De subito, avistou por um momento a sombra, nao muito longe dele. O vento do mundo tinha vindo a abrandar e a neve e a chuva da tempestade tinham dado lugar a ura nevoeiro frio, esparso e que se ia tornando mais espesso. Foi atraves desse nevoeiro que teve um vislumbre da sombra, fugindo agora um pouco para a direita do seu rumo. Falou ao vento e a vela, moveu a cana do leme e prosseguiu no que, mais uma vez, era uma perseguicao as cegas. O nevoeiro adensava-se rapido, como que fervendo e rasgando-se quando encontrava o vento magico, fechando-se em toda a volta do barco, uma palidez informe que amortecia a luz e a vista. Exatamente quando Gued pronunciava a primeira palavra de um encantamento de clarear, viu de novo a sombra, ainda para a direita do seu curso, mas muito proxima e avancando lentamente. O nevoeiro atravessava-lhe a cabeca vaga e sem feicoes, no entanto com o feitio da de um homem, so que deformada e em mudanca constante, como a sombra desse homem. Uma vez mais Gued fez guinar o barco, pensando que teria dado com o inimigo em terra. Mas nesse mesmo instante a sombra desvaneceu-se e foi o seu barco que deu em terra, despedacando-se de encontro aos baixios que o nevoeiro lhe ocultara da vista. Quase foi lancado borda fora, mas antes conseguiu agarrar-se ao bordao que lhe servia de mastro, antes que nova onda rebentasse sobre ele. E foi uma grande vaga que arrancou o barco da agua e deu com ele em cima de um rochedo, do mesmo modo que um homem poderia erguer e esmagar uma concha de caracol.
Forte e cheio de magia era o bordao que Oguion afeicoara. Nao se quebrou e, boiando como um madeiro seco, cavalgou as aguas. Continuando a segura-lo, Gued foi puxado para tras quando a rebentacao escorreu do baixio, de modo que ficou em agua profunda e, ate que viesse a onda seguinte, a salvo de embater nas rochas. Os olhos cegos do sal, sufocando, tentou manter a cabeca fora de agua e lutar contra a tremenda forca de succao do mar. Um pouco para o lado dos rochedos havia uma praia de areia que ele entreviu uma ou duas vezes enquanto tentava nadar para se libertar do encher da proxima onda. Com toda a sua forca e o poder do bordao a ajuda-lo esforcou-se por alcancar a praia. Nao conseguiu aproximar-se. O ir e vir da rebentacao lancavam-no de um lado para o outro como um trapo e a frialdade do mar profundo rapidamente lhe roubou o calor do corpo, enfraquecendo-o ate ele ja nao poder mover os bracos. Perdera de vista tanto os rochedos como a praia e nem sabia para que lado estava virado. Em seu redor havia apenas o tumultuar da agua, e por baixo e por cima dele, cegando-o, estrangulando-o, afogando-o.
Uma onda, enchendo ao aproximar-se de terra sob o nevoeiro esparso, pegou nele, fez rolar uma e outra vez, acabando por lanca-lo como um pau a deriva para cima da areia.
E ali se quedou prostrado. Agarrava ainda com ambas as maos o bordao de teixo. Ondas menores arrastaram-se ate ele, tentando traze-lo de novo praia abaixo ao retirarem-se. A nevoa abria para logo voltar a fechar sobre ele. Mais tarde, acoitou-o uma batega de neve derretida.
Passado muito tempo, moveu-se. Ergueu-se sobre as maos e os joelhos e comecou lentamente a rastejar pela praia acima, afastando-se da beira do mar. Fazia agora noite escura, mas ele dirigiu um sussurro ao bordao e uma tenue luz de fogo-fatuo brilhou, envolvendo-o. Tendo a luz para se guiar, esforcou-se por avancar, a pouco e pouco, subindo em direcao as dunas. Estava tao moido, quebrado e enregelado que aquele rastejar atraves da areia molhada, no escuro cheio do assobiar do vento, do estrondear do oceano, foi a empresa mais ardua que ate ai tivera de empreender. Por uma ou duas vezes lhe pareceu que o grande ruido do mar e do vento morria, que a areia molhada se tornava em po seco debaixo das suas maos, e sentiu o brilho imovel de estranhos astros sobre o seu dorso. Mas nao ergueu a cabeca, continuou a gatinhar e, pouco depois, voltou a ouvir a sua propria e ofegante respiracao, voltou a sentir o vento aspero lancando-lhe a chuva contra o rosto.
O movimento trouxe de novo, e finalmente, um pouco de calor ao seu corpo e, depois de ter rastejado ate ao cimo das dunas, onde as rajadas de vento e chuva eram menos fortes, conseguiu por-se de pe. Com a palavra obteve do bordao uma luz mais forte, porque o mundo era de um negrume total, e depois prosseguiu apoiando-se ao bordao, vacilando, parando aqui e ali, durante meia milha para o interior. Depois, no cimo de uma duna, voltou a ouvir o mar, um som novamente forte e nao atras de si, mas em frente. As dunas voltavam a descer para uma outra costa. Aquilo nao era uma ilha, mas sim um mero banco de areia no meio do oceano.
