Subitamente, Gued ergueu-se e um passo em frente levou-o onde pode ver, logo apos a curva da parede da longa sala, o Senhor da Terrenon que escutava, com um ligeiro sorriso.

Os olhos de Gued clarearam e tambem a sua mente. Baixou a vista para Serret.

— A luz e que derrota as trevas — disse, com a voz presa —, a luz.

E ao mesmo tempo que falava viu, tao claramente como se as suas palavras fossem a luz que lhe iluminava a visao, como na realidade fora conduzido ali, ali levado ao engano, como tinham usado o seu temor para o guiar e como, uma vez que se tivessem assenhoreado dele, o manteriam ali. Tinham-no salvo da sombra, realmente, porque nao queriam que a sombra o possuisse antes de se tornar escravo da Pedra. Mas logo que a sua vontade tivesse sido aprisionada pela Pedra, entao deixariam que a sombra penetrasse nas muralhas, porque um gebbeth seria ainda melhor escravo que um homem. Se alguma vez tivesse tocado a Pedra, ou se lhe tivesse falado, estaria totalmente perdido. Porem, tal como a sombra nao fora capaz, embora por pouco, de o alcancar e prender, tambem a Pedra nao fora capaz de o usar… por pouco. Quase cedera, mas, por pouco, nao chegara a ceder. Ele nao aquiescera. E e muito dificil para o mal apoderar-se da alma que nao aquiesce.

E estava agora entre aqueles dois que tinham cedido, que tinham aquiescido, olhando de um para o outro, enquanto Benderesk se aproximava.

— Eu avisei-te — disse o Senhor da Terrenon a sua dama, secamente — de que ele se esgueiraria das tuas maos, Serret. Sao uns idiotas ladinos, esses teus feiticeiros de Gont. E idiota es tu tambem, mulher de Gont, quando pensaste em enganar tanto a ele como a mim, e em os governar a ambos pela tua beleza, e em usar a Pedra da Terrenon para os teus proprios fins. Mas eu sou o Senhor da Pedra, eu, e isto e o que faco a esposa desleal. Ekavroe ai oeluantar…

Era um esconjuro de Mudanca e as longas maos de Benderesk erguiam-se a dar a mulher que se encolhia perante ele a forma de qualquer coisa hedionda — porca, cadela ou velha abjeta.

Gued deu um passo em frente e golpeou a mao do senhor, com a sua, forcando-a a baixar, ao mesmo tempo que pronunciava uma unica e curta palavra. E embora nao tivesse bordao, e estivesse em terreno alheio e malefico, dominio de um poder tenebroso, mesmo assim a sua vontade prevaleceu. Benderesk imobilizou-se, os olhos enevoados fixos, cheios de odio e cegos, sobre Serret.

— Vem — disse ela em voz que tremia —, vem, Gaviao, depressa, antes que ele consiga invocar os Servos da Pedra…

Como um eco, um sussurro correu atraves da torre, por dentro das pedras de paredes e chao, um murmurio tremente e seco, como se a propria terra pudesse falar.

Agarrando na mao de Gued, Serret fugiu com ele ao longo de corredores e salas, pelas altas escadas em espiral abaixo. Sairam por fim para o patio, onde um resto de luz prateada do dia permanecia ainda sobre a neve pisada e suja. Tres dos servos do castelo lhes barraram o caminho, com expressao sombria e interrogativa, como se suspeitassem de alguma conspiracao entre aqueles dois contra o seu amo.

— Esta a escurecer, Senhora — disse um deles. E logo outro: — Nao podes sair agora.

— Saiam do meu caminho, vermes! — bradou Serret, e disse algumas palavras na sibilante lingua de Osskil. Os homens afastaram-se dela, dobraram-se ate ao chao, aos estremecoes, e um deles gritou alto.

— Temos de ir pela porta grande, nao ha mais nenhuma saida. Consegues ve-la? Consegues encontra-la, Gaviao?

Puxou-lhe a mao, mas Gued hesitava ainda.

— Que esconjuro lhes lancaste? — quis saber.

— Fiz-lhes correr chumbo derretido pelo tutano dos ossos e disso vao morrer. Depressa, digo-te eu, ou ele lancara sobre nos os Servos da Pedra. E eu nao consigo encontrar a porta… Ha um grande sortilegio sobre ela. Depressa!

Gued nao entendia o que ela queria dizer porque, para ele, a porta encantada era tao obviamente visivel como as pedras da passagem em abobada que a ela conduziam a partir do patio e atraves da qual a via. Conduziu Serret atraves da passagem, por sobre a neve virgem de pegadas da entrada para o patio e logo, tendo pronunciado uma palavra de Abrir, atravessaram ambos a porta da muralha de sortilegios.

