ao lado da cabana. Por alimento tinham peixes e moluscos, crus ou secos, e algas dos rochedos. As peles em farrapos da cabana e uma pequena provisao de agulhas de osso e anzois, bem como os tendoes para linhas de pesca e para rodar o pau de fazer fogo, nao vinham de cabras como Gued pensara a principio, mas de focas malhadas. E na realidade aquele era o tipo de lugar onde as focas se dirigem para criar os seus filhotes no Verao. Mas mais ninguem demanda um tal lugar. Os velhos temiam Gued nao porque o julgassem um espirito, nao por se tratar de um feiticeiro, mas simplesmente porque era um homem. Tinham esquecido que havia outras pessoas no mundo.
O temor taciturno do velho nunca esmoreceu. Quando pensava que Gued se iria aproximar o suficiente para o tocar, logo se afastava manquejando, olhando para tras com um franzir de sobrancelhas por baixo das farripas da sua cabeleira de um branco sujo. A principio, a mulher soltara queixumes e escondera-se debaixo do seu montao de farrapos sempre que Gued se movia. Mas, quando ele ficara estendido e num quase sono febril na escura cabana, vira-a agachar-se para o olhar com uma expressao estranha, parada e andante. E, mais tarde ainda, dera-lhe agua a beber. Mas quando ele se sentou para receber a concha das suas maos, assustara-se e deixara-a cair, entornando toda a agua, e depois chorou e limpou os olhos ao seu longo cabelo de um branco- acinzentado.
Agora observava-o, enquanto ele trabalhava la em baixo na praia, afeicoando madeira dada a costa e pranchas do seu proprio barco, que as ondas tinham tambem trazido, para fazer um novo barco, usando a grosseira enxo de pedra do velho e um encantamento de prender. Nao se tratava de uma reparacao nem de construir um barco, pois nao dispunha de madeira capaz que chegasse, e tinha de prover todas as suas necessidades com pura feiticaria. Contudo, a velha observava nao tanto o seu maravilhoso trabalho, mas mais a ele proprio, e sempre com aquela mesma expressao ansiosa nos olhos. Passado um bocado, afastou-se e depois regressou com uma oferta, uma mao-cheia de mexilhoes que apanhara nas rochas. Gued comeu-os tal como ela lhos dera, molhados de agua do mar e crus, e agradeceu-lhe. Parecendo ganhar coragem, a velha foi ate a cabana e voltou trazendo de novo alguma coisa nas maos, desta feita um volume embrulhado num farrapo. Timidamente, sempre com os olhos postos no seu rosto, desembrulhou o que trazia e ergueu-o para que ele o visse.
Era um vestido de bebe, de brocado de seda, avolumado por um sem-fim de minusculas perolas, manchado de sal, amarelecido pelos anos. No pequeno corpete as perolas estavam dispostas numa forma que Gued conhecia. A dupla flecha dos Irmaos-Deuses do Imperio de Kargad, encimada por uma coroa de rei.
A ancia, enrugada e suja, coberta por uma especie de saco mal cosido de pele de foca, apontou para o pequeno vestido de seda e depois para si propria, e sorriu. Um sorriso doce e sem sentido, como o de uma crianca. De qualquer esconderijo cosido a saia do vestido, retirou um pequeno objeto e estendeu-o para Gued. Era um pedaco de metal escurecido, talvez um bocado de alguma joia quebrada, o semicirculo de um anel partido. Gued olhou-o, mas ela fez-lhe um gesto para que o tomasse e nao desistiu enquanto ele nao lhe fez a vontade. Depois acenou a cabeca e voltou a sorrir. Dera-lhe um presente. Mas quanto ao vestido, embrulhou-o cuidadosamente no mesmo farrapo gordurento e dirigiu-se manquejando para a choupana, a guardar a bela peca de roupa.
Gued colocou o anel quebrado no bolso da sua tunica quase com o mesmo cuidado, porque o seu coracao estava pleno de do. Adivinhava agora que aqueles dois deviam ser filhos de alguma casa real do Imperio de Kargad. Um tirano ou usurpador, temendo verter sangue real, enviara-os para serem abandonados numa ilha que nao viesse nos mapas, longe de Karego-At, para la viverem ou morrerem. Um teria sido talvez um rapaz de oito ou dez anos e o outro uma bebe saudavel e forte, com um vestido de seda e perolas. E ali tinham vivido e continuado a viver, sozinhos, durante quarenta anos, cinquenta anos, num rochedo no meio do oceano, o principe e a princesa da Desolacao.
Mas se era verdade ou nao o que julgava adivinhar, so o veio a saber quando, anos mais tarde, a busca do anel de Erreth-Akbe o levou ate as Terras de Kargad e aos Tumulos de Atuan.
