— Aquele navio comprido, ali adiante, e de Osskil. E possivel que faca escala nas Enlades.
Sempre apressado, Gued dirigiu-se ao grande navio que o pescador lhe indicara, uma embarcacao alongada de sessenta remos, esguia como uma serpente, com a curva e alta proa esculpida e embutida com discos de concha de
— Podes pagar?
— Tenho alguma pericia com ventos.
— Tambem eu sou um fazedor de tempo. Nao tens nada para dar? Dinheiro?
Em Baixo Torning, os Ilheus tinham pago Gued o melhor que podiam com as moedas de marfim usadas pelos que mercadejavam no Arquipelago. Embora lhe quisessem dar mais, apenas aceitara dez moedas. Ofereceu entao essas moedas ao osskiliano, mas este abanou a cabeca.
— Nos nao usamos essas fichas de jogo. Se nao tens nada com que pagar, nao posso tomar-te a bordo.
— Precisas de bracos? Ja remei numa galera.
— Sim, temos falta de dois homens. Procura entao o teu banco — disse o mestre do navio. E nao lhe prestou mais atencao.
Assim, pousando o bordao e o saco dos livros debaixo do banco dos remadores, Gued tornou-se durante dez amargos dias um remador a bordo daquele navio do Norte. Largaram de Orrimi ao romper do Sol e, durante esse dia, Gued pensou que nao iria ser capaz de dar conta do seu trabalho. Tinha o braco esquerdo um pouco enfraquecido por causa das velhas feridas no ombro e, por muito que tivesse remado nos canais de Baixo Torning, isso nao o preparara para puxar, puxar, puxar sem descanso pelo longo remo da galera, ao ritmo do tambor. Cada turno aos remos era de duas ou tres horas, apos o que um segundo grupo de remadores vinha ocupar os bancos, mas o tempo de repouso so parecia ser suficientemente longo para todos os musculos de Gued ficarem rigidos e logo chegava o momento de voltar aos remos. E o segundo dia foi ainda pior. Mas, depois, o corpo habituou-se ao labor e tudo passou a correr melhor.
Naquele navio nao havia camaradagem entre os tripulantes como ele encontrara a bordo do
Todos os homens livres de Osskil traziam uma faca comprida a anca e certo dia, quando o seu turno de remadores compartilhava a refeicao do meio-dia, um desses homens perguntou-lhe:
— Es escravo ou perjuro, Kelub?
— Nem uma coisa nem outra.
— Entao por que motivo nao tens faca? Tens medo de lutar? — continuou o homem, Skiorh, trocista.
— Nao.
— Ou e o teu cachorro que luta por ti?
— Otaque — disse um outro que escutava a troca de palavras. — Cao, nao. Aquilo e um otaque — e acrescentou qualquer coisa na lingua de Osskil que fez Skiorh franzir o olho e voltar as costas. E, precisamente quando se virou, Gued deu por uma mudanca no seu rosto, as feicoes a ondularem e a tornarem-se indistintas como se, por um instante, algo o tivesse modificado, utilizado, para lancar, atraves dos seus olhos, um relance de esguelha a Gued. Porem, no instante seguinte, Gued viu-lhe todo o rosto e estava como de costume, pelo que Gued disse para si proprio que o que vira fora o seu proprio receio, o seu proprio temor refletido nos olhos do outro. Mas nessa noite voltou a sonhar e Skiorh caminhou no seu sonho. A partir dai, evitou aquele homem o mais que pode e dir-se-ia que tambem Skiorh se mantinha longe dele, pelo que nao houve mais palavras trocadas entre ambos.
As montanhas coroadas de neve de Havnor afundaram-se atras deles no horizonte, para sul, tornadas indistintas pelas nevoas de principio de Inverno. Continuaram remando para la da entrada do Mar de Ea onde, ha tanto tempo, Elfarran fora afogado e ainda para alem das Enlades. Aportaram por dois dias a Berila, a Cidade do Marfim, branca acima da sua baia na parte ocidental da Enlad dos muitos mitos. Em todos os portos a que chegavam, os homens eram mantidos a bordo do navio e nao podiam por pe em terra firme. Depois, sob um Sol que nascia vermelho, entraram no Mar de Osskil, sob os ventos de nordeste que sopram sem obstaculo que os quebre, vindos da vastidao despida de ilhas da Estrema Norte. Atraves desse mar cruel levaram a sua carga a bom porto, chegando no segundo dia, a partir de Berila, aos cais de Neshum, a cidade comercial de Osskil- Leste.
O que se deparou a Gued foi uma costa baixa acoitada pelo vento e pela chuva, uma vila cinzenta agachada por tras dos longos quebra-mares que formavam o seu porto e, nas costas da vila, montes despidos de arvores sob um ceu escurecido por nuvens carregadas de neve. Estavam muito longe da luz brilhante do Mar Interior.
Estivadores da Guilda do Mar de Neshum vieram a bordo fazer a descarga — ouro, prata, pedrarias, sedas finas e tapecarias do Sul, as coisas preciosas que os senhores de Osskil entesouram — e os homens livres da tripulacao foram dispensados. Gued interpelou um deles, para lhe perguntar o caminho. Ate ai, a desconfianca que sentia por todos eles impedira-o de dizer para onde se dirigia, mas agora, a pe e sozinho numa terra estranha, forcoso era que pedisse indicacoes. O homem seguiu caminho impacientemente, dizendo que nao sabia, mas Skiorh, que os ouvira, disse:
— A Corte da Terrenon? Nas charnecas de Keksemt. E esse o meu caminho.
Skiorh nao era a companhia que Gued escolheria, mas, sem conhecer nem a lingua nem o caminho, pouca escolha havia. E de qualquer forma, pensou, nao tinha grande importancia. Ele tambem nao escolhera vir ate ali. Fora conduzido e agora continuava a se-lo. Puxou o capuz para cima da cabeca, pegou no bordao e no saco e seguiu o osskiliano atraves das ruas da cidade e depois para cima, em direcao aos montes nevados. O pequeno otaque nao quis viajar ao ombro, preferindo esconder-se no bolso da sua tunica de pele de carneiro, debaixo do manto, como era seu costume com tempo frio. Os montes deram lugar a charnecas ermas e ondulantes, estendendo-se ate onde a vista podia alcancar. Caminhavam em silencio e o silencio do Inverno pesava sobre toda aquela terra.
— Quanto falta? — perguntou Gued depois de terem percorrido algumas milhas, nao vendo quaisquer vestigios de aldeia ou herdade para onde quer que olhasse e pensando que nao traziam alimentos consigo. Skiorh voltou momentaneamente a cabeca para ele, levantando o capuz, e respondeu:
— Pouco.
Era uma cara repulsiva, palida, grosseira e cruel, mas Gued nao temia homem algum, embora pudesse temer o lugar onde esse homem o poderia conduzir. Acenou que sim e prosseguiram. A estrada por onde seguiam nao era mais que uma fina cicatriz atraves da vastidao de neve e arbustos sem folhas. De tempos a tempos, outros trilhos a atravessavam ou derivavam dela. Agora que o fumo das chamines de Neshum se ocultara por tras dos montes na tarde cada vez mais escura, nao havia sinal algum que indicasse por que caminho deveriam seguir, ou tinham seguido. So o vento soprava constantemente de leste. E depois de terem caminhado