ARTHUR C. CLARKE
As cancoes da Terra distante
Nota do Autor
I — THALASSA
1. A PRAIA EM TARNA
Antes mesmo que o barco passasse entre os recifes, Mirissa podia ver que Brant estava furioso. A postura tensa de seu corpo na roda do leme e o simples fato de nao ter deixado a passagem final nas maos capazes de Kumar mostravam que alguma coisa o havia perturbado.
Ela deixou a sombra das palmeiras e caminhou lentamente descendo a praia, a areia molhada puxando-lhe os pes. Quando chegou a beira da agua, Kumar ja dobrava a vela. Seu irmao cacula, agora quase tao alto quanto ela e com uma solida musculatura, acenou alegremente. Muitas vezes ela ja desejara que Brant compartilhasse a natureza amavel de Kumar, que nenhuma crise parecia capaz de perturbar.
Brant nao esperou que o barco atingisse a areia e saltou para a agua, que lhe atingiu a cintura, e veio espadanando furioso em direcao a ela. Carregava uma massa retorcida de metal, enfeitada com fios partidos que exibiu para sua inspecao.
— Olhe — gritou ele.
— Voltaram a faze-lo! — Com a mao livre apontou na direcao norte do horizonte.
— Desta vez nao vou permitir que escapem impunes! E a prefeita pode dizer o que bem quiser! Mirissa ficou de lado enquanto o pequeno catamara, qual fera marinha primitiva fazendo sua primeira incursao em terra firme, subia lentamente para a praia, movendo-se sobre seus cilindros externos de rolamento. Assim que deixaram a linha da agua, Kumar desligou o motor e saltou para juntar-se ao comandante, que ainda estava furioso.
— Eu ja disse a Brant que deve ter sido um acidente — disse ele.
— Talvez uma ancora de arrastao. Afinal, por que os motoristas fariam uma coisa assim, deliberadamente? — Eu lhe digo por que — retrucou Brant.
— Porque eles sao muito preguicosos para desenvolverem a tecnologia sozinhos. Porque eles tem medo de que nos apanhemos peixe demais. Porque… Ele percebeu o sorriso do outro e lancou a cama-de-gato de arames partidos girando em sua direcao. Kumar a apanhou sem dificuldade.
— De qualquer modo, ainda que seja um acidente, eles nao deviam estar ancorando aqui. Esta area esta assinalada claramente no mapa: AFASTE-SE — PROJETO DE PESQUISA. Por isso vou fazer um protesto. Brant ja havia recuperado seu bom humor, mesmo suas iras mais violentas nao duravam mais do que alguns minutos. Para mante-lo no estado de espirito adequado, Mirissa comecou a passar os dedos pelas suas costas, falando com ele em sua voz mais tranquilizadora: — Pegou algum peixe bom? — E claro que nao — respondeu Kumar.
— Ele so esta interessado em apanhar estatisticas de quilogramas por quilowatts, esse tipo de coisa. Felizmente eu levei minha vara. Assim teremos atum no jantar. Ele estendeu o braco para dentro do barco e puxou para fora
quase um metro de forca e beleza hidrodinamica, um peixe cujas cores se apagavam rapidamente, os olhos ja vidrados pela morte.
— Nao se pega um destes com frequencia — disse orgulhoso.
Eles ainda estavam admirando o peixe quando a Historia retornou a Thalassa, e o mundo simples, tranquilo, que tinham conhecido durante suas vidas ainda jovens terminou abruptamente. O sinal de sua passagem escreveu-se no ceu, como se uma gigantesca mao tivesse passado um pedaco de giz sobre a cupula azul do firmamento. Mesmo enquanto observavam, o brilhante rastro de vapor comecou a se esfiapar nas bordas, quebrando-se em fiapos de nuvens, ate dar a impressao de que uma ponte de neve tinha sido lancada de um horizonte ao outro. E um trovao distante rolou pela orla do espaco. Um som que Thalassa nao ouvia ha setecentos anos, mas que qualquer crianca poderia reconhecer imediatamente. A despeito do calor daquela tarde Mirissa