que sua esposa usava quando era a vez dela cozinhar no palacio. Ao se sentar na curva da mesa de conferencias em forma de ferradura, o presidente de Thalassa meditava amargamente sobre o destino e a casualidade. Assuntos que nunca o tinham preocupado muito. Mas o acaso, em sua forma mais pura, o colocara em sua atual

posicao e o destino o atingira de novo. Como era estranho que logo ele, um fabricante de equipamentos esportivos, sem qualquer ambicao, fosse escolhido para presidir este encontro historico! Entretanto alguem tinha que faze-lo, e era preciso admitir que estava comecando a gostar. Pelo menos ninguem poderia impedir que fizesse seu discurso de boasvindas. Era de fato um discurso muito bom, embora talvez um pouco mais comprido do que seria necessario numa ocasiao como esta. Perto do final ele percebeu que as expressoes polidamente atenciosas de seus ouvintes estavam ficando um pouco sonolentas, e assim cortou algumas das estatisticas de produtividade, bem como toda a parte a respeito da nova rede energetica da Ilha do Sul. Quando se sentou novamente estava seguro de ter pintado um painel de uma sociedade vigorosa, progressiva e com alto nivel de capacidade tecnica. A despeito de opinioes superficiais em contrario, Thalassa nao era nem retrograda nem decadente e ainda mantinha as melhores tradicoes de seus grandes ancestrais etc. etc. Muito obrigado, senhor presidente — disse o comandante Bey na pausa meditativa que se seguiu.

— Foi de fato uma agradavel surpresa quando descobrimos que Thalassa nao era apenas habitada, como tambem tinha uma sociedade florescente. Isto tornara nossa presenca aqui muito mais agradavel e esperamos partir de novo com nada mais do que boa vontade de ambos os lados.

— Perdoe-me por ser tao rude, pode ser indelicado fazer esta pergunta quando os hospedes acabam de chegar, mas quanto tempo esperam passar aqui? Gostariamos de saber assim que for possivel, de modo a poder preparar as necessarias acomodacoes.

— Eu compreendo perfeitamente, senhor presidente. Nao podemos ser especificos neste estagio, porque isso depende em parte da quantidade de assistencia que puder nos proporcionar. Suponho que pelo menos um de seus anos, mais provavelmente dois. Edgar Farrantine, como a maioria dos lassanianos, nao era muito habil em ocultar suas emocoes, e o comandante Bey sentiu-se alarmado pela expressao subitamente entusiastica e ate mesmo matreira que surgiu no rosto do executivo-chefe.

— Excelencia, isto nao criaria nenhum problema? — indagou ansiosamente.

— Pelo contrario — disse o presidente, praticamente esfregando as maos de contentamento —, voces podem nao ter ouvido falar, mas os nossos ducentesimos jogos olimpicos devem se realizar dentro de dois anos.

— Ele pigarreou modestamente.

— Eu consegui um bronze nos mil metros quando ainda era jovem, por isso eles me encarregaram dos preparativos. Seria bom

contarmos com alguma competicao vinda de fora.

— Senhor presidente — disse a secretaria do gabinete —, eu nao creio que as regras…

— Regras que eu estabeleco — continuou o presidente com firmeza.

— Comandante, por favor, considere isto como um convite. Ou um desafio, se preferir. O comandante da nave estelar Magalhaes era um homem acostumado a tomar decisoes rapidas, mas desta vez fora surpreendido. Antes que pudesse pensar numa resposta adequada, sua oficial medicachefe interveio: — E extremamente gentil de sua parte, senhor presidente — disse a cirurgia-comandante, Mary Newton.

— Mas, como medica, devo lembrar que todos nos ja passamos dos trinta, estamos completamente destreinados e a gravidade de Thalassa e seis por cento mais forte que a da Terra, o que nos colocaria em seria desvantagem. Assim, a menos que seus jogos olimpicos incluam xadrez ou jogos de cartas… O presidente rapidamente. pareceu desapontado, mas se recuperou — Oh, bem, pelo menos o comandante Bey poderia gostar de entregar alguns dos premios.

— Eu ficaria encantado — disse o comandante, meio espantado. Sentiu que o encontro estava escapando ao controle e dispos-se a um retorno a agenda.

— Eu poderia explicar-lhe o que esperamos fazer, senhor presidente? — E claro — foi a resposta um tanto desinteressada. Parecia que os pensamentos de Sua Excelencia ainda estavam em outra parte, talvez revivendo os triunfos de sua juventude. Entao, com um esforco obvio, ele focalizou sua atencao no presente.

— Nos ficamos lisonjeados, porem um tanto intrigados com sua visita. Parece haver pouquissima coisa que nosso mundo possa lhes oferecer. Disseram-me que houve uma conversa a respeito de gelo, foi certamente uma piada.

