frango e seis ovos. Ja que voce esta aqui, leve este vidro com 120 capsulas de quinino. Voce veio aqui para fugir, se por milagre voce conseguir, vai precisar disso na mata.
Pesco quantidades astronomicas de salmonetes de manha e de noite. Mando de 3 a 4 quilos todos os dias para a cozinha dos guardas. Santori esta radiante,