Estava demasiado esgotado para desesperar, mas soltou uma especie de soluco e ficou para ali, desnorteado, apoiado ao seu bordao, durante longo tempo. Depois, persistentemente, voltou para a esquerda de modo a pelo menos ter o vento pelas costas e arrastou os pes pela alta duna abaixo, procurando alguma depressao por entre as ervas esgarcadas, dobradas pelo vento e debruadas de gelo, onde pudesse conseguir algum abrigo. Ao erguer o bordao para ver o que tinha diante de si, entreviu uma debil claridade no extremo do circulo de luz do fogo-fatuo, uma parede de madeira molhada pela chuva.
Era uma cabana ou telheiro, uma construcao pequena e insegura como se tivesse sido feita por uma crianca. Gued bateu na porta baixa com o seu bordao. Permaneceu fechada. Abriu-a com um empurrao e entrou, quase precisando de se dobrar em dois para o fazer. Mesmo dentro da cabana, nao lhe foi possivel endireitar-se. Carvoes acesos libertavam o seu brilho vermelho no buraco do fogo e, ao seu tenue clarao, Gued viu um homem de longo cabelo branco, que se agachava aterrorizado de encontro a parede do fundo, e mais alguem, nao saberia dizer se homem ou mulher, que o espreitava de dentro de um montao de farrapos ou peles, caido no chao.
— Nao vos vou fazer mal — murmurou Gued.
Nao responderam. Olhou para um e para outro. O medo esvaziara-lhes os olhos de expressao. Quando pousou o bordao, aquele que estava sobre o monte de trapos escondeu-se, gemendo. Gued tirou o manto, pesado de agua e gelo, despiu-se e pos a roupa em monte por sobre o buraco do lume.
— Deem-me qualquer coisa para me embrulhar — pediu. Estava rouco e mal podia falar, de tal maneira lhe batiam os dentes e o sacudiam longos arrepios. Se e que o ouviram, nenhum dos velhos respondeu. Estendeu o braco e apanhou um trapo do monte em cima da cama. Em tempos, teria sido uma pele de cabra, mas agora era apenas uma coisa esfarrapada e cheia de gordura preta. A pessoa que estava debaixo do montao de farrapos gemeu de medo, mas Gued nao lhe prestou atencao. Esfregou-se ate ficar seco e depois sussurrou:
— Nao tem lenha? Ateia um bocado o lume, velho. Vim ter contigo por necessidade, nao vos quero fazer mal.
Mas o velho nao se moveu, olhando-o numa especie de transe de medo.
— Percebes o que digo? Nao falas Hardic? — E depois de uma pausa, pronunciou: — Kargad?
A essa palavra, o velho acenou de imediato que sim, uma so vez, como uma velha e triste marionete. Mas como aquela era a unica palavra que Gued conhecia da lingua karguiana, a conversa ficou por ali. Descobriu lenha empilhada de encontro a uma parede, ateou ele proprio o lume, e depois, por gestos, pediu agua, pois a agua do mar que engolira deixara-o agoniado e tinha a boca seca de sede. Sempre encolhido de medo, o velho apontou uma grande concha que continha agua e empurrou para perto do lume uma outra em que se via tiras de peixe secas ao fumeiro. E assim, de pernas cruzadas e bem junto ao fogo, Gued bebeu, comeu um pouco e, a medida que as forcas e o raciocinio lhe voltavam, comecou a interrogar-se onde estaria. Mesmo com o vento magico, nao lhe teria sido possivel ter navegado toda a distancia ate as Terras de Kargad. Aquela ilhota devia ficar ao largo, na Estrema, a leste de Gont, mas ainda a oeste de Karego-At. Parecia-lhe estranho que houvesse gente a habitar um local tao pequeno e desolado, uma mera tira de areia. Seriam talvez naufragos. Mas, de momento, estava demasiado cansado para se por a pensar nisso.
Ia voltando o manto para o calor e a pele de
— Durmam, durmam, pobre gente — disse ele aos seus silenciosos anfitrioes e, deitando a cabeca no chao de areia, deixou-se dormir.
Tres noites passou ele naquela ilhota sem nome, porque na primeira manha, ao acordar, nao havia musculo que nao lhe doesse, estava febril e sentia-se mal. Todo aquele dia e a noite que se lhe seguiu permaneceu deitado junto ao fogo como um toro levado pelas ondas. No outro dia acordou, ainda entorpecido e dorido, mas recuperado. Voltou a envergar as suas roupas encrustadas de sal, pois nao havia agua doce suficiente para as lavar, e, saindo para a manha cinzenta e ventosa, observou aquele lugar para onde a sombra o arrastara ao engano.
Era uma faixa de areia e rochedos, com uma milha de largura maxima e um pouco maior no sentido do comprimento, debruada em toda a volta de baixios e rochedos. Sobre ela nao crescia qualquer arvore ou arbusto, nem plantas para alem das ervas esgarcadas, dobradas pelo vento. A cabana erguia-se numa depressao das dunas e o velho e a mulher viviam ali sozinhos, na extrema desolacao do mar vazio. A cabana fora construida, melhor dizendo, empilhada com tabuas e ramos trazidos pelo mar. Tiravam a agua, salobra, de um pequeno poco