nunca ganhou tanta variedade de peixe e de lagostim. As vezes, mergulhando na mare baixa, pego trezentos lagostins.

O medico Germain Guibert veio ontem a Ilha do Diabo. Como o mar estava bom, veio o comandante de Royale e a Sra. Guibert. Esta mulher admiravel e a primeira a por os pes nesta ilha. De acordo com o comandante, jamais um civil botou os pes aqui. Pude falar mais de uma hora com ela. Foi comigo ate o banco onde Dreyfus sentava olhando para o mar, em direcao a Franca que o rejeitara.

– Se esta pedra polida pudesse contar os pensamentos de Dreyfus… – diz, acariciando a pedra. – Papillon, esta e seguramente a ultima vez que nos nos vemos, porque todos dizem que daqui a pouco voce vai tentar nova fuga. Vou rezar para voce conseguir. E eu lhe peco que, antes de partir, fique um minuto nesse banco que eu acariciei e peco que voce o acaricie tambem ao se despedir dele.

O comandante me deu a autorizacao para mandar pelo cabo, sempre que eu quiser, lagostins e peixe para o doutor. Santori concordou.

– Adeus, doutor, adeus senhora.

Despeco-me deles o mais naturalmente possivel antes que a chalupa se afaste do pontao. Os olhos da Sra. Guibert se fixam em mim, imensos, francos, como para dizer: “Lembre-se sempre de nos, e nos nao esqueceremos de voce nunca mais”.

O banco de Dreyfus fica bem no. alto da ponta norte da ilha. Domina o mar a mais de 40 metros.

Nao fui pescar hoje. Num viveiro natural, tenho mais de 100 quilos de salmonetes e, numa pipa de ferro presa por uma corrente, mais de quinhentos lagostins. Assim, nao preciso me ocupar com a pesca. Tenho o suficiente para mandar para o medico, para Santori, para o chines e para mim.

Estamos em 1941, ha onze anos que estou na cadeia. Tenho 35 anos. Passei os dez anos mais bonitos da minha vida na cela ou na masmorra. Tive apenas sete meses de liberdade completa com a minha tribo de indios. Os filhos que fui obrigado a ter com minhas duas mulheres indias estao agora com oito anos. Que horror! Como o tempo passou depressa! Mas, olhando para tras, contemplo estas horas, estes minutos, e recordo como custaram a passar quando os’ suportava, como cada um deles ficou integrado nesse calvario.

Trinta e cinco anos! Onde estao Montmartre, a Praca Blanche, Pigalle, o salao de baile do Petit Jardin, o bulevar de Clichy? Onde esta Nenette, com seu rosto de madona, verdadeiro camafeu, Nenette que, com seus grandes olhos negros, desesperada, gritou no tribunal: “Nao se preocupe, meu querido, estarei com voce ate la”? Onde esta Raymond Hubert com seu “Seremos absolvidos”? Onde estao os doze viados do juri? E os guardas? e o promotor? Que e feito de meu pai e das familias que minhas irmas constituiram sob o jugo alemao?

Quantas fugas! Vejamos, quantas?

A primeira, quando fugi do hospital, depois de derrubar os guardas a cacetadas.

A segunda na Colombia, em Rio Hacha, A mais bonita. La, eu tinha sido completamente vitorioso. Por que fui deixar minha tribo? Um estremecimento de desejo percorre meu corpo. Tenho a impressao de sentir ainda dentro de mim as sensacoes dos atos do amor com as duas irmas indias.

Depois a terceira, a quarta, a quinta e a sexta em Barranquilla. Quanto azar nessas fugas! O golpe da missa, tao desgracadamente malogrado! A dinamite que explodiu! Clousiot, que ficou pendurado pelas calcas! E a demora do narcotico!

A setima, em Royale, onde aquele puto do Bebert Celier me denunciou. Aquela teria dado certo, claro, se nao fosse por ele. Se ele tivesse calado a boca, eu estaria livre com meu pobre amigo Carbonieri.

A oitava, a ultima, a do asilo. Um erro, um grande erro da minha parte, ter deixado o italiano escolher o lugar de entrar no mar. Duzentos metros mais para baixo, perto do matadouro, teriamos certamente mais facilidade para soltar a jangada.

Este banco – onde Dreyfus, condenado inocente, encontrou a coragem de continuar a viver apesar de tudo – deve servir-me para alguma coisa. Nunca me darei por vencido. Tentarei outra fuga.