— Nao, senhor presidente, nos falamos com absoluta seriedade. E tudo o que precisamos de Thalassa, muito embora, agora que provamos alguns de seus produtos culinarios, possamos aumentar nossa demanda consideravelmente. Pensei especialmente no queijo e no vinho que tivemos no almoco. Mas gelo e essencial, permita-me que explique. Primeira imagem, por favor. A nave estelar Magalhaes, com dois metros de comprimento, flutuou diante do presidente. Parecia tao real que ele teve vontade de

estender a mao e toca-la, algo que certamente teria feito se nao houvesse espectadores para observar comportamento tao infantil.

— Pode-se ver que a nave e aproximadamente cilindrica, com quatro quilometros de comprimento por um de diametro. Como nosso sistema propulsor aproveita as energias contidas no proprio espaco, nao existe limite teorico de velocidade ate a da luz. Mas, na pratica, comecamos a ter problemas quando atingimos um quinto dessa velocidade, devido a poeira e ao gas interestelares. Tenue como possa parecer, um objeto que se mova a sessenta mil quilometros por segundo, ou mais, colide com uma quantidade surpreendente de material e, nesta velocidade, mesmo um unico atomo de hidrogenio pode causar danos apreciaveis. Assim, Magalhaes, como as primeiras espaconaves primitivas, carrega um escudo ablativo a sua frente. Praticamente qualquer material serviria, desde que possuissemos uma quantidade suficiente dele. E na temperatura de quase zero, encontrada entre as estrelas, e dificil encontrar coisa melhor do que o gelo. E barato, facil de ser trabalhado e surpreendentemente forte! Este cone rombudo e a aparencia que tinha o nosso pequeno iceberg quando deixamos o Sistema Solar ha duzentos anos. E e assim que ele se encontra agora. A imagem tremulou, depois reapareceu. A nave nao mudara, mas o cone flutuando adiante dela tinha encolhido para a forma de um disco fino.

— Isto e o que acontece quando se perfura um buraco de cinquenta anos-luz de comprimento atraves deste setor um tanto poeirento da galaxia. Fico feliz em dizer que a taxa de desgaste ficou dentro de cinco por cento da estimativa, assim nos nunca corremos nenhum perigo, embora, e claro, exista sempre a possibilidade remota de atingirmos alguma coisa realmente grande. Nenhum escudo poderia nos proteger nesta eventualidade, fosse ele feito de gelo ou da melhor chapa de aco para blindagens… Nos estamos em forma para percorrer mais dez anos- luz, mas isto nao e suficiente. Nosso destino final e o planeta Sagan 2, ainda a 75 anos-luz de distancia. Agora, senhor presidente, o senhor sabe o motivo de nossa parada em Thalassa. Nos gostariamos de tomar emprestado, ou melhor, pedir, ja que dificilmente poderiamos nos comprometer a devolver, umas cem mil ou mais toneladas de agua de voces. Nos precisamos construir outro iceberg la em cima, em orbita, para varrer o caminho a nossa frente enquanto vamos para as estrelas.

— De que modo poderiamos ajuda-los? Tecnicamente voces estao seculos adiante de nos.

— Duvido muito, exceto no que se refere a propulsao quantica. Talvez o comandante-deputado Malina possa delinear nossos planos. Sujeitos a aprovacao, e claro.

— Por favor, prossiga.

— Inicialmente teremos que encontrar um lugar para a usina congeladora. Existem muitas possibilidades, poderia ser em qualquer trecho isolado da costa. Nao causara absolutamente nenhum disturbio ecologico, mas se preferirem nos a colocaremos na Ilha Ocidental e ficaremos torcendo para que Krakan nao estoure antes que tenhamos terminado! O projeto da usina encontra-se virtualmente completo, necessitando apenas de pequenas modificacoes para se adaptar ao local que finalmente escolhermos. A maior parte dos componentes pode entrar em funcionamento agora mesmo. E tudo muito simples, bombas, sistemas de refrigeracao, trocadores de calor, guindastes, tudo velha tecnologia do segundo milenio. Se tudo correr bem, nos teremos nosso primeiro gelo em noventa dias. Nos planejamos fazer blocos de tamanho uniforme, cada um pesando seiscentas toneladas, em forma de chapas chatas, hexagonais, que alguem batizou de flocos de neve e o nome parece que pegou. Quando a producao tiver comecado, nos ergueremos um floco de neve por dia. Eles serao montados em orbita e unidos para formarem o escudo.. Da primeira elevacao ate os testes estruturais finais deve levar 250 dias. Entao estaremos prontos para partir. Quando o comandante terminou, o presidente Farradine continuou sentado em silencio por alguns momentos, com o olhar distante. Entao ele disse de modo quase reverente: — Gelo, eu nunca

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