da noite, permaneceu ainda nas ruas, relutante em regressar a estalagem. Ouviu um homem e uma rapariga a falarem jovialmente um com o outro, ao passarem por ele rua abaixo em direcao a praca principal, e de subito voltou-se, porque reconhecera a voz do homem.
Seguiu-os e alcancou-os, pondo-se ao lado deles na luz de fim de crepusculo, avivada apenas pelo brilho distante de lanternas acesas. A rapariga deu um passo atras, mas o homem olhou-o de frente e depois ergueu de repelao o bordao que trazia, colocando-o entre eles como uma barreira a afastar a ameaca de um ato maldoso. E isso era mais do que Gued podia suportar. A sua voz tremeu ao dizer:
— Pensei que me reconhecerias, Vetch.
Mesmo entao, Vetch hesitou ainda por um momento.
— E claro que te conheco — disse. E, baixando o bordao, apertou a mao de Gued e rodeou-lhe os ombros com um abraco. — E claro que te conheco! Bem-vindo, meu amigo, bem-vindo! Que modo tao triste de te acolher, como se fosses um fantasma a surgir-me por tras… e eu que tenho esperado por ti, que te tenho procurado…
— Entao es tu o feiticeiro de que tanto se gabam em Ismay? Calculei…
— Ah, sim, sou o feiticeiro deles. Mas escuta-me, deixa-me dizer por que foi que nao te reconheci, rapaz. Talvez te tenha procurado com demasiado afinco. Ha tres dias atras… Estavas aqui, em Iffish, ha tres dias atras?
— Cheguei ontem.
— Ha tres dias, numa rua de Quor, a aldeia que fica ali em cima nos montes, vi-te. Quer dizer, vi uma representacao de ti, ou uma imitacao de ti, ou simplesmente um homem que se parece contigo. Ia a minha frente, a sair da povoacao, e precisamente quando o notei, virou uma curva do caminho. Chamei mas nao tive resposta, segui-o e nao encontrei ninguem. Nem rastos, mas o chao estava gelado, duro. Foi uma coisa muito estranha e agora, ao ver-te sair assim das sombras, pensei que estava outra vez a enganar-me. Perdoa-me, Gued…
Pronunciara o nome-verdadeiro de Gued muito suavemente, de modo a que a rapariga, que estava a espera a pequena distancia atras dele, o nao ouvisse.
Gued falou igualmente em voz baixa para usar o nome-verdadeiro do amigo:
— Nao tem importancia, Estarriol. Mas este sou eu e estou muito contente por te ver…
Vetch tera talvez ouvido mais que satisfacao na voz de Gued. Ainda nao tirara o braco dos ombros de Gued e disse-lhe entao, na Verdadeira Fala:
— Vens da escuridao e perturbado, Gued, mas mesmo assim a tua vinda alegra-me.
Depois prosseguiu em Hardic, com o seu sotaque da Estrema:
— Anda, vem para casa conosco, pois para casa vamos, e tempo de sair do escuro! Esta e a minha irma, a mais nova da familia, mais bonita que eu, como se ve, mas muito menos esperta. Mil-em-rama lhe chamam, como a planta. Mil-em-rama, este e o Gaviao, o melhor de todos nos e meu amigo.
— Senhor Feiticeiro — cumprimentou-o a rapariga e, cora muito decoro, fez pequenas reverencias com a cabeca e tapou os olhos com as maos em sinal de respeito, como e costume das mulheres na Extrema Leste. Quando nao estavam ocultos, os seus olhos eram limpidos, timidos e curiosos. Teria talvez catorze anos de idade e era escura de pele como o irmao, mas muito delgada e esbelta. Agarrado a sua manga, com duas asas e garras, trazia um dragao que nao seria maior que a mao dela.
Seguiram juntos pela rua escura e Gued comentou enquanto caminhavam:
— Em Gont diz-se que as mulheres gontianas sao corajosas, mas nunca ali vi nenhuma donzela que usasse um dragao como pulseira.
A isto, Mil-em-rama riu-se e logo retorquiu:
— Isto e so um
Depois ficou envergonhada por momentos e voltou a tapar os olhos.
— Nao, nem dragoes. Entao essa criatura nao e um dragao?
— Um pequenino, que vive nos carvalhos e se alimenta de vespas, minhocas e ovos de pardal. Nao cresce mais que isto. Oh, Senhor, o meu irmao falou-me tantas vezes do bicho que tinhas, aquele selvagem, o otaque… Ainda o tens?
— Nao. Ja nao.
Vetch voltou-se para ele como para fazer uma pergunta, mas reteve-se e nada perguntou ate muito mais tarde, quando ambos se encontraram sozinhos, a beira do buraco do lume, em pedra, da casa de Vetch.