Ao passarem atraves daquela entrada para fora do crepusculo prateado da Corte da Terrenon, Serret modificou-se. Nao que fosse menos bela a luz triste da charneca, mas havia na sua beleza um ar feroz de feiticeira. E Gued reconheceu-a por fim. Era a filha do Senhor de Re Albi, filha de uma magica de Osskil, a que trocara dele nos verdes prados acima da casa de Oguion, havia tanto tempo, e o levara a ler aquele esconjuro que libertara a sombra. Mas pouco demorou os pensamentos nisso, porque olhava agora em seu redor com todos os sentidos em alerta, procurando esse inimigo, a sombra, que estaria a sua espera nalgum lado, fora das paredes magicas. Poderia ser ainda um gebbeth, revestido com a morte de Skiorh, ou poderia ocultar-se na escuridao crescente, esperando para o agarrar e fundir o seu vulto informe com o corpo vivo de Gued. Sentia-lhe a proximidade e, no entanto, nao o via. Mas, ao perscrutar o espaco em volta, deu com uma coisa pequena e escura meia mergulhada na neve, a poucos passos da porta. Baixou-se e depois, muito suavemente, levantou-a em ambas as maos. Era o otaque, o pelo fino e curto todo pegajoso de sangue, o pequeno corpo leve, hirto e frio nas suas maos.

— Transforma-te! Transforma-te depressa, eles vem ai! — gritou agudamente Serret, agarrando-lhe o braco e apontando para a torre, erguendo-se atras deles como um grande dente branco no escuro crepuscular. Das seteiras proximas da base saiam escuras criaturas, abrindo longas asas, batendo-as lentamente e erguendo- se era espiral por sobre as muralhas e em direcao a Gued e Serret, sos e desprotegidos na encosta do monte. O sussurro estrepitoso que tinham ouvido dentro da fortaleza aumentara, soando agora como um tremor e um gemer dentro da terra, sob os seus pes.

A ira ergueu-se como uma vaga no coracao de Gued, uma colera ardente contra todas as coisas crueis e mortiferas que o tinham iludido, armando-lhe lacos, perseguindo-o sem descanso.

— Transforma-te! — bradou-lhe uma vez mais Serret e, com um esconjuro dito rapidamente e em voz ofegante, ela propria se transformou numa gaivota cinzenta e levantou voo. Mas Gued inclinou-se para o chao e arrancou uma folha de erva bravia que saia, seca e fragil, da neve onde o otaque jazera morto. Ergueu essa folha e, enquanto lhe falava em voz alta na Fala Verdadeira, ela cresceu, espessou-se e, quando Gued acabou, segurava na mao um grande bordao, um bordao de feiticeiro. Nenhum fogo de maldicao o percorreu com a sua cor vermelha quando as criaturas negras e adejantes da Corte da Terrenon picaram sobre ele e lhes golpeou as asas. Flamejou apenas com o branco fogo magico que nao queima mas afugenta a escuridao.

As criaturas voltaram ao ataque. Bestas feras, aleijoes vindos de eras anteriores aos passaros, aos dragoes, aos homens, ha muito esquecidas pela luz do dia, mas de novo invocadas pelo poder antigo, maligno, o poder que nada esquecia, da Pedra. Sem lhe dar treguas, caiam sobre Gued e ele sentia o silvo das suas garras como foices ao redor dele, o nauseante cheiro a morte que delas se desprendia. Ferozmente, aparava os golpes e devolvia-os, mantendo-os a distancia com o bordao flamejante, feito da sua colera e de um fio de erva brava. E, subitamente, todas as criaturas se ergueram no ar como corvos afugentados de cima de algum cadaver decomposto e rondaram para longe, batendo as asas, silenciosas, na direcao que Serret tomara na sua forma de gaivota. As suas vastas asas pareciam lentas, mas voavam rapidamente, porque cada impulso as fazia avancar poderosamente atraves do ar. Nao havia gaivota que pudesse escapar por muito tempo aquela pesada velocidade.

Tao rapido como ja uma vez o fizera em Roke, Gued tomou a forma de um grande falcao. Nao da pequena ave rapace por cujo nome o tratavam, Gaviao, mas do Falcao-Peregrino que voa como uma flecha, como o pensamento. E com as suas asas listradas, cortantes e potentes, perseguindo os perseguidores, voou celere. Os ares iam escurecendo e, por entre as nuvens, o brilho das estrelas ia-se tornando mais nitido. La a frente, avistou o bando negro e irregular das criaturas que se lancavam sobre um unico ponto pairando no ar. Para alem daquele borrao negro, estendia-se o mar, palidamente iluminado pela derradeira e acinzentada claridade do dia. Veloz e em linha reta, o falcao-Gued lancou-se contra as criaturas da Pedra que se dispersaram quando penetrou no meio delas, como se dispersam as gotas da agua ferida por uma pedra. Mas tinham alcancado a sua presa. Via-se sangue no bico de uma, penas brancas estavam presas as garras de outra e nao havia qualquer gaivota a pairar para alem delas, sobre a extensao palida do mar.

Ja as criaturas se voltavam de novo contra Gued, rapida e pesadamente, os bicos de aco a abrirem-se, a estenderem-se para ele. E Gued, rondando uma so vez por sobre elas, lancou o grito do falcao, o grito de raiva e desafio, antes de atravessar celere por sobre as praias baixas de Osskil e, ultrapassando os recifes, voar para o

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