Sim, esta pedra lisa, polida, em cima desse precipicio, onde as ondas batem enraivecidas sem parar, sera para mim um apoio e um exemplo. Dreyfus nunca se deixou abater e sempre, ate o fim, lutou pela sua reabilitacao. E verdade que ele teve Emile Zola com seu famoso Eu Acuso para defende-lo. Todavia, nao fosse um homem de muita fibra, diante de tanta injustica teria se jogado com certeza no abismo, deste mesmo banco. Ele aguentou o golpe. Nao devo ser menos forte do que ele e preciso largar de lado essa ideia de tentar uma nova fuga com a alternativa: vencer ou morrer. Preciso esquecer a palavra morrer, para pensar somente em vencer e ser livre.

Nas longas horas que passo sentado no banco de Dreyfus, meus pensamentos vagueiam, sonham com o passado e constroem um futuro cor-de-rosa. Meus olhos ficam frequentemente ofuscados por tanta luz, pelos reflexos da crista das ondas. De tanto olhar sem realmente enxergar este mar, conheco todos os caprichos possiveis e imaginaveis das ondas que acompanham o vento. O mar, inexoravelmente, sem jamais se cansar, ataca os rochedos mais avancados da ilha. Ele os escava, corroi as rochas, parece dizer a Ilha do Diabo: “Va embora, voce precisa desaparecer, voce me estorva quando eu me lanco sobre o continente, voce barra o meu caminho. E por isso que cada dia, sem parar, eu arranco um pedacinho de voce”. Quando ha tempestade, o mar se entrega a loucura e nao apenas raspa, arrancando o que consegue destruir, mas ainda procura penetrar em todos os cantos para, pouco a pouco, minar por baixo esses gigantes de pedra, que parecem dizer: “Por aqui nao se passa”.

Entao descubro uma coisa importantissima. Justo embaixo do banco de Dreyfus, diante de imensas rochas em forma de ferradura, as ondas atacam, arrebentam e se retiram com violencia. As toneladas de agua nao podem se dispersar, porque ficam presas entre esses dois penedos que formam uma ferradura de cerca de 5 ou 6 metros de largura. A frente fica o penhasco, portanto a agua das ondas nao tem outra saida senao voltar para o mar.

Isso e muito importante porque, se na hora em que a onda bate e volta, eu me jogar do rochedo com um saco de cocos, mergulhando diretamente dentro dela, sem sombra de duvida ela me arrastara consigo ao se retirar.

Eu sei onde posso pegar muitos sacos de juta; no mangueirao ha sacos a vontade, para o recolhimento dos cocos.

A primeira coisa a fazer e uma experiencia. Quando ha lua cheia, a mare e mais alta e portanto as ondas sao mais fortes. Vou esperar a lua cheia. Um saco de juta bem costurado, cheio de cocos secos com sua casca de fibra, fica bem escondido numa especie de gruta: para entrar nela, e preciso mergulhar e passar debaixo da agua. Descobri essa gruta mergulhando para apanhar lagostins. Eles ficam grudados no teto da gruta, que so recebe ar quando a mare esta baixa. Num outro saco, que amarrei ao saco de cocos, coloquei uma pedra que deve pesar 35 ou 40 quilos. Como vou partir com dois sacos de cocos em vez de um e peso 70 quilos, a proporcao e a mesma: um saco para 35 quilos.

Estou excitadissimo com a experiencia. Este lado da ilha e tabu. Ninguem jamais podera imaginar que alguem va escolher o local mais batido pelas ondas, e portanto o mais perigoso, para fugir.

E, no entanto, e o unico lugar de onde, se eu conseguir me afastar da costa, serei levado para o largo e nao poderei de maneira alguma ir me espatifar na Ilha Royale.

E deste lugar que eu tenho que sair.

O saco de cocos e a pedra sao muito pesados e nada faceis de carregar. Nao consegui empurra-los para cima do rochedo. A rocha e escorregadia e esta sempre molhada pelas ondas. Chang, com quem falei, vai me ajudar. Ele pegou todos os apetrechos de pesca, linhas de fundo, porque, se formos surpreendidos, vamos dizer que fomos colocar as linhas para apanhar tubaroes.

– Vamos, Chang. Um pouco mais e vai dar.

