e espalhar, partindo a deriva como um pequeno conjunto de destrocos sobre as ondas. E tambem a vela, toda ela tecida de magia e ar, pouco tempo suportaria o vento se ele adormecesse, antes se tornaria ela propria um breve sopro de vento. Os encantamentos de Gued eram eficazes e poderosas, mas quando a materia sobre a qual agem tais sortilegios e escassa, o poder que os mantem ativos tem de ser renovado a cada momento. E assim Gued nao dormiu naquela noite. Teria progredido com mais facilidade e rapidez sob a forma de falcao ou golfinho, mas Oguion aconselhara-o a nao mudar de forma e ele conhecia o valor dos conselhos de Oguion. Portanto, continuou a navegar para sul e a longa noite passou lentamente, ate que o raiar do primeiro dia do novo ano veio iluminar todo o mar.

Pouco depois do nascer do Sol, avistou terra a sua frente, mas so muito devagar se aproximava dela. Com a madrugada, o vento do mundo amainara. Ergueu um pouco de vento magico para a sua vela, a fim de o levar ate aquela terra. A sua vista, o temor entrara de novo nele, o medo penetrante que o impelia a voltar costas, a fugir. E seguiu esse mesmo medo como um cacador segue os sinais, as pegadas largas, arredondadas, com garras, do urso que, a qualquer momento, podia saltar sobre ele de dentro dos macicos de arbustos. Porque estava agora perto. Sabia-o.

Era uma terra de aspecto estranho a que se ia erguendo do mar a medida que ele se aproximava mais e mais. O que de longe parecera ser uma unica montanha escarpada dividia-se afinal em varias arestas longas e ingremes, talvez ilhas separadas, entre as quais o mar passava em estreitos bracos ou canais. Gued debrucara-se sobre muitas cartas e mapas na torre do Mestre dos Nomes em Roke, mas respeitavam na sua maior parte ao Arquipelago e aos mares interiores. Mas agora estava na Estrema Oriental e nao sabia que ilha poderia ser aquela. Nem isso lhe dava muito que pensar. Medo era o que havia a sua frente, o que se acoitava escondendo-se dele ou esperando por ele nas encostas e florestas da ilha, e direito a esse medo dirigiu o barco.

Ja os montes coroados de arvores, escuros, ensombravam da sua enorme altura o barco ca em baixo. A espuma das vagas que se quebravam contra as falesias rochosas era soprada em borrifos de encontro a vela, ao mesmo tempo que o vento magico o levava, entre dois grandes cabos, para um braco de mar, como uma rua maritima que se desenrolava em frente dele, penetrando fundo na ilha, com uma largura que nao excedia o comprimento de duas gales. O mar, confinado, encapelava-se e batia contra as ingremes falesias. Nao havia praias, pois os montes mergulhavam diretamente na agua que o frio reflexo dos seus cumes escurecia. Ali nao havia vento, mas um grande silencio.

A sombra conduzira-o ao engano, primeiro para a charneca de Osskil, depois, no meio do nevoeiro, de encontro as rochas. Haveria agora um terceiro embuste? Fora ele que impelira a coisa ate ali, ou fora ela que ali o atraira, para uma armadilha? Nao o sabia. Sabia apenas que sentia o tormento do temor, e que tinha de seguir em frente e fazer o que se dispusera a fazer, perseguir o mal, seguir o seu proprio terror ate a fonte de onde brotara. Comandou o barco com grande cuidado, olhando atentamente para a frente e para tras, para cima e para baixo dos montes em ambos os lados. Deixara a luz do Sol do novo dia atras de si, no mar aberto. Aqui tudo era escuridao. A abertura entre as paredes rochosas parecia-lhe, ao olhar para tras, uma porta longinqua e fulgurante. Acima dele, os montes erguiam-se altos, cada vez mais altos, a medida que ele se aproximava da base da montanha de onde nasciam e que a rua de agua se ia estreitando. Apurou a vista para diante, para a escura fenda, e para a direita e a esquerda, ate ao cimo das grandes encostas, esburacadas de cavernas, incadas de penedos, a que se apegavam arvores com as raizes meias no ar. Nada se movia. E agora estava a alcancar o fim da enseada, uma massa de rocha elevada, nua e rugosa, de encontro a qual, reduzidas ate a largura de uma pequena angra, as ultimas ondas marinhas batiam debilmente. Penedos tombados, troncos apodrecidos e as raizes de arvores nodosas deixavam apenas uma estreita passagem por onde conduzir o barco. Uma armadilha, uma escura armadilha sob a base da montanha silenciosa, e ele estava dentro dessa armadilha. Nada se movia em frente ou acima dele. Reinava uma quietude de morte. E nao podia avancar mais.

Fez virar o barco, conduzindo-o cuidadosamente com encantamento e o seu remo de recurso, nao fosse ele embater nas rochas submersas ou ficar enredado nas raizes e ramos estendidos sob a agua, ate ficar de novo de frente para o exterior. E estava prestes a erguer um vento que o levasse de volta para de onde viera, quando subitamente as palavras do esconjuro se gelaram nos seus labios e sentiu o coracao arrefecer dentro de si. Olhou para tras, por cima do ombro. A sombra estava atras dele, dentro do barco.