Se bem que fosse o feiticeiro principal de toda a ilha de Iffish, Vetch escolhera para seu lar Ismay, a pequena vila onde nascera, vivendo com o irmao e a irma mais novos. O pai vivera do comercio maritimo e fora pessoa de alguns meios, sendo a casa espacosa e bem construida, com grande abundancia de loucas, tecidos finos e vasilhas de bronze e latao em prateleiras e armarios trabalhados. A um canto da sala principal encontrava-se uma grande harpa taoniana, a outro, um tear para tapecaria de Yarrow, com a armacao embutida de marfim. Ali, Vetch, apesar das suas calmas e simples maneiras, era nao so um poderoso feiticeiro, mas ainda um senhor na sua propria casa. Havia um par de velhos servidores, prosperando com a fortuna da casa, o irmao, um moco jovial, e Mil-em-rama, rapida e silenciosa como um peixinho, que serviu a ceia aos dois amigos, comeu com eles, ouvindo-os falar, e depois se retirou discretamente para o seu quarto. Ali, todas as coisas tinham boas fundacoes, eram pacificas e seguras. E Gued, olhando em redor de si para a sala iluminada pelo fogo, disse:
— E assim que um homem deve viver. E suspirou.
— Bom, e uma maneira — disse Vetch. — Ha outras. Agora, rapaz, diz-me, se podes, que coisas se aproximaram de ti e de ti se afastaram desde a ultima vez que falamos, ha dois anos. E diz-me em que jornada vais, pois bem vejo que, desta vez, nao iras ficar muito tempo conosco.
Gued disse-lhe e, quando ele acabou, Vetch ficou por longo tempo silencioso, a ponderar o que ouvira. Depois disse:
— Irei contigo, Gued.
— Nao.
— Acho que sim.
— Nao, Estarriol. Isto nao e tarefa nem desgraca que te incumba. Sozinho comecei este percurso malefico, sozinho lhe darei fim. Nao quero que mais ninguem tenha de sofrer por isso e tu menos que qualquer outro, tu que tentaste travar a minha mao e impedir-me a acao malefica logo no inicio de tudo isto, Estarriol…
— O orgulho foi sempre dono do teu espirito — disse-lhe o amigo sorrindo, como se falassem de algum assunto de somenos importancia para ambos. — Agora, pensa. E a tua demanda, certamente, mas se a demanda nao for a bom fim, nao deveria haver um outro contigo que trouxesse aviso para o Arquipelago? Porque, entao, a sombra teria um poderio terrivel. E se derrotares a coisa, nao deveria estar outro contigo que viesse relatar tudo ao Arquipelago, para que o Feito fosse conhecido e celebrado em canto? Sei que nao posso ser de qualquer utilidade para ti. Mas, mesmo assim, penso que devia ir contigo.
Instado desta maneira, era impossivel a Gued recusar o amigo, mas disse:
— Nao devia ter ficado aqui hoje. Sabia-o, mas fiquei.
— Os feiticeiros nao se encontram por acaso, rapaz — disse Vetch. — E afinal, como ha pouco disseste, eu estava contigo no principio da tua jornada. Esta, pois, certo que a acompanhe ate ao final.
Lancou mais lenha no lume e, durante algum tempo, deixaram-se ficar a olhar para o fogo. Por fim, Gued quebrou o silencio para dizer:
— Ha alguem de quem nao voltei a ouvir falar desde aquela noite no Cabeco de Roke e, na Escola, nao tive coragem para perguntar por ele. Por Jaspe, quero dizer.
— Nunca chegou a receber o seu bordao. Deixou Roke nesse mesmo Verao e foi para a Ilha de O, para ser magico na casa do Senhor, em Otokne. Para alem disso, nao sei mais nada acerca dele.
Voltaram a ficar em silencio, olhando o fogo e gozando (ja que a noite era agreste) o calor nas pernas e no rosto, sentados no rebordo largo da cova do fogo, com os pes quase dentro das brasas.
Por fim, em voz muito baixa, Gued disse:
— Ha uma coisa que temo, Estarriol. E temo-a mais se fores comigo quando eu partir. La, nas Maos, no fundo da calheta voltei-me contra a sombra, que estava ao alcance das minhas maos, e agarrei-a… tentei agarra- la. E nao havia nada que eu pudesse segurar. Nao foi possivel derrota-la. Fugiu, segui-a. Mas isso pode acontecer e voltar a acontecer outra vez. Nao tenho poder sobre a coisa. Nao havera talvez morte nem triunfo no final desta demanda, nada para ser cantado, nenhum fim. Pode acontecer que eu tenha de passar a minha vida a correr de