A lua cheia clareia a cena como em pleno dia. O barulho das ondas me ensurdece. Chang pergunta:

– Voce esta pronto, Papillon? Jogue naquela la.

A onda, de uns 5 metros de altura, levanta-se e se precipita como louca contra o rochedo, vai quebrar debaixo da gente, mas o choque e tao violento, que a crista passa por cima do rochedo e nos molha inteiramente. Apesar disso, a gente joga o saco no momento exato em que ela forma um redemoinho antes de se retirar. Carregado como uma palha, o saco entra no mar.

– Ai, Chang, esta bem.

– Espere para ver se saco nao voltar.

Menos de cinco minutos depois, desanimado, vejo chegar o saco empoleirado na crista de um imenso vagalhao, de 7, 8 metros de altura ou mais. A onda levanta o saco de cocos e a pedra, e carrega-os em cima da crista, um pouco antes da espuma. E, com uma forca espantosa, os devolve para o lugar de onde partiram, um pouco a esquerda. A coisa se espatifa sobre a rocha em frente. O saco se abre, os cocos se espalham e a pedra rola para o fundo do abismo.

Ensopados ate os ossos, porque a onda nos molhou inteiramente e praticamente nos derrubou – felizmente para tras, em terra -, esfolados e chateados, Chang e eu, sem olhar mais para o mar, afastamo-nos o mais depressa possivel desse lugar maldito.

– Nada bom, Papillon. Nada bom esta ideia de fugir da Ilha do Diabo. E melhor Royale. Do lado sul, voce pode sair melhor do que daqui.

– E, mas em Royale a fuga pode ser descoberta em duas horas no maximo. No saco de cocos, so com o impulso da onda, posso ser facilmente apanhado de novo pelas tres lanchas da ilha. Ao passo que aqui, para comecar, nao existem barcos; em segundo lugar, com certeza tenho toda a noite pela frente antes de o pessoal perceber a fuga; depois, podem pensar que eu me afoguei pescando. Na Ilha do Diabo nao ha telefone. Se eu fugir com mau tempo, nao existe chalupa capaz de chegar ate aqui. Portanto, e aqui que preciso partir. Mas como?

Sol a pino ao meio-dia. Um sol tropical que quase faz ferver o cerebro dentro do cranio. Um sol que calcina todas as plantas que conseguiram brotar, mas nao conseguiram crescer ate se tornarem bastante fortes para resistir a ele. Um sol que faz evaporar em algumas horas toda poca de agua do mar nao muito profunda e deixa uma pelicula branca de sal. Um sol que faz dancar o ar. Sim, o ar se mexe, na verdade se mexe diante dos meus olhos e a reverberacao de sua luz sobre o mar queima minhas pupilas. Entretanto, outra vez no banco de Dreyfus, tudo isso nao me impede de estudar o mar. E, entao, percebo que sou um verdadeiro idiota.

O vagalhao, duas vezes maior que todas as outras ondas, que vomitou o saco sobre os rochedos, esmigalhando-o completamente, so se repete a cada sete ondas.

Do meio-dia ao por do sol, fiquei observando se isso era automatico, se nao havia mudancas bruscas, se nao havia alguma alteracao na periodicidade e na forma dessa onda gigantesca.

Nao, nem uma vez o vagalhao apareceu antes ou depois. Seis ondas de uns 6 metros depois, formando-se a mais de 300 metros da costa, o vagalhao. Aproxima- se reto como um I. Conforme vem vindo, aumenta de volume e altura. Quase sem espuma na crista, ao contrario das outras seis. Muito pouca. Faz um ruido particular, como uma trovoada que rola e vai se extinguindo ao longe. Quando bate nos dois rochedos e se precipita na passagem entre eles e vem chocar no penhasco, a massa de agua, muito maior que a das outras ondas, comprime-se, rodopia varias vezes dentro da cavidade, e sao necessarios dez ou quinze segundos para que o redemoinho, como um turbilhao, encontre novamente a saida e se afaste, arrancando e rolando consigo grandes pedras que nao param de ir e vir, com um estrondo parecido ao de centenas de carrocas de pedras descarregadas brutalmente.

Coloco uns dez cocos no mesmo saco, enfio uma pedra de mais ou menos 20 quilos e assim que o vagalhao se quebra jogo o saco.

Nao consigo acompanha-lo com os olhos, porque ha muita espuma branca dentro do abismo, mas posso ve-lo por um segundo quando a agua, como que sugada,

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