Muito sisudo, movendo-se na poca de luz que partia do seu capacete, desceu para a escuridao ganhando lentamente velocidade. Tinha percorrido uns cinquenta metros quando chamou os outros para que fossem ter com ele.
Ninguem o teria admitido, mas todos se sentiam numa segunda meninice, escorregando balaustrada abaixo. Em menos de dois minutos completaram, com seguranca e conforto, a longa descida de um quilometro. Sempre que se sentiam deslizar com excessiva rapidez, um apertao mais forte no corrimao lhes dava toda a freagem de que necessitavam.
— Espero que tenham gostado — gritou-lhes o Comandante Norton quando apearam na segunda plataforma. — A subida e que nao vai ser tao facil.
— Isso e o que eu quero verificar — retrucou Mercer, que, caminhava experimentalmente para la e para ca, adaptando-se a gravidade mais forte. — Aqui ja temos um decimo de gravidade. Sente-se nitidamente a diferenca.
Caminhou — ou, mais exatamente, deslizou — para a beira da plataforma, e baixou a luz do capacete para o lance seguinte da escadaria. Ate onde chegava a luz, esse lance parecia identico ao anterior — se bem que um exame cuidadoso das fotos havia mostrado que a altura dos degraus diminuia a proporcao que aumentava a gravidade. A escada fora aparentemente projetada de maneira que o esforco necessario para galgar os degraus fosse mais ou menos constante em cada ponto de seu longo e curvo trajeto.
Mercer ergueu os olhos na direcao do cubo central de Rama, agora quase dois quilometros acima dele. A leve claridade, as figuras pequeninas vistas em silhueta contra ela, pareciam horrivelmente distantes. Pela primeira vez, ele se alegrou de subito por nao poder ver toda a extensao dessa enorme escadaria. A despeito dos seus nervos de aco e falta de imaginacao, nao tinha certeza de como reagiria se pudesse ver a si mesmo como um inseto subindo pela superficie vertical de um pires com mais de dezesseis quilometros de altura — e com a metade superior pendendo em curva acima dele. Ate esse momento, havia experimentado a escuridao como uma coisa aborrecida; agora, quase dava gracas a ela.
— Nao ha mudanca de temperatura — comunicou ao Comandante Norton. — Ainda estamos a um pouco abaixo de zero centigrado. Mas a pressao do ar aumentou, como esperavamos: cerca de trezentos milibares. Mesmo com este baixo teor de oxigenio, e quase respiravel. A uma altitude menor, nao havera problema nenhum. Isso simplificara enormemente a exploracao. Que achado — o primeiro mundo em que se pode andar sem aparelho de respiracao! Vou ate provar um pouco deste ar.
La em cima, no cubo, o Comandante Norton remexeu-se um tanto inquieto. Mas Mercer devia saber muito bem o que fazia; com certeza ja fizera as suas testagens. Mercer igualou a pressao, desprendeu o fecho do seu capacete e entreabriu-o — uma frestinha apenas. Tomou um hausto cauteloso, depois outro, mais profundo.
O ar de Rama era morto o bolorento, como se proviesse de um tumulo tao antigo que os ultimos tracos de decomposicao fisica houvessem desaparecido ha milenios. Nem mesmo o olfato ultra-sensivel de Mercer, treinado durante anos na testagem ao maximo de sistemas de sustentacao de vida, pode detectar qualquer odor reconhecivel. Havia um travo metalico, e ele recordou-se subitamente de que os primeiros homens que desceram na Lua tinham falado de um leve cheiro de polvora queimada quando repressurizaram o modulo lunar. Mercer imaginou que a cabina do Eagle, contaminada pela poeira lunar, devia ter um cheiro semelhante ao de Rama.
Tornou a vedar o capacete e expeliu dos pulmoes todo aquele ar estranho. Nao lhe dera nenhum sustento; mesmo um montanhes aclimatado aos cimos ao Everest nao tardaria a morrer ali. Mas uns poucos quilometros mais abaixo as condicoes seriam bem diferentes.
Que mais havia que fazer ali? Nao lhe ocorreu nada, salvo gozar a branda, desacostumada gravidade. Mas de que servia habituar-se a ela, ja que teriam de voltar imediatamente a imponderabilidade do cubo?
— Vamos voltar, Capitao — avisou. — Nao ha razao para seguir adiante, enquanto nao estivermos prontos para ir ate o fim.
— De acordo. Vamos cronometrar o regresso de voces, mas venham com calma.