Tivesse ele perdido um so instante e estaria perdido. Mas estava pronto e lancou-se a agarrar e manter a coisa que vacilava e tremia ali, ao alcance dos seus bracos. Nao havia feitico que o ajudasse agora, mas apenas a sua propria carne, a sua propria vida, contra a nao-vida. Sem pronunciar uma so palavra, atacou e o barco mergulhou e oscilou com o seu subito virar-se e lancar-se em frente. Uma dor correu-lhe pelos bracos acima, atingiu-lhe o peito, tirando-lhe a respiracao, um frio gelido encheu-o todo e os seus olhos cegaram. Mas nas suas maos que tinham agarrado a sombra nada havia — trevas, ar.

Cambaleou para a frente, agarrando-se ao mastro a impedir a queda, e a luz voltou aos seus olhos. Viu a sombra afastar-se arrepiadamente dele, diminuir de volume e logo expandir-se enormemente acima dele, acima da vela, por um instante. Depois, como fumo no vento, recuou e fugiu, informe, ao longo da agua e em direcao a entrada clara, entre as falesias.

Gued caiu de joelhos. O barquinho, remendado a sortilegios, mergulhou de novo a proa, reergueu-se, baloucou ate se equilibrar e derivar por sobre as ondas inquietas. O feiticeiro acocorou-se dentro dele, dormente, vazio de pensamentos, lutando por respirar, ate que por fim o frio da agua, crescendo sob as suas maos, o avisou de que tinha de cuidar do barco, pois os encantamentos que o mantinham inteiro estavam a enfraquecer. Ergueu-se, agarrando-se ao bordao que lhe servia de mastro, e refez a encantamento de prender o melhor que lhe foi possivel. Estava gelado e exausto. As maos e os bracos doiam-lhe cruelmente e nao havia poder nele. Desejou deitar-se ali, naquele sitio escuro onde montanha e mar se encontravam, e dormir, dormir, sobre o incansavel ondular da agua.

Nao saberia dizer se aquele cansaco era um bruxedo lancado sobre ele pela sombra, ao fugir, ou se seria fruto da amarga frialdade do seu toque, ou meramente da fome, da falta de dormir e do dispendio de forcas. Mas lutou contra esse cansaco, forcando-se a erguer um ligeiro vento magico para a vela e a seguir pelo escuro braco do mar, para onde a sombra fugira.

Todo o terror se fora. Toda a alegria se fora. Nao se tratava ja de uma cacada. Agora nao era presa nem cacador. Pela terceira vez se tinham encontrado e tocado. Por sua propria vontade, voltara-se para a sombra, tentando agarra-la com as suas maos vivas. Nao a mantivera presa, mas forjara entre ambos um laco, um elo sem qualquer ponto de ruptura. Nao havia necessidade de perseguir a coisa, de lhe procurar o rasto, nem a sua fuga lhe serviria de nada. Nenhum deles podia escapar. Quando alcancassem o tempo e o local para o seu ultimo encontro, encontrar-se-iam.

Mas ate esse tempo, e em qualquer outro lugar que nao esse, nao mais voltaria a haver repouso ou paz para Gued, de noite ou de dia, em terra ou no mar. Sabia agora, e era duro sabe-lo, que a sua tarefa nao era desfazer o que fizera, mas acabar o que comecara.

Saiu velejando de entre as escuras falesias e sobre o mar era manha alta e brilhante, com um brando vento a soprar de norte.

Bebeu a agua que restava na bolsa de pele de foca e dirigiu o barco ao redor da ponta mais ocidental da ilha, chegando a uma vasta passagem entre aquela e uma segunda ilha que ficava para oeste. Reconheceu entao o lugar, trazendo a memoria cartas maritimas da Estrema Oriental. Eram as Maos, um par de isoladas ilhas que estendem os seus dedos montanhosos para norte, na direcao das Terras de Kargad. Navegou entre ambas e, enquanto a tarde se ensombrava com nuvens de tempestade vindas de norte, alcancou a costa no lado meridional da ilha mais a ocidente. Vira que ali existia uma pequena aldeia, acima da praia, onde um rio se despenhava em direcao ao mar, e pouco se lhe dava o acolhimento que pudesse ter, desde que conseguisse agua, o calor do lume e sono.

Os aldeoes eram gente rude e timida, atemorizados pelo bordao de feiticeiro, desconfiados de um rosto estranho, mas hospitaleiros para alguem que chegava sozinho, por sobre o mar, a frente de uma tempestade. Deram-lhe agua e carne em abundancia, o conforto do lume aceso e o conforto de vozes humanas falando a sua propria lingua Hardic. E por fim, e ainda melhor, deram-lhe agua quente, para lavar de si o frio e o sal do mar, e uma cama onde pode enfim dormir.

9. IFFISH

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