A sua terceira noite na ilha terminou com um calmo e palido nascer do Sol. Era o dia do Regresso-do-Sol, o dia mais curto do ano. O seu pequeno barco de madeira e magia, de restos e sortilegios, estava pronto. Tentara dizer aos anciaos que os levaria para qualquer terra, Gont ou Spevy ou as Torikles. Te-los-ia mesmo deixado nalguma costa solitaria de Karego-At, se lho tivessem pedido, embora as aguas karguianas nao fossem lugar seguro onde um natural do Arquipelago se devesse aventurar. Mas por nada deixariam a sua esteril ilha. A velha parecia nao entender o que ele pretendia significar com os seus gestos, as suas calmas palavras. O velho compreendia, mas recusava. Toda a memoria que tinha de outras terras e de outros homens era um pesadelo infantil de sangue, de gigantes, de gritos de dor. Gued discernia isso no seu rosto, enquanto o anciao sacudia e voltava a sacudir a cabeca.
E assim, nessa manha, Gued encheu uma bolsa de pele de foca com agua do poco e, dado que nao podia agradecer aos velhos o fogo e o alimento, nem tinha um presente que pudesse dar a ancia como desejaria, fez o que lhe foi possivel e lancou um encantamento sobre aquela fonte salgada e pouco de fiar. E a agua subiu atraves da areia, tao doce e clara como a de qualquer nascente de montanha nos cumes de Gont, e nunca voltou a faltar. E e por isso que esse lugar vem hoje nos mapas e ostenta um nome, Ilha da Agua de Nascente, que os marinheiros lhe deram. Mas a cabana desapareceu e as tempestades de muitos Invernos nao deixaram sinal dos dois que ali viveram as suas vidas solitarias e solitariamente ali morreram.
Mantiveram-se escondidos na choupana, como se tivessem medo de o observar, quando Gued avancou com o barco, partindo do arenoso extremo sul da ilhota. Deixou que o vento do mundo, soprando firmemente de norte, enchesse a sua vela tecida de sortilegios e singrou rapido por sobre o mar.
Ora esta busca de Gued era estranha empresa, pois, como muito bem sabia, ele era um cacador que tanto desconhecia o que seria a coisa que cacava, como onde poderia estar em toda Terramar. Tinha de a perseguir por calculo, por palpite, a sorte, tal como ela o perseguira. Ambos estavam cegos para o ser do outro, com Gued tao desorientado por sombras impalpaveis como a sombra se desorientava com a luz do dia e as coisas solidas. Para Gued havia apenas uma certeza, a de que era agora verdadeiramente o cacador e nao a presa. Porque a sombra, depois de o ter iludido, lancando-o contra as rochas, poderia te-lo tido a sua merce durante todo o tempo em que ele permanecera meio morto estendido na costa e, depois, quando errara no meio da escuridao sobre as dunas varridas pela tempestade. Mas a sombra nao esperara para aproveitar a oportunidade. Enganara-o e logo se pusera em fuga, sem se atrever ja a enfrenta-lo. E por aqui via que Oguion tinha tido razao. A sombra nao podia sugar-lhe poder enquanto ele permanecesse de frente para ela. Portanto, ele tinha de continuar a afronta- la, a persegui-la, por muito que o seu rastro estivesse frio ao longo daqueles vastos mares e nada tivesse para o guiar senao o acaso afortunado do vento do mundo soprando para sul e uma tenue nocao ou palpite no seu espirito de que sul ou leste era a direcao certa a seguir.
Antes de cair a noite, avistou ao longe, a sua esquerda, a longa e imprecisa linha costeira de um grande territorio que deveria ser Karego-At. Encontrava-se precisamente nas rotas maritimas daquela gente barbara, de pele branca. Manteve-se vivamente atento a presenca de qualquer navio longo ou gale karguianos, ao mesmo tempo que recordava, enquanto ia navegando no avermelhado do entardecer, aquela manha da sua adolescencia na aldeia de Dez Amieiros, os guerreiros emplumados, o fogo, a bruma. E ao pensar naquele dia viu de repente, com um baque no coracao, como a sombra o iludira com a sua propria ilusao, trazendo aquela bruma a rodea-lo no mar como se a trouxesse do seu proprio passado, cegando-o para o perigo e impelindo-o enganosamente para a morte.
Manteve a sua rota para sudeste e a terra foi-lhe desaparecendo da vista a medida que a noite se estendia sobre a orla oriental do mundo. Os concavos das ondas estavam cheios de escuridao enquanto as cristas brilhavam ainda no reflexo rosa-claro vindo de ocidente. Gued cantou em voz alta a
Durante toda aquela noite, a mais longa do ano, ele permaneceu acordado, observando as estrelas a nascerem a sua esquerda, a girarem sobre a sua cabeca, a afundarem-se nas longinquas e negras aguas a direita, e sempre com o longo vento do Inverno a leva-lo para sul sobre um mar invisivel. So por um momento, de vez em quando, lhe foi possivel adormecer, mas para logo acordar com um estremecao. Aquele barco em que navegava nao era, a bem dizer, um verdadeiro barco, mas uma coisa mais que por metade formada de encantamentos e feiticaria, nao passando o resto de meras pranchas e madeira levada pelo mar que, se ele deixasse abrandar os encantamentos de dar forma e de prender que lancara sobre elas, em breve se iriam soltar