Enquanto saltava os degraus, tres ou quatro de cada vez, Mercer reconheceu que Calvert tinha toda a razao em dizer que aquelas escadas haviam sido feitas para ser subidas, nao descidas. Contanto que nao se olhasse para tras nem se reparasse no aclive vertiginoso da curva ascendente, a escalada era uma experiencia deleitavel. Depois de uns duzentos degraus, contudo, ele comecou a sentir umas caibras nos musculos das panturrilhas e resolveu diminuir a marcha. Os outros tinham feito o mesmo; quando aventurou um rapido relance de olhos por cima do ombro, eles haviam ficado bastante para tras.
A subida foi completamente normal — nada mais que uma sucessao aparentemente interminavel de degraus. Quando de novo se encontraram na mais alta das plataformas, logo abaixo da escada de mao, mal-e- mal ofegavam e nao tinham levado mais de dez minutos a alcanca-la. Descansaram outros dez antes de acometer o ultimo quilometro vertical.
Saltar — agarrar-se a um dos degraus — saltar — agarrar — saltar — agarrar… Era facil, mas tao monotono e enfadonho que havia o perigo de se tornar descuidado. Na metade da escada vertical descansaram por dez minutos. Ja entao, tanto os seus bracos como as pernas haviam comecado a doer. Mais uma vez alegrou-se pelo fato de so poderem ver um trecho tao pequeno da superficie vertical a que se agarravam; nao era muito dificil fazer de conta que a escada de mao nao ia a mais do que uns poucos metros alem do circulo de luz da sua lanterna e nao demoraria a terminar.
Saltar — segurar-se a um degrau — saltar… De repente, a escada terminou mesmo. Tinham voltado ao mundo imponderavel do eixo, entre os seus amigos ansiosos. Toda a viagem durara menos de uma hora e eles se sentiam modestamente orgulhosos do seu feito.
Mas era cedo demais para isso, pois, em que pese a todos os seus esforcos, haviam percorrido menos de um oitavo daquela ciclopica escadaria.
11 HOMENS, MULHERES E MACACOS
O COMANDANTE NORTON havia decidido ha muito que certas mulheres nao deveriam se admitidas a bordo; a imponderabilidade tinha, sobre os seus seios, efeitos tremendamente perturbadores. O caso ja era serio quando ficavam imoveis; mas quando se punham em movimento e estabeleciam-se vibracoes harmonicas, a dose era excessiva para quem nao tivesse autocontrole. Estava convicto de que pelo menos um grave acidente espacial fora causado pela estupefacao dos tripulantes a passagem de uma bem-dotada oficial pela cabina de comando.
Mencionara certa ocasiao essa teoria a Medica-chefe Laura Ernst, sem lhe revelar quem lhe havia inspirado tais pensamentos. Nao havia necessidade disso, pois ambos se conheciam muito bem. Anos atras, na Terra, num momento de comum solidao e tristeza, tinham-se amado. Nao era provavel que algum dia viessem a repetir a experiencia (mas quem podia ter absoluta certeza de tal coisa?), porque ambos haviam mudado muito. Contudo, sempre que a formosa medica entrava flutuando na cabina do comandante, este sentia o eco fugidio de uma- velha paixao, ela o percebia, e os dois ficavam felizes da vida.
— Bill — comecou Laura — ja chequei os nosso alpinistas, e o meu laudo e o seguinte: Karl e Joe estao em boa forma; todas as indicacoes sao normais para o trabalho que estiveram fazendo. Mas Will mostra sinais de exaustao e perda corporal… Nao vou entrar em detalhes, mas me parece que ele nao tem feito exercicio quanto devia, e nao e o unico. Tem havido trapacas com o centrifugador, e se isto continuar vao rolar algumas cabecas. Faca o favor de avisar essa gente.
— Sim, Senhora. Mas eles tem suas justificativas. Os homens andam trabalhando duro.
— Com o cerebro e os dedos, nao ha duvida. Porem nao com o corpo. Nao e um verdadeiro trabalho, que se possa medir em quilogrametros. E isso e o que nos teremos de fazer, se quisermos realmente explorar Rama.
— Mas podemos faze-lo?
— Sim, se formos bastante cautelosos. Karl e eu preparamos um perfil bastante moderado, com base na pressuposicao de que poderemos dispensar os aparelhos de respiracao abaixo do Nivel 2. Evidentemente, e uma sorte incrivel e vem mudar todo o quadro logistico. Ainda nao me pude acostumar a ideia de um mundo com oxigenio… De modo que nos basta fornecer alimentacao, agua, roupas termicas, e estamos feitos! Descer sera facil; parece que podemos escorregar a maior parte do tempo por aquela bendita balaustrada…